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Ministério Público: essencial à função jurisdicional do Estado

2.1 Novo perfil do Ministério Público

2.1.1 Ministério Público: essencial à função jurisdicional do Estado

Em análise do texto constitucional, observa-se a disposição acerca do Ministério Público no capítulo denominado “Das funções essenciais à justiça” como essencial à “função jurisdicional do Estado”. Sabe-se que referidas expressões não são sinônimas e que o texto constitucional não traz palavras sem razão com o fim de serem despropositadamente desconsideradas quando da aplicação do Direito. O texto não existe numa textitude metafísica; o texto é inseparável de seu sentido e, por isso, interpretá-lo é aplicá-lo, sendo impossível cindir interpretação de aplicação (STRECK, 2011, p. 219).

A justiça, denominada em regra como virtude, volta-se para o estado de equilíbrio. Visa aos outros e não ao próprio sujeito. Estando intimamente ligada à ideia de proporcionalidade, foi representada, na Grécia, pela deusa Têmis segurando uma balança, de olhos vendados. Modernamente, essa deusa vem sendo representada sem as vendas, “significando a justiça social, para qual o meio em que se insere o indivíduo é tido como agravante ou atenuante de suas responsabilidades” (GRIMAL, 1997, p. 435). Ou seja, em termos representativos também se percebe evolução no sentido de justiça.

Como a predominância de vantagem pessoal significa o oposto de toda manifestação de justiça (COMPARATO, 2006, p. 2006), depreende-se da função essencial à justiça um olhar sobre as necessidades dos outros indivíduos, sobressaindo-se a atuação do Ministério Público.

No mesmo sentido, o ensinamento de Aristóteles (1973, p. 329):

A justiça é uma espécie de meio-termo, porém não no mesmo sentido que as outras virtudes, e sim porque se relaciona com uma quantia ou quantidade intermediária, enquanto a injustiça se relaciona com os extremos. E justiça é aquilo em virtude do qual se diz que o homem justo pratica, por escolha própria, o que é justo, e que distribui, seja entre si mesmo e um outro, seja entre dois outros, não de maneira a dar mais do que convém a si mesmo e menos ao seu próximo (e inversamente no relativo ao que não convém), mas de maneira a dar o que é igual de acordo com a proporção; e da mesma forma quando se trata de distribuir entre duas outras pessoas.

Daí se vislumbra a amplitude do Ministério Público no texto constitucional e, por conseguinte, a responsabilidade da instituição quanto à promoção da justiça, em sentido amplo, e não só quanto à escorreita função jurisdicional no Estado Democrático de Direito. Ser essencial à justiça é assumir o compromisso de promovê-la, o que significa, em apertada síntese, reduzir ou eliminar desigualdades, reconhecer e promover direitos e, principalmente, viabilizar o acesso à justiça, que compreende o acesso ao Poder Judiciário, mas não se restringe a este.

Neste estudo, na linha de essencial à justiça, adota-se o Ministério Público como agente constitucionalmente competente e habilitado por efetivar o acesso à justiça em sua concepção ampla. “Esse enfoque, em suma, não receia inovações radicais e

compreensivas, que vão muito além da esfera de representação judicial” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 71). Inclui a utilização de meios alternativos de resolução de conflitos, sobretudo quanto à tutela dos direitos sociais e individuais indisponíveis, priorizando uma atuação democrática e resolutiva, sem restringir-se aos limites tradicionais do Judiciário.

No âmbito de essencial à função jurisdicional do Estado, o Ministério Público assume, concomitantemente, a vocação de impulsionar o Poder Judiciário e o compromisso de auxiliar no aperfeiçoamento da atividade jurisdicional. Trabalhando alinhado ao ideal de descongestionar o referido Poder, sem negar o reconhecimento de direitos, o Ministério Público desempenha papel fundamental para que a prestação jurisdicional seja mais eficaz. O desempenho dessa função implica o auxílio do trabalho desenvolvido pela máquina judicial, de forma a facilitar a produtividade, eficiência e eficácia, sobretudo nas questões relativas à tutela dos direitos de dimensão coletiva.

Afirmar que o Ministério Público é essencial à jurisdição é, pois, proclamar que a participação da instituição no fortalecimento da democracia dá-se mediante a representação dos interesses sociais fundamentais perante a jurisdição (MORAES in ALMEIDA; SOARES JÚNIOR, 2013, p. 137). Ao representar esses interesses, o Ministério Público aperfeiçoa sua missão institucional perante o Poder Judiciário. Ao contrário do Judiciário, imparcial, o Ministério Público será sempre parcial quanto à defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Atuando com dinamismo, “estendendo sua ação a todas as molas, a todos os escaninhos da máquina estatal” (RODRIGUES, 1999, p. 34), não há dúvidas de que o Ministério Público obterá êxito em resguardar e fazer prevalecer o interesse público, em todas as instâncias do Poder, sendo, portanto, essencial à justiça e à função jurisdicional do Estado.

No entendimento de Mazzilli (2013), a expressão essencial à função jurisdicional do Estado é incorreta se considerada em valor absoluto. Segundo o doutrinador:

De um lado, tal referência diz menos do que deveria, pois o Ministério Público tem inúmeras funções exercidas independentemente da prestação jurisdicional [...]. De outra parte, e paradoxalmente, aquela referência diz mais do que deveria, pois o Ministério Público não oficia em todos os feitos submetidos à prestação jurisdicional [...]. (MAZZILLI, 2013, p. 41-42)

Realmente, a atuação do Ministério Público não se reduz aos limites da função jurisdicional do Estado, conforme já salientado. Ao contrário, em termos de tutela dos direitos de grupo, a atuação ministerial é expressiva no âmbito extrajudicial, sobretudo no viés resolutivo, mesmo sendo o Ministério Público o principal autor de ações civis públicas.4

E mesmo no plano jurisdicional do Estado, impor-se-á a presença ministerial apenas em determinadas hipóteses. No âmbito criminal, a titularidade da ação é, em regra, do Ministério Público, cabendo à vítima atuar apenas nas ações privadas ou nas ações públicas, em havendo inércia do parquet. Porém, no âmbito cível, a titularidade das mais variadas espécies de ações não é exclusiva do Ministério Público.

Nas hipóteses de tutela dos direitos de grupo, a atuação ministerial ocorrerá conforme as normas do microssistema de processo coletivo e nas ações civis o Ministério Público intervirá em alguns feitos conforme as normas do Código de Processo Civil. Para Rodrigues (1999), essa intervenção processual deveu-se inicialmente à ignorância dos juízes feudais. É o que se depreende abaixo:

A intervenção do MP nos processos cíveis teve origem na ignorância dos juízes feudais, que sentiram a necessidade dos pareceres e conselhos de homens versados no conhecimento da lei, delegados dos senhores feudais e seus procuradores. Tal ingerência continua a ser necessária mais tarde quando os cargos judiciais se tornam hereditários, porque os juízes eram também desconhecedores do direito e da prática forense, carecendo, portanto, dum consultor legal. (RODRIGUES, 1999, p. 152)

4 Conforme dados publicados pelo Conselho Nacional do Ministério Público referentes ao ano de

2014, consoante o quadro 7 – área extrajudicial: inquéritos civis e procedimentos preparatórios – no âmbito dos Ministérios Públicos dos estados e do Ministério Público do Distrito Federal foram instaurados 256.423 inquéritos civis e procedimentos preparatórios. Foram arquivados 149.915, sendo 9665 com celebração de TAC e 140.250 sem TAC. O número de recomendações e TAC também é expressivo, sendo 7.149 recomendações e 10.596 TACs (CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, 2015a, p. 45).

A intervenção do Ministério Público no processo civil sempre foi alvo de discussão doutrinária. Não há dúvidas, contudo, de que a intervenção estabelecida no art. 82, do Código de Processo Civil (CPC), prevê hipóteses de atuação obrigatória (incisos I e II, e primeira parte do inciso III) e de atuação discricionária (segunda parte do inciso III),5 já que, nos termos da Lei de Organização Nacional do Ministério Público

(Lei nº 8.625/93, art. 26, VII) (BRASIL, 1993) e da doutrina, incumbe ao parquet, com exclusividade, aferir a existência de interesse público apto a legitimar a atuação ou intervenção no processo civil.

Há que se ressaltar que o interesse público justificador da atuação do Ministério Público, no âmbito discricionário a ser exercido por seus agentes, obviamente com lastro na legislação constitucional e infraconstitucional, é o interesse primário e, após o texto constitucional de 1988, desde que haja indisponibilidade devido ao caráter social.

O termo essencial à função jurisdicional do Estado deve ser compreendido, portanto, com as ressalvas acima. A atuação do Ministério Público definitivamente não é imprescindível em todos os feitos judiciais.

Neste trabalho, como essencial à função jurisdicional e também à Justiça, o Ministério Público configura-se como instituição resolutiva que almeja, prioritariamente, resolver as questões ligadas aos direitos de grupo em sua própria instância institucional e que impõe movimento à máquina jurisdicional, com o fim de promover a justiça, apenas se esgotadas as possibilidades alternativas. Para tanto, no âmbito jurisdicional, vale-se da propositura de ações, principalmente ações civis públicas e execuções, assim como da interposição de recursos processuais. E no âmbito extrajurisdicional, vale-se de instrumentos tais como o inquérito civil, recomendações, termos de ajustamento de conduta, atendimento ao público, audiência pública e outros. Não por acaso, o Ministério Público foi denominado pelos

5 “Art. 82. Compete ao Ministério Público intervir: I- nas causas em que há interesses de incapazes; II-

nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposição de última vontade; III- nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte (Redação dada pela Lei 9.415, de 23.12.1996)”. (BRASIL, 1973)

franceses como magistrature débout ou magistratura de pé, configurando-se no Brasil como instituição peculiar na tutela dos direitos de grupo.