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2. DENTRO: A IMPOSSIBILIDADE DA FICÇÃO

2.3. Mise en abyme

Uma terceira e última característica metaficcional que destacaremos na composição de Quatro-Olhos é a replicação interna da própria obra. Nesse sentido, buscaremos a partir de agora aprofundar a leitura, focalizando a reescrita do livro perdido que é tão recorrentemente citado na narrativa. Como veremos, além da evidente autoconsciência literária e da intertextualidade com várias obras, outra característica metaficcional presente no romance de Renato Pompeu é a mise en abyme. A expressão foi cunhada por Claude-Edmonde Magny, mas como explica Lucien Dällenbach (1979), deve-se a André Gide a sua descoberta. Ele observou por meio da heráldica11 a existência em miniatura da réplica de um escudo dentro do próprio escudo. Anos depois, ao estudar a mise en abyme no campo da arte, Gide postulou que ela faz referência a obras que contém em seu interior uma réplica de si mesmas.

Partindo das contribuições de Gide, Dällenbach avança no estudo dessa técnica ficcional e, na tentativa de categorizá-la, o teórico francês explica que a mise en abyme altera a ordem cronológica da narrativa e por isso pode se apresentar em três ocasiões distintas da história:

(...) a primeira, prospectiva, reflecte antecipadamente a história vindoura; a segunda, retrospectiva, reflecte a posteriori a história consumada; a terceira, retroprospectiva, reflecte a história descobrindo os acontecimentos anteriores e os acontecimentos posteriores ao seu ponto de ancoragem na narrativa. (DÄLLENBACH, 1979, p. 60, grifos do original)

Na nossa compreensão, observando o romance Quatro-Olhos em sua integralidade, o tipo de narrativa em abismo mais evidente na obra é a prospectiva. Isso porque o narrador sugere, por meio de diversos vestígios deixados ao logo de sua exposição, que toda a primeira parte da obra (Dentro) está contida na sua segunda parte (Fora). É somente nessa segunda parte que o leitor tem acesso às descrições do hospício, lugar onde Quatro-Olhos está internado e se dedica a escrever. Os vestígios que apontam para a existência desses dois planos da narrativa não são conclusivos, mas

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Arte e ciência responsável pelo estudo da origem, evolução e significado dos brasões de armas e escudos. Seu estudo iniciou-se por volta do século XII, quando se passou a confeccionar símbolos pessoais ou familiares no interior dos escudos.

sua recorrência torna essa possibilidade, além de coerente, bastante profícua para interpretação da obra.

Assim, pode-se pensar que a primeira parte do romance é um diário hospitalar que Quatro-Olhos escreve enquanto está dentro do hospício. Diante disso, esse seu relato pessoal reflete antecipadamente diversos aspectos da obra que só são mais bem detalhados na segunda parte da narrativa. Os sinais que apontam para essa relação de uma obra no interior de outra estão presentes não apenas na nomeação das partes (Dentro e Fora), mas também no próprio discurso narrativo. Temos um bom exemplo disso quando o narrador de “Fora” afirma que “Quatro-Olhos preferia ficar longe de gente, perdido em seus escritos, em que dizia reconstituir um livro que perdera” (POMPEU, 1976, p. 153). Ou ainda, mais adiante, quando ele enuncia a mesma ideia, mas dessa vez questionando sua veracidade: “Quatro-Olhos dizia ter perdido um livro que era necessário refazer, mas como sofria de alucinações não se sabia ao certo” (POMPEU, 1976, p. 163).

Em “Dentro” também há alguns trechos que sugerem essa relação de um texto dentro de outro, especialmente quando o narrador-personagem comenta estar escrevendo da beirada de uma piscina ou quando, provavelmente se referindo ao ambiente de convivência com os outros internos do hospício, afirma: “Aqui onde estou parece não haver muito pra fazer além de lembrar; estamos juntos já há muito tempo e por vezes nos surpreendemos repetindo conversas de meses atrás” (POMPEU, 1976, p. 40). Nesse ínterim, a narrativa da primeira parte da obra pode ser interpretada não apenas como a construção interna de um diário hospitalar que ajuda Quatro-Olhos a enfrentar seus traumas, mas também como resultado de uma tentativa do protagonista em reescrever sua narrativa perdida.

Partindo dessas possibilidades interpretativas, faz todo o sentido que em certo momento de sua narração Quatro-Olhos questione: “Talvez fosse eu, talvez um personagem do livro” (POMPEU, 1976, p. 31). Mas não apenas isso: quando traçamos um olhar panorâmico sobre a narrativa, verificamos que Quatro-Olhos é, ao mesmo tempo, autor, narrador e protagonista de sua obra. Apesar de o leitor só ter a visão completa disso após chegar à segunda parte do romance, já na primeira parte tudo isso é exposto mesmo diante da mente perturbada do narrador. Desde o começo, por mais que se contradiga a respeito de algumas informações, isso não impede Quatro-Olhos de explicar que “só existia quando escrevia o livro” (POMPEU, 1976, p. 61).

Entretanto, não obstante a primeira parte do romance ser a mise en abyme mais evidente, é possível encontrar outras miniaturas de ficção presentes na obra. O que se percebe é que, somada a essa narrativa em abismo mais clara, há uma constante indicação no sentido de que as narrativas se multiplicam para dentro e para fora, construindo vários níveis de ficcionalização. Podermos melhor observar esse processo por meio do esquema montado no gráfico a seguir:

Inicialmente, o leitor, quando começa a ler o romance Quatro-Olhos, está ingressando no primeiro nível ficcional. No interior da obra, ele percebe a existência de outros três níveis ficcionais: (1) a segunda parte do romance, que se caracteriza por apresentar uma descrição do ambiente no hospício; (2) a primeira parte do romance, que se caracteriza por apresentar o texto escrito por Quatro-Olhos dentro do hospital psiquiátrico; (3) o livro perdido, que se caracteriza pelos comentários imprecisos acerca da obra subtraída do protagonista. Diante disso, é preciso notar que, à medida que avança nesses níveis ficcionais, mais o leitor vai se aprofundando na ficção. Por isso, ao chegar ao nível do livro perdido e observar que há semelhanças entre ele e o mundo exterior, o leitor termina retornando para sua realidade com o sentimento de que é parte integrante de uma grande ficção. Portanto, trata-se não apenas da existência de várias ficções, uma no interior da outra, mas também de um caráter cíclico que se estabelece entre elas, levando o leitor a, uma vez dentro da ficção, não mais conseguir sair fora

Romance Quatro-Olhos Segunda Parte (Fora) Primeira Parte (Dentro) Livro Perdido Mundo "real" do Leitor

dela. Em outras palavras, o leitor se torna parte do romance, assim como Quatro-Olhos tornou-se parte do seu livro perdido.

Em última instância, a existência dessas várias narrativas em abismo nos leva a imaginar que existem infinitos níveis de ficcionalização. Talvez o próprio livro perdido tenha outro dentro dele, ou até a ficção da qual o leitor é parte seja também uma miniatura de algo ainda maior. O uso da metaficcionalidade, quando se apresenta numa obra por meio da mise en abyme, busca justamente indicar que todos nós podemos ser parte de uma ficção que desconhecemos. Da mesma forma como olhamos especularmente para os personagens de um romance, alguém também pode está olhando para nós. Em Quatro-Olhos, essa percepção que confunde mundo real e mundo inventado torna-se ainda mais evidente porque nunca conseguimos delimitar onde começa e onde termina a obra perdida que o protagonista tenta reescrever. Ele está, conforme se ratifica na terceira parte do romance, sempre “De volta”, reiniciando sua escrita num processo interminável.

Nesse contexto, ao tratar da função narrativa da mise en abyme, Lucien Dällenbach reafirma que essa técnica literária, ao condensar ou citar o tema da narrativa que a constitui, termina por promover sua repetição interna. Diante disso, o autor explica que:

Não é pois de admirar que a função narrativa de qualquer «mise en abyme» se caracterize fundamentalmente por uma acumulação de propriedades vulgares da iteração e do enunciado de segundo grau, a saber a aptidão para dotar a obra duma estrutura forte, de lhe assegurar melhor a significância, de a fazer dialogar consigo mesma e de a prover dum aparelho de auto-interpretação. (DÄLLENBACH, 1979, p. 54)

Partindo dessa conceitualização, constata-se que a presença de uma obra no interior de outra não apenas estabelece uma relação de semelhança entre elas, como também o conteúdo condensado na mise en abyme colabora para uma melhor compreensão da obra como um todo. No caso específico de Quatro-Olhos, simplificadamente, o que se observa é a presença de um livro dentro do livro. O protagonista do romance explica, inclusive, ter estado “imerso no livro e o vivia mais que a vida” (POMPEU, 1976, p. 67). Na medida em que se avança no romance, o leitor percebe que o tema central da narrativa é o livro que foi escrito durante vários anos pelo protagonista, mas que terminou apreendido, sendo que seu autor não consegue refazê-lo. Em meio a essa dificuldade latente, ele volta-se para o leitor e explica:

Perdi os originais há muitos anos, em circunstâncias que não me convém deixar esclarecidas. Do trabalho, tão importante, guardo apenas memória vaga; de que havia indubitavelmente, um tema, ou vários temas, e mesmo um ou outro personagem, mas não consigo reproduzir um único gesto, nenhuma situação ou frase. (POMPEU, 1976, p. 15)

Esse trecho presente no início do romance deixa o leitor em suspenso na narrativa, confuso ao observar a dificuldade do narrador em contar sua história, mas também curioso para saber os motivos que levaram a perda do livro e da sua capacidade de narrar. Como propõe Lucien Dällenbach, nas narrativas em abismo há uma característica importante que deve ser observada: entre obra contida e obra que contêm se estabelece frequentemente uma relação de similitude. Dessa forma, a mise en abyme funciona como uma espécie de espelho, refletindo em tamanho menor a obra que a engloba.

Não é difícil encontrar no romance Quatro-Olhos alguns exemplos nesse sentido. Inicialmente, a narrativa de Renato Pompeu sofre uma mudança interessante na passagem da primeira para a segunda parte: o narrador de primeira pessoa é alterado para um narrador onisciente. Não por acaso Quatro-Olhos explica, já na mise en abyme de “Dentro”, que seu livro perdido também passou por semelhante mudança no foco narrativo: “Continuava a escrever o livro, mas já agora como observador” (POMPEU, 1976, p. 60). A alteração do foco narrativo, sugerida desde o início, produz na obra um afastamento do narrador, que passa a contar as ações muitas vezes criando a falsa impressão de que não é parte delas.

Além disso, nessa mesma narrativa em abismo Quatro-Olhos lembra que no seu livro as pessoas “eram marginalizadas dos eventos, presas nas malhas práticas da vida sobre a qual não exerciam a mínima influência” (POMPEU, 1976, p. 105), sendo que não tinham sequer nomes. Ao observamos a primeira e a terceira parte do romance de Renato Pompeu, veremos que nenhum dos personagens tem domínio sobre sua vida. Os nomes das pessoas com quem Quatro-Olhos se relaciona e dos personagens ficcionais que ele criou não são apresentados, sendo que o narrador, quando necessita se referir a eles, utiliza expressões como “minha mulher”, “amigo funileiro”, “moça abandonada”, entre outras. Até mesmo na segunda parte, quando se dá nome aos internos do hospício, trata-se na verdade apenas de apelidos construídos de acordo com as características físicas dos indivíduos ou dos problemas psiquiátricos que eles têm.

Da mesma forma, também quando se observa o gênero literário de Quatro- Olhos, é possível verificar que as vagas descrições do narrador a respeito dos elementos que constituíam a narrativa perdida são similares à obra que o leitor tem em mãos. Nesse sentido, a indeterminação e a incerteza tornam-se a marca principal da atividade de reescrita. O narrador não se recorda se sua obra perdida era um romance ou uma coleção de crônicas, por isso opta em certo momento por caracterizá-la como um “romance crônico”. Podemos tomar essa definição sob duas perspectivas: uma mais literal, que considera a expressão resultado da mistura de dois gêneros (romance e crônica); e outra mais metafórica, que constata no adjetivo crônico uma caracterização que remete a doença incurável e, portanto, interminável. Considerando esta última interpretação, verifica-se que realmente o ato de escrita do escritor-personagem chega a ser compulsivo, especificamente porque ele se torna completamente dependente da escrita.

Entretanto, a primeira interpretação também é válida, uma vez que, apesar de se autodeclarar romance, a obra de Renato Pompeu narra vários fatos cotidianos que a aproximam do gênero cronístico. Em um deles, por exemplo, o narrador conta a história de um moço que, mesmo apaixonado pela colega de trabalho, nunca teve coragem de se aproximar e por isso nem mesmo viu-lhe o rosto. Essa pequena história, composta de uma forte melancolia e de um amor platônico, tem como principal traço o absurdo da situação. Essa é, sem dúvida, a característica mais importante e mais recorrente dessas pequenas crônicas que o protagonista recorda ter escrito. Elas servem, essencialmente, para retratar o descompasso entre os desejos das pessoas e a realidade do mundo que as cerca.

Ainda tratando das semelhanças entre o romance e sua réplica interna, à medida que se envereda na leitura de Quatro-Olhos, mais características da obra perdida são apresentadas na primeira parte e as suas semelhanças com a obra que lemos continuam ocorrendo. Num dos exemplos que ilustram bem essa situação, Quatro-Olhos explica que a sua obra perdida sofreu alterações com o decorrer dos anos, acompanhando assim as mudanças do mundo e dele próprio. Nas suas palavras:

(...) o livro começou como uma coleção de historietas, no correr dos anos conseguiu um fio condutor nas chamadas preocupações sociais da juventude, transmutou-se depois numa avantesma fulgurante sob o influxo avassalador do realismo fantástico e já estava inaugurando uma cascateante nova corrente na literatura quando o perdi. (POMPEU, 1976, p.44)

Há muitos aspectos que devem ser ressaltados nessa passagem. Em primeiro lugar, o narrador destaca que sua obra perdida estava se transformando com o tempo, isto é, ela mantinha forte relação com o ambiente social e acompanhava as suas transformações. Começou sendo pequenos contos isolados de um escritor iniciante; aos poucos foi ganhando unidade ao tematizar às lutas socias que começavam a se delinear no cenário nacional e internacional; sequencialmente passou a caracteriza-se pelo realismo fantástico, provavelmente na tentativa de – por meio de uma literatura do absurdo – representar o autoritarismo dos militares que haviam chegado ao poder e começavam a reprimir as vozes dissonantes; por fim, a obra já estava tornando-se uma nova corrente literária quando foi perdida, ou melhor, apreendida pelos militares.

O romance que chega às mãos de nós leitores é dotado dessas mesmas características que ele diz ter estado presente no seu livro perdido. Como ressaltamos anteriormente, Quatro-olhos contém diversas histórias aparentemente isoladas, mas que se interligam pelo absurdo ou exótico de seus temas. Além disso, a temática das lutas sociais também está presente na narrativa e ganha corpo principalmente quando o protagonista fala de sua época como universitário e de seu envolvimento em atos políticos ao lado de outros estudantes. Por fim, o que se tem é um livro mutável, que se mostra acentuadamente diferente daquilo que predominou na produção literária da época. Como comenta seu narrador: “Tinha-o começado jovem ainda sem articulação e ele foi mudando comigo, de ingênuo a heroico para um misto de amargura e auto- satisfação” (POMPEU, 1976, p. 97).

Entretanto, mesmo que muitos aspectos da obra apreendida sejam os mesmo s presentes no romance Quatro-Olhos, é preciso relembrar que o livro perdido nunca é recuperado totalmente pelo narrador, o que ele consegue no máximo é apenas recontar fragmentos da obra. Por isso, diferentemente das narrativas em abismo em geral, quando se trata do livro perdido, apesar de ser citado inúmeras vezes na primeira parte do romance, não podemos delimitar sua existência a um único espaço da narrativa. Como somente os resquícios dele são recuperados durante a obra, o que se apresenta para o leitor é a descrição vaga de uma narrativa esquecida e inacabada. Mas que, paradoxalmente, se faz presente por toda a extensão da obra, dedicando-se a explicar os motivos de não estar presente ali em sua totalidade.

Nesse momento, talvez seja válido nos perguntarmos quais os motivos que levam a narrativa Quatro-Olhos a aproximar obra perdida de obra publicada. Em outras

palavras, quais as intenções e os efeitos gerados pela impressão de que o romance de Renato Pompeu é o próprio livro perdido? Em resposta a esse questionamento, parece plausível observar que a narrativa com isso gera uma sensação de que a obra perdida ainda não terminou, mas continua sendo escrita e será sempre. Assim, o romance autoproclama sua impossibilidade de internalizar todas as contradições do mundo moderno. Nesse sentido, a terceira parte do romance vem reforçar essa hipótese. Após ser liberado do hospício, Quatro-Olhos volta para a sociedade. Nesse retorno, ele “logo descobriu o que tinha de fazer. Escrever outra vez o livro” (POMPEU, 1976, p. 188).

O final do romance provoca o leitor a voltar ao seu início. Assim, o que se apresenta é um processo de eterno retorno, no qual temos uma narrativa que termina recomeçado uma atividade de reescrita infindável, mas não totalmente infrutífera. Nesse contexto, conforme também aponta Dällenbach, a mise en abyme se amplia em relação aos limites costumeiramente fixados: “micro-cosmos de ficção, impõe-se, semanticamente, ao macro-cosmo que a contém, ultrapassam-no e, duma certa maneira, acabam por englobá-lo” (DÄLLENBACH, 1979, p. 58). Trazendo esse comentário para o romance em estudo, vemos que a obra perdida e a sua reescrita, que inicialmente compõe apenas a primeira parte da obra, passam a englobar o romance como um todo. Assim, o microcosmo da reescrita da obra perdida não mais se limita a área de texto contido, saindo de dentro para fora, ele passa a dialogar e se confundir com o próprio romance Quatro-Olhos. Isto é, o leitor passa a observar que a obra perdida pelo protagonista pode ser justamente o livro que ele tem em mãos, uma vez que as similaridades entre eles são cada vez maiores.

Além disso, fica também a cargo do leitor buscar compreender qual a necessidade de se reescrever um livro perdido tão incomum. Na nossa avaliação, a narrativa de Renato Pompeu tematiza um livro perdido porque tem como objetivo principal na sua construção elaborar uma reflexão sobre o ato de escrever em um contexto social de crescente reificação e, de maneira mais específica, também refletir sobre o desafio de se produzir literatura num ambiente autoritário. Ambas as situações mostram o escritor vivendo dentro de uma sociedade que se opõe à ficção e ao imaginário. Nesse sentido, ao tematizar a impossibilidade de concluir uma história, a obra de Renato Pompeu é uma narrativa-chave a exemplificar a dificuldade que muitos escritores tiveram para, na atmosfera da ditadura, transferir para a ficção uma realidade tão absurda que eles constatavam na sociedade.

Dessa forma, reforçamos, a obra perdida e sua reescrita tornam-se a própria obra que o leitor tem em mãos e suas descrições colaboram para que ambas se autointerpretem. Em última instância, a ausência de uma história mais robusta vem denunciar no romance a própria fragilidade do seu contexto social, impossibilitando o escritor de se expressar plenamente diante da clausura. A literatura dos anos 70, conforme destacamos no primeiro capítulo, vivenciou um angustiante processo de sucateamento e incompreensão, refletindo na escrita literária a ausência de certezas que permeava a própria sociedade da época.

Consciente da impossibilidade de ficcionalizar, pelo menos a partir dos moldes convencionais de elaborar narrativas, a obra Quatro-Olhos volta-se para seu interior, buscando justificar a si mesma. É por esse mesmo motivo que a figura do seu autor passa a ter uma relação de tamanha proximidade com o narrador da ficção. Como produtor cultural, ele também se sente impotente para interpretar o real. Não conseguindo mais fixar um discurso coerente acerca do que vivencia, resta colocar-se em cena e informar ao leitor a sua dificuldade. Assim, temos os limites entre ficção e realidade sendo desconstruídos, restando ao leitor reconhecer que essas barreiras não mais existem. Dessa forma, a utilização da mise en abyme coloca no centro literário a

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