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Sem saída: a impossibilidade da ficção e a necessidade do real em Quatro-Olhos, de Renato Pompeu

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA LINHA DE PESQUISA: LITERATURA E MEMÓRIA CULTURAL. PAULO GUILHERMINO DOS SANTOS. SEM SAÍDA: A IMPOSSIBILIDADE DA FICÇÃO E A NECESSIDADE DO REAL EM QUATRO-OLHOS, DE RENATO POMPEU. NATAL/RN 2018.

(2) PAULO GUILHERMINO DOS SANTOS. SEM SAÍDA: A IMPOSSIBILIDADE DA FICÇÃO E A NECESSIDADE DO REAL EM QUATRO-OLHOS, DE RENATO POMPEU. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), para a obtenção do título de Mestre em Estudos da Linguagem. ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: Literatura Comparada ORIENTADOR: Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira. NATAL/RN 2018.

(3) Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes CCHLA Santos, Paulo Guilhermino dos. Sem saída: a impossibilidade da ficção e a necessidade do real em Quatro-Olhos, de Renato Pompeu / Paulo Guilhermino dos Santos. - Natal, 2018. 104f.: il. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem. Orientador: Prof. Dr. Andrey Pereira de Oliveira.. 1. Narrativa moderna Literatura - Dissertação. Metaficção - Dissertação. Dissertação. I. Oliveira, RN/UF/BS-CCHLA. Dissertação. 2. Quatro-Olhos 3. Renato Pompeu - Dissertação. 4. 5. Romance autobiográfico Andrey Pereira de. II. Título. CDU 82-3.09. Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710.

(4) PAULO GUILHERMINO DOS SANTOS. SEM SAÍDA: A IMPOSSIBILIDADE DA FICÇÃO E A NECESSIDADE DO REAL EM QUATRO-OLHOS, DE RENATO POMPEU. Dissertação aprovada em 28 de maio de 2018.. BANCA EXAMINADORA. ________________________________________________ PROF. DR. ANDREY PEREIRA DE OLIVEIRA (UFRN) ORIENTADOR. ________________________________________________ PROF. DR. ALEXANDRE SIMÕES PILATI (UnB) EXAMINADOR EXTERNO. ________________________________________________ PROFª. DRª. JULIANE VARGAS WELTER (UFRN). EXAMINADORA INTERNA.

(5) À minha avó materna Hilda Felinto. O meu maior exemplo de humildade, carinho e dedicação. Sempre que a vejo, renovo minhas esperanças..

(6) AGRADECIMENTOS. Aos meus pais, Antonio e Marineide, que mesmo não conhecendo muito sobre minha pesquisa, tiveram a sabedoria de sempre me apoiar. À Zilma Figueredo que, de maneira intuitiva, foi a primeira pessoa a criar as bases para que esse trabalho se tornasse possível. Ao meu orientador, Prof. Dr. Andrey de Oliveira, pela confiança depositada e pela coerência de sempre. Meu muito obrigado pelas orientações desde a época da Iniciação Científica. Aos alunos e professores do PPgEL que tive a oportunidade de conhecer durante o mestrado. Por meio do contato com alguns deles, pude aprimorar este trabalho. À CAPES, por me conceder uma bolsa durante o mestrado, permitindo que eu me dedicasse exclusivamente as atividades acadêmicas. Ao meu autor-criador, porque ele sabe de todas as minhas dúvidas, mas ainda assim escreveu essa importante página da minha vida..

(7) Verba volant, scripta manent. As palavras voam, os escritos permanecem. (Provérbio latino de origem imprecisa).

(8) RESUMO Na literatura moderna são cada vez mais recorrentes o autoquestionamento literário e a presença de marcas autobiográficas no corpo da narrativa. Partindo dessa percepção, este trabalho tem por objetivo analisar o romance Quatro-Olhos (1976), de Renato Pompeu, observando como nele se manifestam esses dois elementos aparentemente distintos. Por um lado, a metaficção que desvela os bastidores da própria obra, serve para reforçar as impossibilidades que incapacitam a narrativa de se concluir; por outro, os traços autobiográficos, profundamente fincados no contexto sociopolítico, evidenciam uma profunda necessidade de escrever. É justamente a partir desse ponto de conflito entre necessidade de ficcionalizar e impossibilidade de fazê-lo que o romance de Renato Pompeu se constrói, representando os dilemas e dificuldades que permearam a escrita. ficcional. no. contexto. da ditadura civil-militar. (1964-1985).. No. desenvolvimento de nosso estudo, utilizamos a proposta analítica de Antonio Candido (2006; 1993) a fim de ressaltar a maneira como o contexto social da época é internalizado na obra. Para isso, também nos ancoramos nos estudos de Gustavo Bernardo (2010), Gérard Genette (2003), Lucien Dällenbach (1979), Philippe Lejeune (2014), Seligmann-Siva (2003), Luzia de Maria (2005), entre outros teóricos. Palavras-chave: Narrativa moderna; Quatro-Olhos; Renato Pompeu; Metaficção; Romance autobiográfico..

(9) ABSTRACT In modern literature, the literary selfquestionning and the presence of autobiographical marks have become increasingly recurrent in the body of the narrative. From this perspective, this work aims to analyze the novel Four-Eyes (1976), written by Renato Pompeu, by observing how those two apparently distinct elements behave in the narrative. On one hand, the metafiction that unveils the backstage of the novel itself serves to reinforce the impossibilities that incapacitate the end of the narrative. On the other hand, the autobiographical traits, which are deeply based on the sociopolitical context, show a profound need to write. It is exactly from the conflict point between the need to fictionalize and the impossibility of doing so that the Renato Pompeu’s novel is built: by representing the dilemmas and the difficulties of fictional writing in the context of a civil-military dictatorship (1964-1985). Throughout the development of our study, we used the analytic proposition of Antonio Candido (2006; 1993) to emphasize how the social context of the given period is internalized in the novel. In addition to that, we also anchored the research in the studies of Gustavo Bernardo (2010), Gérard Genette (2003), Lucien Dällenbach (1979), Philippe Lejeune (2014), Seligmann-Siva (2003), Luzia de Maria (2005), among other theorists. Keywords:. Modern. Autobiographical novel.. narrative;. Four-Eyes;. Renato. Pompeu;. Metafiction;.

(10) SUMÁRIO. INTRODUÇÃO.............................................................................................................10. 1. DITADURA: O PANORAMA CULTURAL E O CASO QUATRO-OLHOS......15 1.1. A crise da literatura pós-64.......................................................................................15 1.2. A fortuna crítica de Quatro-Olhos............................................................................22. 2. DENTRO: A IMPOSSIBILIDADE DA FICÇÃO..................................................31 2.1. Autoconsciência........................................................................................................35 2.2. Intertextualidade.......................................................................................................44 2.3. Mise en abyme..........................................................................................................56. 3. FORA: A NECESSIDADE DO REAL....................................................................66 3.1. Trauma autobiográfico.............................................................................................70 3.2. Loucura social...........................................................................................................82. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................97. REFERÊNCIAS...........................................................................................................102.

(11) 10. INTRODUÇÃO Quando buscamos recordar os momentos mais complicados da história brasileira, os 21 anos de ditadura civil-militar, até mesmo pela proximidade histórica, logo são lembrados. Esse período caracterizou-se por um processo tão intenso de censura e repressão que até hoje nos parece interminável. Inicialmente, o apagamento da democracia iniciou-se com o golpe de 1964, marcado pelas afirmações dos militares de que estavam apenas combatendo a ameaça comunista; depois, com a promulgação do AI-5 em 1968, o governo militar tornou-se ainda mais coercivo, fechando o Parlamento e confirmando o estado de exceção; somente a partir de meados da década de 80, após a lenta e gradual redemocratização que culminou com a Constituição de 1988, foi que o Brasil voltou a retomar sua frágil democracia. Nos longos anos em que o Brasil esteve submetido ao poder militar, houve restrição de conteúdos nos meios de comunicação e perseguição violenta às pessoas que se posicionavam contra o regime. Em face desse contexto, é possível observar as marcas do autoritarismo na representação artística da época. Na literatura, entre os autores que se propuseram a ficcionalizar sobre aspectos da realidade ditatorial está Renato Pompeu (1941-2014). Natural de Campinas/SP, Renato Pompeu era de uma família de jornalistas e por isso acabou também enveredando pela profissão. Ele trabalhou em diversas redações, merecendo destaque os jornais Folha de São Paulo, Jornal da Tarde e a revista Veja. Mesmo tendo uma personalidade bastante introspectiva e não se envolvendo diretamente na luta contra a ditadura, o autor sofreu bastante com o autoritarismo. Após uma série de prisões injustificadas, seu quadro de esquizofrenia agravou-se e ele, por decisão própria, resolveu procurar um hospital psiquiátrico para que pudesse se tratar da doença. Entretanto, esses empecilhos gerados pela problemática situação política do país não cessaram a sua vontade de escrever. Pelo contrário, Renato Pompeu é autor de um número significativo de obras, que totalizam 22 livros de diversos gêneros, sendo que muitos deles foram escritos durante a ditadura. Entre os romances, destacam-se, além de Quatro-Olhos (1976), A saída do primeiro tempo (1978), A greve da rosa (1980), Samba-enredo (1982) e o romance-ensaio O mundo como obra de arte criada pelo Brasil (2006). De maneira geral, essas obras se debruçam sobre temas populares, como a sociopolítica do futebol, a cultura do carnaval, os dilemas da classe trabalhadora e a interação entre culturas promovida pela internet..

(12) 11. Entre os livros publicados por Renato Pompeu, o mais interessante deles, assim nos parece, é o seu romance de estreia. Publicado pela editora Alfa-Omega em 1976, a narrativa. intitulada. Quatro-Olhos. surpreende. pela. combinação. de. aspectos. metalinguísticos e autobiográficos. Esses dois traços perpassam toda a obra e estabelecem uma relação direta com a condição de vida nos piores anos da ditadura. Já na contracapa da primeira e, até o momento, única edição isolada do romance, o leitor se depara com o seguinte alerta que comprova o que dissemos: “Quatro-Olhos é uma obra de ficção. Mas a intensidade dos sentimentos e das ideias que nela se encontram é sem dúvida coisa vivida e vista com atenção, observada com cuidado. (...) É também – coisa rara – uma obra dotada de profunda reflexão sobre si própria”. Não é por acaso que a autorreflexão literária e a vivência pessoal são colocadas em destaque. A trajetória de escrita do livro, por si só, já merece ser ressaltada. Renato Pompeu começou a escrevê-lo em 1968, tendo produzido o primeiro capítulo todo num único dia. Entretanto, só veio a retomar o livro em 1975, após passar pelo tratamento psiquiátrico em regime de semi-internato. No ano seguinte, a obra foi publicada e, de maneira geral, recebeu críticas positivas. Porém, com o passar dos anos, ela foi sendo esquecida. Na nossa avaliação, a ausência de uma segunda edição do livro foi um dos motivos importantes para esse esquecimento, pois sem a republicação da obra restringiu-se a possibilidade de ela ser acessada por novos públicos. Quanto à estrutura da narrativa, de forma resumida, assim se organizam as três partes do romance: a primeira parte, “Dentro”, apresenta um narrador que relata sua angústia frente à tentativa frustrada de reescrever um livro que perdeu. Com a memória fragilizada, ele passa a destacar momentos soltos de sua vida pretérita, dando especial atenção à relação com sua esposa; a segunda parte, “Fora”, conta a vida do protagonista já no hospício e as estranhas relações estabelecidas entre os internos daquela unidade; a terceira e última parte, “De volta”, funciona como um epílogo, pois em poucas páginas narra-se a entrevista de Quatro-Olhos com um psiquiatra e sua consequente volta ao convívio em sociedade. Ao proceder à análise de cada uma dessas partes do romance, temos por objetivo evidenciar como o contexto sociopolítico da época é internalizado na estrutura discursiva da obra. Isto é, buscaremos ressaltar o modo como a ditadura aparece não apenas como tema do livro, mas também como parte integrante de sua estrutura formal, influenciando na escolha do foco narrativo, na elaboração dos personagens e em outros elementos estruturais do livro. Esperamos assim contribuir para, por um lado, estimular.

(13) 12. a redescoberta da obra de Renato Pompeu e, por outro, colaborar para uma maior reflexão sobre os caminhos tomados pela ficção pós-64. Nisso, iremos analisar aqueles que são os dois maiores fios condutores da obra, a autorreflexão literária e o emprego de traços autobiográficos. Diante desse objetivo proposto e desse recorte analítico escolhido, ancoramo-nos na proposta teórica de Antonio Candido, chamada de crítica integrativa ou sociocrítica, para elaborar a nossa análise-interpretativa. Antonio Candido destaca que, por algum tempo, se analisaram as obras literárias ora valorizando apenas seus fatores internos, ora enfatizando apenas seus fatores externos. Em meio a isso, ele aponta como melhor caminho o estudo literário que opte por uma posição intermediária em que “a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra” (CANDIDO, 2006, p. 13). Dessa maneira, o seu método de análise preza por uma investigação do texto literário que, observando o ambiente social, busque entender como essa realidade exterior está esteticamente reduzida na estrutura do texto ficcional. Em O discurso e a cidade (1993), Antonio Candido buscou entender essa redução estrutural a partir de termos dialéticos. Assim, ao analisar O cortiço, ele aponta a representação da passagem de uma organização social espontânea para outra dirigida. Segundo o crítico, “no começo é como se o cortiço fosse regido por lei biológica; entretanto a vontade de João Romão parece ir atenuando o ritmo espontâneo, em troca de um caráter mais mecânico de planejamento” (CANDIDO, 1993, p. 135). Nesse contexto, o cortiço se apresenta como alegoria do Brasil e sua organização espacial vai se modificando ao longo do romance. Com o decorrer do tempo, a intervenção humana vai permitindo que ele abandone o primitivismo econômico e se estabeleça de acordo com a visão planejada de uma sociedade capitalista. Já ao analisar Memórias de um sargento de milícias, Candido afirma que os personagens flutuam entre alguns comportamentos do polo da ordem e outros do polo da desordem. Nesse sentido, o autor destaca que “o mundo hierarquizado na aparência se revela essencialmente subvertido” (CANDIDO, 1993, p. 43). Assim, vê-se que o comportamento do protagonista Leonardo e dos demais personagens é marcado pela amoralidade. Em outras palavras, eles vivem num universo livre da culpa e do pecado, aceitando as pessoas com elas são. Por meio da construção desses personagens pouco afeitos a regras, o romance se opõe ao comportamento tipicamente europeu e mostra a transgressão como parte constitutiva da sociedade brasileira..

(14) 13. Transferindo semelhante processo analítico para a obra de Renato Pompeu, percebemos que essa narrativa também se estabelece a partir de um conflito dialético, uma vez que a presença de um termo parece negar a do outro. Nesse sentido, o romance Quatro-Olhos se instaura a partir do impasse entre a impossibilidade de ficcionalização do mundo e, ao mesmo tempo, a necessidade cada vez mais vigente de que essa representação seja feita. Como resultado, surge um romance fragmentado não apenas em suas partes composicionais, como também na construção temática e na configuração do protagonista. Tal estilhaçamento, como veremos, representa bem a posição do escritor de literatura e da sociedade brasileira durante os longos anos de ditadura. Para efetivação dessa proposta analítica, ao desenvolver nosso estudo do romance, iremos, no capítulo 1, contextualizar Quatro-Olhos como parte integrante da literatura produzida durante a ditadura. Para isso, levantaremos as polêmicas em torno da escrita literária da época e a consequente crise de identidade vivida por ela. Posteriormente, iremos focalizar a fortuna crítica do romance de Renato Pompeu, destacando a parca abordagem analítica que a obra teve ao longo dos anos. Nosso intuito, com esse processo, é sedimentar o caminho para que, associada à análise do romance, possamos perceber a obra como uma narrativa-chave para se compreender a literatura produzida durante o regime civil-militar. Sequencialmente, enveredando pela análise e interpretação do romance em si, buscaremos dissertar a partir da própria divisão que se estabelece desde o seu título e se consuma na nomeação de suas partes. O título Quatro-Olhos sugere pelo menos duas leituras: uma primeira enxerga tal nome como uma referência ao apelido que o protagonista recebe após ser internado no hospício, provavelmente por usar óculos e ser visto pelos demais como um homem intelectualizado. Entretanto, é uma segunda interpretação, acentuadamente mais metafórica, que iremos aprofundar durante nossa análise. Nela, o título Quatro-Olhos é compreendido como uma referência ao duplo olhar que se estabelece na narrativa: no começo, um olhar de dentro, com o foco narrativo sendo totalmente na primeira pessoa do singular (narrador-personagem); depois, um olhar de fora, com o foco narrativo sendo predominantemente na terceira pessoa do plural (narrador-observador). Diante disso, no capítulo 2, para investigar o narrador de “Dentro” da primeira parte do romance, iremos utilizar o conceito teórico de metaficção (BERNARDO, 2010) com o intuito de depreender as impossibilidades que impedem a narrativa de se concluir. Nesse sentido, buscaremos nas nossas reflexões teóricas mostrar como a.

(15) 14. narrativa de Renato Pompeu consegue refletir sobre suas fraturas por meio da autoconsciência,. se. correlacionar. com. outras. obras. ficcionais. através. da. intertextualidade e, ao mesmo tempo, aprofundar a busca pelo entendimento de si mesma pela via da mise en abyme. Já no capítulo 3, para investigar o narrador de “Fora” da segunda parte do romance, iremos utilizar o conceito teórico de romance autobiográfico (LEJEUNE, 2014) com o intuito de evidenciar a necessidade de escrita por parte do protagonista. Nesse contexto, procuraremos mostrar em nossas reflexões teóricas como o romance Quatro-Olhos consegue estabelecer uma traumática relação autobiográfica com o seu autor e, ao mesmo tempo, representar por meio do hospício a sociedade brasileira submetida ao regime ditatorial. Para o desenvolvimento de toda essa nossa análise, partiremos da hipótese de leitura segundo a qual a obra de Renato Pompeu radicaliza a experiência entre realidade e ficção, mostrando que as duas – apesar de paradoxais – podem se solidificar num romance que nasce do impasse entre a necessidade de entender a realidade social e a impossibilidade linguística e política de fazê-lo. Assim, esperamos concluir ao final de nosso estudo que, em Quatro-Olhos, as aporias do mundo real e do mundo ficcional se confundem a tal ponto que o narrador fica preso diante do “problema insolúvel de como representar a vida na arte” (LODGE, 2010, p. 227). Sem saída e estando sempre “De volta” ao começo, parece ter restado a ele como única opção voltar-se sobre si mesmo e persistir eternamente na escrita e reescrita de sua obra..

(16) 15. 1. DITADURA: O PANORAMA FICCIONAL E O CASO QUATRO-OLHOS Entre as características manifestadas na ficção moderna, a autorreflexão literária é, inegavelmente, uma das mais representativas. Os escritores, em geral, não se limitam mais a discutir as formas e utilidades de sua arte apenas no ambiente extraliterário (conversas, ensaios, entre outros), por isso trazem essas discussões também para dentro do próprio texto, revelando ao leitor as angústias e dúvidas que acompanharam a sua produção. Na prosa, um bom exemplo de obra que se enquadra nessa perspectiva é o romance Quatro-Olhos, de Renato Pompeu. Publicado ainda sob a égide da ditadura civil-militar, essa narrativa discute a função da literatura em um contexto autoritário, evidenciando para o leitor as dificuldades e contradições com as quais os escritores da época se viram obrigados a conviver. Para análise desse romance, que é o objeto de nossa dissertação, partimos da hipótese de que ele é uma narrativa-chave para se compreender as posições assumidas pelos escritores e pela literatura no contexto ditatorial. Como verificaremos a seguir, ambos – escritor e escrita – entraram em crise diante das dúvidas relativas à qual deveria ser a função assumida pela arte num tempo de forte repressão. Por isso, antes de enveredarmos pela análise de Quatro-Olhos, é preciso que aprofundemos a avaliação sobre as condições de produção literária após o golpe de 1964 e, nesse ínterim, destaquemos o modo como a crítica vem avaliando o romance de Renato Pompeu.. 1.1. A crise da literatura pós-64 Ao analisar de maneira ampla a cultura e a política brasileiras entre os anos de 1964 e 1969, Roberto Schwarz (1992), em um texto publicado originalmente no final da década de 60, afirma: “Apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural da esquerda no país” (SCHWARZ, 1992, p. 62). Essa constatação é basilar para se compreender a atuação artística na época da ditadura, uma vez que explica os diversos atos de repressão e censura que foram praticados contra escritores, atores e cineastas. Partindo dessa linha de pensamento, o crítico aponta que durante os primeiros anos após o golpe de 1964 o país viveu um período de forte criação e propagação cultural. Entretanto, “em seu conjunto, o movimento cultural destes anos é uma espécie de floração tardia, o fruto de dois decênios de democratização, que veio a amadurecer.

(17) 16. agora, em plena ditadura, quando as suas condições sociais já não existem” (SCHWARZ, 1992, p. 89). Ao analisar esse florescimento tardio que causou o predomínio de uma arte de esquerda, já naquele período, Schwarz alerta para o fato de que tal mercado cultural, apesar de autossuficiente, limitava-se apenas a um pequeno e reduzido grupo de pessoas. Assim, o pensamento de esquerda não era a ideologia dominante dentro do conjunto da sociedade brasileira, restringindo-se basicamente ao espaço dos círculos intelectuais. No seu único comentário mais detalhado sobre a literatura, o autor destaca o romance Quarup (1967), de Antônio Callado, e explica que nessa obra vê-se a representação da conversão do intelectual em militante, um desejo da elite letrada da época que foi muito representado na ficção. Porém, ao refletir sobre papel da arte dentro da sociedade, Schwarz questiona a eficácia desse ativismo e chega a dizer que quando a produção cultural tenta servir de arma para uma revolução política “o resultado não é lisonjeiro” (SCHWARZ, 1992, p. 92). Diante disso, observa-se que já nos primeiros anos após o golpe civil-militar, a crítica de arte identificava uma dificuldade dos produtores culturais em conciliar o trabalho artístico com as exigências de atuação política. Contudo, uma maior análise da produção cultural, e mais especificamente da literatura, será feita somente a partir da década de 70. Os estudos dessa época centraram sua atenção nesses dois temas já introduzidos e problematizados por Schwarz: o nível de qualidade estética das produções artísticas e sua capacidade ou não de intervir no conturbado contexto autoritário daquele período. Em relação a esses temas que envolvem as condições de escrita no pós-64, os ensaios de Davi Arrigucci (1979) e de Silvano Santiago (1982),1 produzidos também no calor da época, apresentam as primeiras tentativas mais aprofundadas de sistematização da literatura então produzida. Mas naturalmente, nas décadas seguintes aos anos 70, houve uma ampliação no debate e uma consequente polêmica em torno das escolhas estéticas que foram feitas pela maior parte dos escritores. Nesse sentido, o juízo de valor sobre a qualidade das obras colocou as críticas de Flora Sussekind (1982) e de Tânia Pellegrini (1996) em posições opostas.. 1. Apesar de ter sido publicado nesse ano, o ensaio de Silvano Santiago foi escrito precisamente em 1979, conforme registro anotado ao final do próprio texto..

(18) 17. Inicialmente, devemos destacar a busca de Davi Arrigucci (1979) por apresentar uma interpretação acerca da ficção produzida nos piores anos da ditadura. Em tom ainda de incerteza, vista a proximidade histórica, e participando de um debate sobre o romance brasileiro da época, ele afirma: Eu acho o seguinte: na ficção de setenta para cá apareceu uma tendência muito forte, um desejo muito forte de voltar à literatura mimética, de fazer uma literatura próxima do realismo, quer dizer, que leve em conta a verossimilhança realista. E com um lastro muito forte de documento. Portanto, dentro de uma tradição geral do romance brasileiro, desde as origens. (ARRIGUCCI, 1979, p. 79). Segundo o autor, a narrativa brasileira estava naquele momento retomando sua veia realista e estabelecendo fortes relações com o jornal por meio de um caráter documental. Ele ilustra seu pensamento citando os romances Lúcio Flávio (1975), de José Louzeiro, Reflexos do baile (1976), de Antônio Callado e Cabeça de Papel (1976), de Paulo Francis. Nessas obras, percebe-se uma construção narrativa que se utiliza da alegoria como principal recurso literário para representar a dureza da vida naquela sociedade autoritária. Na visão de Arrigucci, esses três romances, apesar de conterem ideias interessantes, parecem fracassar em sua formalização justamente porque apresentam a realidade imediata sem que haja um aprofundamento estético. Nesse sentido, o crítico paulista questiona se os escritores não estariam mergulhando excessivamente em suas próprias singularidades. Implicitamente, o que estava por trás dessa posição crítica era o receio de que, apegando-se demasiadamente às circunstâncias de momento, as obras literárias perdessem os valores de atemporalidade e universalidade que são tão caros ao fazer artístico. Diante do agudo momento histórico que vivia o país, era compreensível o desejo dos escritores em retratar um conteúdo de verdade, até porque muitos deles eram do meio jornalístico. Os leitores, por sua vez, também nutriam interesse em conhecer os meandros da luta contra a ditadura por meio de uma literatura parajornalística. Como explica Flora Sussekind (1985), “esta ficção de mãos dadas com o jornalismo foi a que encontrou maior sucesso popular e a que reuniu talvez o maior número de fiés praticantes” (SUSSEKIND, 1985, p. 58). Assim, ainda segundo a autora, em relação a essas obras que, escritas durante os anos de autoritarismo, foram sucesso de vendas, serve de exemplo emblemático o caso do romance Os carbonários (1980). De autoria do escritor e jornalista Alfredo Sirkis,.

(19) 18. essa obra conseguiu – já no mesmo ano em que foi publicada – atingir a sua quarta edição. Mesmo assim, passado os anos, ao observarmos o esquecimento ao qual foi relegada quase que toda a literatura produzida nesse período, podemos então constatar que as escolhas estéticas feitas pelos escritores enclausuraram essas obras nos limites históricos da ditadura. De toda forma, a discussão em torno dos caminhos tomados pela ficção pós-64 continuou buscando compreender as escolhas temáticas e a qualidade dos recursos literários empregados. Por isso, nessa mesma época, as reflexões propostas por Silvano Santiago (1982) empreenderam-se na tentativa de entender essa literatura observando as consequências geradas pela censura dos militares no meio artístico. Segundo o autor, num país em que havia um enorme número de analfabetos, em que a comunicação de massa ocupava quase todo o espaço cultural e em que o livro era um objeto relativamente caro, poucas eram as pessoas que usufruíam das obras literárias e, justamente por isso, seu poder de mobilização era quase nulo. Esse cenário negativo, afirma ele, radicalizou-se com a censura, tornando ainda mais escasso o número de leitores. Porém, numa argumentação polêmica, Santiago afirma que a repressão e a censura promovidas pelos militares não dificultaram, em termos de quantidade, a produção literária, pois elas “podem, no máximo, alimentar certa preguiça latente em cada ser humano, podem apenas justificar o ócio que impele o artista muitas vezes a fazer só amanhã e pensar hoje” (SANTIAGO, 1982, p. 49). Essa opinião pode ser contestada, uma vez que existia censura aos livros2 e muitos escritores, amedrontados pelo autoritarismo, se autocensuravam. De qualquer forma, o que se percebe é que derrotados com a censura não foram apenas os escritores, parcialmente impedidos de ficcionalizar sobre a problemática vivida pelo país, mas também a imensa maioria da população, que permaneceu alheia ao processo histórico que transcorria. Em relação à opção estética dos livros publicados, Silvano Santiago identifica, além do realismo mágico, a tendência ao verossímil apontada por Arrigucci. Nesse 2. Segundo Zuenir Ventura (1988), foram censurados cerca de 200 livros. Já segundo Sandra Reimão (2011), esse número chega a aproximadamente 490 livros. Os números apontados por Reimão nos parecem mais precisos, uma vez que a autora se baseia em documentos do DCDP (Departamento de Censura de Diversões Públicas) e em um levantamento feito por Dionísio da Silva. Com base no cruzamento desses dados, Sandra Reimão constata que os livros de ficção censurados eram minoria, sendo que a censura ocorria mais pela presença de conteúdo erótico contrário aos “bons costumes” do que pela presença de conteúdo político que se opusesse à ditadura. Entre as poucas obras ficcionais censuradas, podemos citar como exemplos Zero (1976), de Ignácio de Loyola Brandão e Feliz ano novo (1975), de Rubem Fonseca..

(20) 19. sentido, ele denomina os livros com essa tendência de romances-reportagens e afirma que a intenção principal deles era “desficcionalizar o texto literário e com isso influir, com contundência, no processo de revelação do real” (SANTIAGO, 1982, p. 52). Desse modo, mesmo restrita a um pequeno público, Santiago enxerga a literatura como um espaço privilegiado, pois foi utilizado pelos escritores para burlar a censura existente nos meios de comunicação de massa: Já que a censura não visava apenas às artes, mas a todas as formas de expressão dentro da sociedade, ocorreu também que o jornal não pôde mais dizer o que queria. (...) Passou então a literatura a ter uma função parajornalística (...). Exatamente porque acusa a censura e porque a acusa dentro de um estilo que é a simples transposição do real, como é o estilo jornalístico, este tipo de livro teve o maior sucesso no período e foi o mais perseguido. (SANTIAGO, 1982, p. 53-54, grifo do original). Assim, Santiago constata que a vertente realista da literatura ganhou força ao se associar ao jornalismo. Posicionando-se diante da discussão também feita por Davi Arrigucci, o autor defende que esse tipo de livro não tem um valor menor. Como justificativa, ele não se baseia na formalização estética das obras, mas na atuação contra a censura que elas tiveram naquele contexto social. Percebemos, então, que há nesse ponto uma valorização do engajamento social da literatura mesmo que em detrimento de uma maior elaboração estética da linguagem. Nesse contexto, a problemática entre o estético e o social, que envolve o valor de cada um e a dificuldade de conciliá-los, vai ser ainda mais discutida na crítica literária dos anos seguintes ao regime civil-militar. Flora Sussekind, em Literatura e vida literária (1985), inicialmente apresenta em três momentos a forma como a ditadura buscou se relacionar com o meio cultural: a primeira, utilizada a partir do golpe de 1964, se baseava no espetáculo midiático como método de alienação; a segunda, posta em prática em 1968 com o AI-5, buscou impedir a circulação da produção cultural por meio da censura; a terceira e última, iniciada em 1975 com a Política Nacional de Cultura, ambicionou cooptar os intelectuais com o intuito de centralizar a produção cultural nas mãos do Estado. Segundo a autora, mesmo diante dessas políticas que buscavam desvirtuar o poder libertador da expressão artística, nos meios intelectuais começou a proliferar uma posição exigindo, ao custo até mesmo da qualidade estética, uma arte que estivesse mais bem engajada no combate a ditadura. Esse tipo de arte, uma constante no pensamento de muitos intelectuais de esquerda, foi alvo de intensas discussões, principalmente a partir.

(21) 20. de 1978 quando o cineasta Cacá Diegues afirmou, em entrevista,3 existir uma pressão para se produzir obras comprometidas ideologicamente. Tal percepção ficou consagrada por meio da expressão “patrulhas ideológicas” e mostra o grau de desassossego que pairou sobre os produtores culturais da época. Assim, na visão de Sussekind, por meio da atuação dos intelectuais comprometidos com o combate à ditadura, foi “na literatura-verdade, na parábola e no depoimento biográfico que a prosa de ficção e a poesia pós-64 encontram seus caminhos privilegiados de expressão” (SUSSEKIND, 1985, p. 41). Nisso, a autora identifica a vitória da crítica sociológica sobre a crítica estrutural num debate que gerou muitas polêmicas dentro do meio universitário. Isso ocorreu porque o estruturalismo passou a ser visto pela maioria dos intelectuais de esquerda como um inimigo do pensamento engajado. Sussekind vê com negativismo esse grande apreço dado a uma literatura cada vez mais presa apenas aos fatos do mundo real, pois na visão dela, ao afastar-se da pluralidade expressiva, a literatura acabou cedendo às mesmas armas do autoritarismo. Isto é, mesmo se opondo aos ditadores, a ficção termina por querer impor um discurso único de verdade que segue a mesma lógica totalitária empregada diariamente pelos militares. Porém, ainda que não enxergue um grande valor estético nessa literatura documental, a autora soma-se a Silvano Santiago quando compreende que esse tipo de narrativa buscou ocupar o lugar de denúncia dos jornais que estavam submetidos à censura: A imagem predominante tem sido a de uma forma de expressão obrigada a exercer quase que exclusivamente funções compensatórias. Isto é: a dizer o que a censura impedia o jornal de dizer, fazendo em livro as reportagens proibidas nos meios de comunicação de massa. (...) Para exercer tais funções a literatura opta por negar-se enquanto ficção e afirmar-se como verdade. O naturalismo torna-se todo-poderoso. (SUSSEKIND, 1985, p. 57). Diante desse quadro, Sussekind reforça que a narrativa de ficção marcou-se essencialmente pela “literatura-verdade”, sendo que as narrativas compreendidas sob esse signo subdividem-se em dois grupos: uma minoria que apresenta maior elaboração literária, pois se afastou do realismo radical que predominou entre os escritores da 3. Publicada pelo Estado de São Paulo e, em seguida, pelo Jornal do Brasil, a afirmação de Cacá Diegues gerou muitas controvérsias, algumas delas expostas em Patrulhas ideológicas, marca reg. (1980), livro que reúne entrevistas feitas por Carlos Alberto Pereira e Heloísa Buarque de Hollanda..

(22) 21. época, servindo de exemplos Em liberdade (1981) e Confissões de Ralfo (1975); e uma maioria, de menor elaboração literária, pois se utilizou da ficção para contar atos de violência a partir de memórias emocionadas, servindo de exemplos Em câmera lenta (1977) e O que é isso, companheiro? (1979). Esse segundo grupo, que constitui a maior parte das narrativas da época, utilizou-se predominantemente da alegoria. Na visão da autora, esse recurso é pouco eficiente. Ao exemplificar uma realidade geral de repressão por meio de um caso particular de violência, a alegoria conduz a obra a uma leitura unívoca em que à chave de interpretação é sempre o conhecimento político e referencial do momento. Entretanto, como já dissemos, essa opinião não é unânime, sendo fonte de intensos debates no meio intelectual. Por isso, na década de 90, a pesquisadora Tânia Pellegrini propõe uma nova interpretação para a literatura produzida nos anos de chumbo. Em Gavetas Vazias (1996), ela afirma que no período da ditadura produziu-se uma literatura de resistência que tanto em sua crítica direta como em sua crítica camuflada não serviu aos desejos dos militares, pelo contrário, enfrentou diretamente a censura promovida por eles, impedindo que o período se consumasse enquanto vazio cultural e informativo. A autora reconhece que houve uma avaliação pejorativa em relação à literatura da época, citando diretamente o trabalho de Flora Sussekind. Entretanto, não se coaduna com essa posição, pois entende que a literatura estava atuando numa função tática: “alegórica ou testemunhal, memorialística ou jornalística, essa literatura parece dar vazão a uma premência de ocupar certo vácuo criado pela censura, proibindo a circulação de notícias e informações; essa foi sua função específica” (PELLEGRINI, 1996, p. 24, grifos do original). Pellegrini identifica, portanto, nessa literatura de resistência, que documentava o que era censurado nos meios de comunicação de massa, uma tendência legitimada pelo contexto social autoritário em se priorizar a divulgação de informações em detrimento do trabalho com a linguagem. Em relação a esta literatura, “não é possível, portanto, julgá-la, tendo como critério de valor exclusivo a presença/ausência maior ou menor de elaboração formal, que é apenas um dos elementos de um contexto muito mais amplo” (PELLEGRINI, 1996, p. 24). Na verdade é preciso, segundo a autora, considerar o desapego estético não como um fracasso na formalização literária do contexto vivido, mas como um elemento representativo da atuação corajosa perante à clausura. Essa preocupação política e social não estaria ligada, portanto, a um conservadorismo que retrocedeu ingenuamente ao.

(23) 22. realismo, mas a um instrumento de desvelamento do real, de denúncia angustiada por aqueles que temem a possibilidade do esquecimento. Por isso, na visão de Pellegrini, a alegoria surge como uma alternativa importante para recriar o espaço fragmentado e caótico no qual os indivíduos estavam subjugados. De maneira geral, portanto, percebemos que Arrigucci e Sussekind têm uma posição de questionamento e contestação frente ao realismo documental assumido por parte da literatura pós-64, enquanto que Santiago e Pellegrini têm uma posição compreensiva em relação às limitações dessa literatura. A discussão, assim, está longe de ter uma solução final. No âmago do debate está o questionamento básico a respeito do que é literatura: um objeto imanente que deve estar acima da realidade momentânea ou um objeto social que deve dialogar e interferir nessa realidade? Para uma geração inexperiente que se formou no caos da ditadura, é difícil imaginar uma resposta ao arbítrio que não seja a revolta imediata, mesmo que de maneira desorganizada. Assim, a compreensão sobre a qualidade e o valor da parte majoritária da ficção produzida nos anos 70 depende, essencialmente, do que se entende por função da arte. Na nossa avaliação, a opção pelo realismo de denúncia, considerando o contexto de censura, é legítima e deve ser compreendida justamente a partir dele. Entretanto, houve um pequeno número de narrativas que conseguiram uma boa formalização estética e, ao mesmo tempo, tematizaram aquela sociedade autoritária, demonstrando que a fusão entre engajamento político e elaboração literária não só é possível, como também necessária.. 1.2. A fortuna crítica de Quatro-Olhos Dentre as poucas narrativas a conseguir conciliar os anseios políticos com as necessidades estéticas, está o romance de Renato Pompeu, que opta justamente por discutir as dificuldades do escritor em transpor para a escrita a realidade vivida. Em Quatro-Olhos, a censura, a literatura engajada e a representação da realidade são temas que atordoam o protagonista e, diante de impossibilidade de equacioná-los, o narrador traz esses questionamentos para dentro do próprio texto ficcional. Talvez por isso, apesar de pouco estudada, essa narrativa de Renato Pompeu é frequentemente citada de maneira positiva por aqueles que analisaram a literatura da época. Conforme veremos a partir dos estudos críticos que tivemos acesso durante nossa pesquisa, predominou na.

(24) 23. análise do romance a busca por observar o questionamento da literatura e a tematização do louco que é realizada nele. No debate que Arrigucci participou e que comentamos anteriormente, QuatroOlhos é citado juntamente com Zero (1975), de Ignácio de Loyola Brandão e A festa (1976), de Ivan Ângelo. Os três são apontados como as melhores narrativas do período, sendo que, apesar de não conhecer profundamente o romance de Renato Pompeu, Arrigucci tece elogios a sua realização estética. Além disso, compara Quatro-Olhos com outro romance do período: Armadilha para Lamartine (1976), de Carlos Sussekind. Essa análise comparativa irá acompanhar a história crítica dos dois romances, isso porque ambos têm muitos pontos em comum, especialmente no que se refere à presença da loucura. No próprio estudo de Flora Sussekind, tal comparação é utilizada para dizer que os dois romances, “abandonando em parte o caráter de simples registro biográfico ou de diário hospitalar (...) vai permitir que, no momento mesmo de maior sucesso da literatura parajornalística, se reafirme, contra a corrente, a ideia de ficcionalidade e se problematize a própria figura do narrador” (SUSSEKIND, 1985, p. 66). Essa situação ocorre de uma maneira muito específica nesses romances, os quais se utilizam de um narrador que, tendo perdido sua sanidade, fica impossibilitado de produzir um discurso coerente em relação ao ambiente que o rodeia. Desse modo, a autora avalia como positivo o fato dessas narrativas estarem permeadas de contradições e duplicidades. No entanto, o mais antigo estudo sobre Quatro-Olhos que conseguimos rastrear é de Flávio Aguiar (1997). Seu texto, escrito no ano seguinte à publicação do livro, opta por destacar a peculiar loucura manifestada na narrativa. O autor inicia sua crítica afirmando que “uma infinita perda guia o romance” (AGUIAR, 1997, p. 147). Trata-se da perda de um livro que, na visão do estudioso gaúcho, é o próprio alter ego do narrador. Diante dessa perda, o autor propõe que o romance seja divido em três momentos: escrita, procura e tentativa de reconstruir o livro. Após fazer essa análise mais geral, na qual se ressalta também o aspecto satírico e paródico da obra, Aguiar se aprofunda na temática da loucura por meio do seguinte questionamento: “como ter plena razão num mundo inteiro guiado pela desrazão?” (AGUIAR, 1997, p. 148).. Partindo dessa pergunta, o autor foca sua atenção nos. personagens, destacando a esposa do protagonista e Opontolegário, um dos internos do hospício, como os mais importantes para economia do livro. Em seguida, ele focaliza a figura do narrador para destacar a incompletude da narrativa construída por ele. Por fim,.

(25) 24. Aguiar associa o próprio romance perdido à figura do herói problemático teorizado por Lukács e, num último comentário sobre a obra de Pompeu, explica como ela revela a “desagregação humana na urbanidade selvagem a que chegamos” (AGUIAR, 1997, 151-152). Diferentemente desse trabalho, outros textos da época que analisaram QuatroOlhos buscaram cada vez mais se fixar na comparação com Armadilha para Lamartine. Entre eles, o ensaio de Marcos Augusto Gonçalves e Heloisa Buarque de Hollanda (1979) afirma que ambas as narrativas tematizam a intelectualidade militante e se destacam porque, utilizando-se de uma construção multifacetada, tematizam também a cultura de sua época. Em relação à narrativa de Renato Pompeu, eles afirmam ser “uma narrativa que, desde o início, fala e parece duvidar de si mesma, de sua precisão, de sua capacidade de estabelecer-se definitivamente” (GONÇALVES; HOLLANDA, 2005, p. 123-124). Essa observação arguta, que aborda o caráter metaficcional do romance, revela os dilemas daqueles que escreviam e suas intenções de combater toda espécie de esquecimento. Desse modo, no romance, “a própria literatura (...) surge relativizada em sua suposta capacidade de se apoderar da realidade e de funcionar como instrumento privilegiado de intervenção política” (GONÇALVES; HOLLANDA, 2005, p. 124). Quatro-Olhos se apresenta justamente como um questionamento sobre o poder de ação da literatura, de modo a estabelecer uma reflexão sobre a própria ficção da época. Segundo Gonçalves e Hollanda, Quatro-Olhos e Armadilha para Lamartine, juntamente com A festa e Zero, são as melhores narrativas do período, pois não naufragam no realismo simplificador, pelo contrário, “mostram que, na literatura, o engajamento político pressupõe e mesmo só se realiza num engajamento com a própria linguagem” (GONÇALVES; HOLLANDA, 2005, p. 124). Em outro escrito que aborda Quatro-Olhos, Luiz Costa Lima (1981) o coloca novamente em associação com Armadilha para Lamartine. Na visão do crítico, essas duas narrativas criaram na sua época uma variante na experiência literária brasileira. Segundo ele, tinha-se no Brasil uma literatura fechada, pois escritor e leitor pertenciam à mesma classe social média burguesa. Entretanto, ao partir da temática da loucura, esses dois romances ampliaram a linha memorialista e antropológica que preponderava, evidenciando a “presença de uma alteridade estranha” (COSTA LIMA, 1981, 127). Assim, o autor entende que a loucura tornou-se uma variante, uma vez que permitiu o surgimento de características específicas no discurso desses dois romances..

(26) 25. Em Armadilha para Lamartine, a loucura é resultado do desajuste na relação entre pai racionalista e filho revoltado. Já em Quatro-Olhos, a loucura ocorre em parte pelo desajuste do protagonista quando submetido ao estado ditatorial. Em relação a este, Costa Lima destaca a falta de linearidade no romance de Pompeu e sua opção por não se utilizar de uma construção meramente causalista. Nesse sentido, ele avalia que o romance também inova ao apresentar uma interpretação antropológica da realidade por meio de um narrador que “se permite ver de uma posição distante o seu meio próximo” (COSTA LIMA, 1981, p. 137). Em outras palavras, o narrador apresenta-se em muitos momentos como mero observador, não participando da realidade que o cerca. Ademais, de maneira pertinente, Costa Lima ressalta a autoconsciência literária no romance e afirma que nele “questiona-se uma literatura, questiona-se a literatura e, ao mesmo tempo, exercita-se a literatura, como forma de crítica ao presente, embora se saiba dos limites de eficácia desta crítica” (COSTA LIMA, 1981, p. 139, grifos do original). No que se refere à crítica ao presente vivido naquela época, o autor enfatiza que há na obra um relato desvelado sobre a hipocrisia presente na militância de esquerda, como também há, por parte do narrador-personagem, uma autocrítica em relação ao seu próprio comportamento. Porém, mesmo reconhecendo o valor de análises como essa, percebemos que estudos mais detalhados sobre o romance só vieram a ocorrer anos depois. Nesse sentido, destacam-se pelo menos dois ensaios escritos por Renato Franco.4 No primeiro desses trabalhos, o autor explica que, com a decretação do AI-5, o setor da produção cultural sentiu-se derrotado e a literatura passou a “narrar os impasses do escritor que não sabia decidir se era mais necessário escrever ou fazer política, constituindo assim um tipo de romance desiludido” (FRANCO, 2003, p. 354). Esse escritor, instado a participar de um engajamento político, enfatizava em sua produção tanto a debilidade da política revolucionária como as limitações da ficção em interpretar a realidade vigente. Desse modo, Franco aponta que, em Pessach: a travessia (1967) e Os novos (1971), a figura do escritor-personagem surge assumindo uma atuação política contundente, mas já em Bar Don Juan (1971) há uma renúncia a essa posição, após perceber sua ineficácia. Essas narrativas exemplificam como a literatura foi progressivamente passando de um questionamento do regime político para um 4. Além de ter estudado Quatro-Olhos em alguns ensaios que tratam da literatura produzida durante a ditadura, Renato Franco também analisou a obra na sua tese de doutorado Ficção e política no Brasil: os anos 70 (1992) e no seu livro Itinerário político do romance pós-64: A festa (1998). Este último, publicado pela Editora UNESP..

(27) 26. questionamento de si mesma. Mas a problematização da narrativa nesses romances ocorre ainda superficialmente, seja por meio da atitude de um personagem ou na ficcionalização de uma discussão intelectual. Assim, é nas melhores narrativas da época, segundo avaliação do autor, que essa discussão estará não apenas tematizada, mas também formalizada na estrutura das obras. São os chamados “romances de resistência”, valendo citar os livros de Ivan Ângelo, Carlos Sussekind e Renato Pompeu, todos de 1976. Por meio de uma “ficção radical”, eles apresentam aos seus leitores “uma consciência literária original acerca da própria condição e alcance do romance em uma sociedade autoritária e na qual viceja a poderosa indústria cultural” (FRANCO, 2003, p. 364). Em relação a Quatro-Olhos, Franco constata que “é, sem dúvida, um dos romances mais instigantes da época, embora não seja dos mais prestigiados pelo público leitor” (FRANCO, 2003, p. 364365). Com intuito de justificar essa afirmação, ele explica: Quatro-Olhos é uma obra elaborada e bastante singular: articula várias narrativas simultâneas, fragmentárias, pouco afeitas a um coração cronológico, frequentemente sustentadas por uma linguagem aparentemente de caráter anti-realista, que, porém, provém da natureza rarefeita das próprias relações sociais modernizadas. (FRANCO, 2003, p. 365). Nesse contexto, portanto, o autor identifica na estrutura caótica do romance uma relação direta com o contexto social. Propõe, inclusive, que a narrativa seja compreendida como uma “literatura do trauma”, mas não apresenta muitos detalhes em torno dessa discussão. No que se refere ao enredo do romance, na visão do crítico, “a luta pela reconstituição do livro original é tanto a luta para superar o esquecimento (...) como para reconstruir sua própria história e, nessa medida, sua identidade” (FRANCO, 2003, p. 366). Alheado da realidade e consciente de que algo fundamental foi olvidado, “o alvo secreto do narrador não é mais recuperar o material esquecido, (...) mas (...) comunicar que algo de fundamental foi esquecido” (FRANCO, 2003, p. 367). Diante disso, ele utiliza a narrativa não para reescrever sua obra perdida, mas para dissertar sobre as dificuldades que o impedem de fazê-lo. Em um segundo ensaio, Renato Franco (2006) volta a estudar o romance, dessa vez buscando destacar a condição dilacerada do narrador. Nesse texto, ele retoma algumas observações do trabalho anterior e avança na análise do estado de inadequação existencial do narrador. Para Franco, o romance Quatro-Olhos não se insere na tradição.

(28) 27. literária dominante da época porque “não nasce de uma intenção política, de uma crença no valor pedagógico da palavra ou da literatura” (FRANCO, 2006, p. 118). Assim, a obra se revela na contramão da exortação militante apresentada em Quarup. Havendo, na verdade, uma simbiose entre sofrimento e experiência literária que, segundo o crítico, lembra os escritos de Marcel Proust e de Franz Kafka. Renato Franco traça também algumas relações entre Quatro-Olhos e a poesia de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Além disso, ele comenta que, para o narrador do romance, narrar é uma forma de “resistir ao processo de liquidação das forças subjetivas e, portanto, por extensão, de se opor às forças históricas dominantes” (FRANCO, 2006, p. 124). Assim, a tese central de Franco é de Quatro-Olhos “funda sua narração na consciência de que ele é vítima de uma dilaceração, a qual cinde gravemente sua identidade” (FRANCO, 2006, p. 136). Com isso, pode-se ver representado no dilaceramento do narrador a fragmentação de toda uma sociedade. Nesse contexto, conclui Franco, outra coisa que se destaca na obra de Pompeu é a forma aparentemente despretensiosa como ela evidencia a importância e o valor de se escrever literatura. Além destes ensaios citados, há outros textos acadêmicos que também comentam a obra, especialmente artigos. Mas de maneira geral, a ficção de Renato Pompeu é pouco estudada no meio universitário. Entre os escassos trabalhos encontrados. sobre. sua. produção. ficcional,. percebemos. que. os. estudiosos. frequentemente analisam Quatro-Olhos como parte da literatura produzida nos anos da ditadura civil-militar. É esse o caso das duas teses que comentaremos a seguir. Entretanto, destacaremos depois uma dissertação que, estudando Quatro-Olhos isoladamente, se afasta dessa linha analítica. Iniciemos então com as duas teses que elegem o romance de Renato Pompeu como corpus de sua pesquisa. A primeira delas, Literatura e loucura: o escritor no hospício em três romances dos anos 70 (2004), de Eloésio Paulo dos Reis, 5 aborda, além de Quatro-Olhos, as narrativas Confissões de Ralfo e Armadilha para Lamartine. A partir de uma contextualização do hospício e de sua tematização pela literatura, especialmente no caso brasileiro, o autor analisa os três romances mostrando como a. 5. Essa tese do autor serviu de base para o seu livro Loucura e ideologia em dois romances dos anos 70, publicado pela Scortecci Editora em 2014. No recorte para o livro, Eloésio Reis limita-se a analisar Quatro-Olhos juntamente com Confissões de Ralfo, de Sérgio Sant’Anna..

(29) 28. figura do escritor, ao negar o racionalismo doentio do capitalismo de mercado, acaba sendo excluído da sociedade, passando a ser visto como uma anomalia por ela. Nesse sentido, Eloésio Reis entende que não por acaso essas três narrativas, publicadas quase que simultaneamente, associam a figura do escritor a de um doente mental. Na visão dele, essa problematização semelhante é uma resposta ao regime autoritário e a industrialização cultural que revela uma literatura em crise, tanto pelo impasse político como pelo impasse estético. No caso específico de Quatro-Olhos, o autor tece alguns comentários sobre o modo de organização social dentro do hospício. Assim, a escrita no e sobre o hospício apresenta um escritor que, mesmo marginalizado, permanece dissertando sobre o arbítrio da força dominante, questionando o poder de ação do elemento estético e, em última análise, apontando uma inversão de valores que faz a lucidez do escritor ser vista como um ato de loucura pela sociedade. Na segunda tese, A literatura contra o autoritarismo: a desordem social como princípio da fragmentação na ficção brasileira pós-64 (2008), de Lizandro Carlos Calegari, também se analisa o romance de Renato Pompeu, mas neste caso associando-o com os romances Reflexos do baile, Zero e A festa. Por meio da comparação entre eles, Lizandro Calegari mostra que a fragmentação nos romances é resultado da violenta ideologia que assumiu o poder nos anos de ditadura. Além disso, sua análise se propõe também a registrar que tal fato está em relação direta com a crescente desumanização que atinge a sociedade moderna. Em relação a Quatro-Olhos, Calegari enfatiza o esquecimento que acomete a memória do protagonista e o seu comportamento melancólico. Para ele, o narrador, desiludido e aniquilado em meio ao autoritarismo, torna-se bastante problemático em sua luta inglória contra o apagamento do vivido. Com isso, a dor gerada pelas perdas sofridas, inclusive a da própria memória, desembocam em um estado angustiado de melancolia que impede esse mesmo narrador de elaborar linearmente suas frustrações. Assim, para o autor, a fragmentação narrativa do romance é consequência da fragmentação do próprio indivíduo que, submetido à violência do aparelho estatal, utiliza-se da palavra não para narrar suas experiências, mas para resistir à violação que foi perpetrada contra sua lembrança. O esquecimento, portanto, conduz a fragmentação. Por fim, destaquemos uma dissertação que se debruçou sobre a obra: A memória, a perda, o livro: Quatro-Olhos, de Renato Pompeu (2012), de Tiago Lanna Pissolati. Nesse trabalho, a narrativa é tomada como objeto único de estudo e, a partir da problemática da ausência, mostra-se que o romance denuncia, por meio do vazio gerado.

(30) 29. pelo esquecimento, o fracasso na transmissão de lembranças. Nesse sentido, Pissolati justifica essa problemática a partir de Walter Benjamin, ressaltando a dificuldade moderna em se contar as experiências a partir das ruínas resultantes do passado. Na visão do autor, a ausência de memória é apenas uma entre as várias perdas nas quais o romance se baseia. Dessa forma, Pissolati constata que a própria origem da narrativa de Renato Pompeu está na perda da capacidade de escrita, o que se coaduna com uma tendência da literatura ocidental de buscar a si mesma. Outra ausência aludida pelo autor refere-se à lacuna em torno de um livro definitivo. Indiferente ao fracasso observado já de início, a narrativa de Renato Pompeu dobra-se sobre si mesma repetindo um gesto de escrita interminável, isto é, infinita porque impossível de alcançar. Nisso, alerta o pesquisador, a narrativa demonstra estar consciente de suas fraturas, de sua incompletude e de seu caráter iminentemente provisório. Observando, de maneira ampla, esse conjunto de estudos críticos sobre QuatroOlhos, é possível notar que os textos escritos próximo à época da publicação do romance optaram por não abordar a sua relação com a ditadura. É somente a partir dos estudos de Renato Franco e das teses acadêmicas citadas que Quatro-Olhos passa a ser analisado como parte integrante das produções do regime ditatorial. Aparentemente, só após um maior distanciamento histórico, foi que se tornou possível ou mais evidente estabelecer relações entre a obra e o seu contexto específico de produção. De toda forma, em termos gerais, os parcos estudos analíticos sobre o romance evidenciam a problematização da própria literatura e a presença da loucura como sendo as características mais importantes da obra. Envereda-se também, em alguns momentos, pelo tema do esquecimento, buscando compreender os motivos e consequências da falta de memória no protagonista. Além disso, mesmo havendo muitas comparações com outras obras da época, os estudiosos sempre ressaltam as particularidades específicas que fazem com que a narrativa de Renato Pompeu se diferencie das demais. Porém, uma lacuna que pudemos observar é a maneira panorâmica como, quase sempre, a obra foi estudada. Somente Renato Franco e Tiago Lanna Pissolati produziram trabalhos com mais fôlego, especialmente porque elegeram o romance como corpus central de suas investigações. Desses dois, apenas Franco tem como objetivo de trabalho estabelecer relações mais precisas entre o romance e o contexto da ditadura, mas faz isso em apenas um dos ensaios. Por isso, nesta dissertação, buscaremos aprofundar a análise do romance destacando sua relação com o ambiente autoritário, pois percebemos a necessidade de uma maior explanação crítica sobre essa.

(31) 30. questão. Além disso, diferentemente dos trabalhos realizados até o momento, procuraremos analisar a problematização da própria literatura, utilizando como categoria analítica a metaficção. Nessa mesma linha, também iremos discutir o tema da loucura, mas a partir de uma perspectiva inédita que se liga ao conceito de romance autobiográfico e que coloca em destaque a origem traumática da narrativa. Isso porque, conforme pudemos observar, também esse tema ainda não foi suficientemente explorado. Com isso, acreditamos que iremos contribuir com os estudos relacionados ao romance de Renato Pompeu, não só porque faremos um aprofundamento analítico da obra, mas também porque teremos a possibilidade inaugural de investigá-la observando como se estrutura seu texto marcado tanto pela inventividade metaficcional como pelo realismo autobiográfico. É por esse viés de questionamento da literatura e de busca dos laços entre experiência pessoal e ficção que pretendemos desenvolver nosso trabalho. Se a escrita literária pós-64 entrou em crise como relatamos, sem saber muito bem como atuar naquele período, nada melhor que discutir essa situação a partir da própria relação entre obra de arte e realidade exterior. Sem conseguir responder com consistência a todas as dificuldades geradas pela ditadura, a literatura parece apoia-se na loucura para problematizar suas insuficiências, numa tentativa angustiante e angustiada de autointerpretação..

(32) 31. 2. DENTRO: A IMPOSSIBILIDADE DA FICÇÃO Exposto esse cenário mais geral de crise e polêmica em torno da literatura posterior ao golpe de 1964 e apresentado o apanhado crítico em relação ao romance Quatro-Olhos, nos deteremos agora na análise da obra. A partir de um primeiro traço fundamental do romance, a metaficção, buscaremos evidenciar que Quatro-Olhos se constitui como uma narrativa-chave para se compreender a ficção escrita durante a ditadura. Como sabemos, as escolhas estéticas que um autor faz ao compor uma obra revelam sua visão de mundo acerca daquele momento histórico de produção. Nesse sentido, é bastante sintomático que, numa época de forte repressão, Renato Pompeu tenha escolhido tematizar a própria literatura. Diante disso, é importante que, inicialmente, possamos explicar melhor o que entendemos por metaficção. De acordo com a definição de David Lodge (2010), a “metaficção é a ficção que versa sobre si mesma: romances e contos que chamam a atenção para seu status ficcional e o método usado em sua escritura” (LODGE, 2010, p. 213). Portanto, estamos tratando de obras que explicitam dentro delas mesmas a sua condição ficcional. Nessa mesma linha de pensamento, a metaficção pode também ser conceitualizada como uma “ficção a respeito da ficção, isto é, ficção que inclui nela mesma um comentário sobre a própria narrativa e/ou sobre sua identidade linguística” (HUTCHEON apud PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 114). Sem dúvida, esses comentários teóricos são bastante esclarecedores. Porém, pudemos observar durante nossa pesquisa que Gustavo Bernardo, em O livro da metaficção (2010), analisa a prática metaficcional com ainda mais profundidade. Por isso, iremos priorizar as reflexões desse autor para o desenvolvimento de nossa análise. De acordo com ele, a metaficção é “um fenômeno estético autorreferente através do qual a ficção duplica-se por dentro, falando de si mesma e contendo a si mesma” (BERNARDO, 2010, p. 9). Ela se caracteriza, portanto, pela capacidade de uma obra em se autotematizar, gerando – no caso das narrativas ficcionais – um processo contínuo de encalacramento do próprio texto. Ao fazer isso, a ficção revela suas técnicas e insuficiências, “mantendo o leitor consciente de estar lendo um relato ficcional, e não um relato da própria verdade” (BERNARDO, 2010, p. 42). Nesse contexto, mesmo servindo para designar a autorreflexão presente em qualquer obra artística, é inegável a afinidade que a metaficção tem com o romance..

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