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1.3 A linguagem indireta e o sensível

1.3.1 Mistério da linguagem

Seguindo em nossa investigação sobre a linguagem, distinguindo entre o fantasma de uma linguagem pura ou de um inventário de uma língua completa e universal, Merleau-Ponty

apresenta uma linguagem como potência de significação, de diferenciação na relação dos fonemas com as palavras, capaz de voltar-se sobre si mesma indefinidamente, bem como de se manifestar de modo alusivo e indireto. Essa capacidade de diferenciação poderia nos confundir e fazer-nos acreditar que a linguagem só fala de si mesma, “obsedada por si própria”, como um “um monólogo interior”. No entanto, seu mistério consiste em não se encerrar nessa relação entre signo e significação, e sim “como que por acréscimo, abrir-nos a uma significação” (PM, p. 194). No exato momento em que nos colocamos a pensar, a falar, a linguagem escava em nós novas significações, de modo que não pensamos nela para empregá- la, mas sua utilização se dá pelo fluxo de pensamentos, o qual já é linguagem. Ela não se contenta em designar pensamentos, mas se metamorfoseia neles assim como eles se metamorfoseiam nela. Esse é exatamente o mistério da linguagem: metamorfosear as palavras em pensamento e vice-versa.

Além disso, a linguagem é mistério porque, sendo som e sinal, não deixa de presentificar significações, além de que ela irrompe a materialidade sonora dos vocábulos e se acasala com o invisível. Esse mistério pode ser compreendido como manifestação da irredutibilidade da linguagem à simples determinação objetiva da sua capacidade expressiva e, por conseguinte, se insurge contra qualquer apreensão direta, cabal e inequívoca. No que diz respeito à sua potência de significação, a linguagem jamais pode ser avaliada por meio de estruturas combinatórias, algorítmicas, uma vez que a estrutura da língua não é distribuição de fatos cuja representação aconteceria por combinações de possibilidades: “falar não é, quanto ao essencial, dizer sim ou não, é fazer alguma coisa existir linguisticamente; falar supõe a utilização da contingência, do absurdo” (N, p. 267). Nesse sentido, ela não é uma estrutura encerrada em seus limites, mas “é, por si obliqua e autônoma e, se lhe acontecer significar diretamente um pensamento ou uma coisa, trata-se apenas de um poder secundário, derivado da sua vida interior” (S, p. 45).

Mas, ao reconhecer esse mistério, estaríamos condenados ao silêncio, indaga Merleau- Ponty (PM, p. 195). Seria a linguagem igual ao “ponto cego” do olho que nos faz ver todas as coisas e não pode ser visto? Não é o caso. Diferentemente da visão, o mistério da linguagem tem a peculiaridade de nos fazer falar dela, pois, se sabemos de sua existência, não seria possível regressarmos a um estado de inocência no qual seríamos simplesmente linguagem. Há uma impossibilidade de apreensão completa e direta da linguagem, pois, se “ela se furta a quem procura e se entrega a quem renunciou a ela, logo não poderemos considerá-la de frente, não resta senão ‘pensá-la de viés’, ‘imitar’ ou ‘manifestar’ seu mistério, não resta senão ser linguagem” (PM, p. 195. Grifo nosso). Mesmo que seja somente para imitar ou manifestar a

linguagem, estamos a falar dela, e, “não sendo linguagem de que falaremos a que fala dela” (PM, p. 196), o que dissermos jamais será capaz de apreendê-la completamente; ela é sempre falta e excesso. Do mesmo modo, o mundo sensível que acreditamos aprendê-lo tal como ele é sem nossa existência, não é o mesmo porque na nossa tentativa de apreensão já estamos situados nele.

Nesse sentido, a linguagem se torna misteriosa porque pela virtude de seu corpo nos dá o incorpóreo, por trás de nossas afirmações sobre a linguagem, há mais linguagem viva do que estas conseguirão fixar sob nosso olhar. Esse mistério não é só da linguagem, mas também do mundo sensível no seu todo. Devido a isso, seria em vão toda tentativa de decompor, explicar, deduzir tanto a linguagem quanto o sensível, pois, ao passo que reconhecemos sua ubiquidade e sua maneira de existir através daquilo que não são, eles criam, ao mesmo tempo, o sentimento de sua naturalidade e o pressentimento de sua estranheza (CHAUÍ, 2002, p. 127). Nessa perspectiva, o silêncio seria “o ponto cego” da linguagem, visto que admitindo-o como sendo o meio pelo qual ela pode escapar de uma pura apreensão de si, impede-lhe que se encerre em si mesma, e, ao mesmo tempo, é o meio pelo qual a linguagem se manifesta.

A linguagem resiste a qualquer possibilidade de esgotá-la, de fixá-la em operações preestabelecidas, bem como de estabelecer um campo neutro de análise linguística que pudesse apreendê-la totalmente e que fosse exterior a ela. Toda tentativa de falar da linguagem já é desde sempre linguagem, já é habitada por ela e jamais se pode fugir dela em absoluto. Quando temos a impressão de apreender as palavras, é sinal de que seu poder expressivo falhou. Ao contrário, se a expressão é bem-sucedida, experienciamos toda a riqueza contida nessa atividade, porque “parece-me que penso ali, em voz alta, naquelas palavras que eu não disse” (PM, p. 196). Tudo reside nela e não numa operação do espírito que nos daria ideias prontas. A experiência da linguagem arrasta os signos de tal maneira que o sentido surge por meio deles como um estranhamento a quem se deixou ser possuído por eles. Portanto, esse é o paradoxo e o mistério da linguagem: transformar os signos disponíveis, conhecidos pela comunidade dos falantes, em signos que causam estranhamento a quem os enuncia e os ouve, através de um novo arranjo dos sentidos e das significações, além de fazer com que as palavras desapareçam quando a expressão é bem-sucedida. De modo que é o próprio paradoxo que alimenta esse movimento linguístico, e, como já vimos, a “linguagem só permanece enigmática para quem continua a interrogá-la, isto é, a falar dela” (PM, p. 197).