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1.3 A linguagem indireta e o sensível

1.3.2 O silêncio e a linguagem

Descrever “a percepção como sistema diacrítico, relativo, opositivo” (VI, p. 201) faz com que seja desvelado o caráter lateral e indireto da linguagem, que é concebida a partir do silêncio. Por isso, devemos “considerar a palavra antes de ser pronunciada, o fundo de silêncio que não cessa de rodeá-la, sem o qual ela nada diria, ou ainda pôr a nu os fios de silêncio que nela se entremeiam” (S, p. 47). Isso quer dizer que o ato de fala não esgota ou elimina o silêncio, porque ele mesmo é dobra de silêncio: o silêncio “prossegue por baixo das palavras, não cessa de envolvê-las” (PM, p. 86). Assim, para entender essa operação que transforma o silêncio em fala mantendo essa relação, o filósofo afirma que, se quisermos compreender a linguagem em sua operação significante original, precisamos fingir nunca ter falado e operar sobre a linguagem “uma redução sem a qual ela ainda se ocultaria a nossos olhos reconduzindo-nos ao que nos significa, precisamos olhá-la como os surdos olham os que falam” (PM, p. 91).

É importante salientar que a interpretação do silêncio não pressupõe a expressão da experiência muda da consciência pré-reflexiva, mas expressão do mundo sensível mudo. Esse sensível é desvelado por Merleau-Ponty, a partir de sua interrogação sobre o sentido do ser no mundo. Lugar ao qual toda expressão está referida, mas que jamais esgota, que contém tudo para ser dito, mas que exige de nós a tarefa de criá-lo. Diante disso, uma vez que o cogito tácito desapareceu, Merleau-Ponty pode apresentar uma articulação entre percepção e linguagem de maneira mais precisa porque admite que as significações linguísticas operam no modo diacrítico e indireto. Sua concepção de linguagem, em seus escritos últimos, pretende, de fato, suspender o registro da subjetividade ou da consciência. Dado que, como afirma Merleau-Ponty no prefácio de Signos, “tudo repousa na riqueza insuperável, na milagrosa multiplicação do sensível” (S, p. 15). Nosso pertencimento ao sensível se dá por uma espécie de “fascinação”, no qual somente “a palavra, como dizíamos, romperia essa fascinação”; ou melhor, a fala diferencia – mas não suprime – a fascinação, ela dá voz ao sensível mudo, “arranca ou despedaça significações no todo indiviso do nomeável, como nossos gestos naquele do sensível” (S, p. 15). O poder criativo da linguagem não precisa, para se estabelecer, romper radicalmente com o mundo da percepção.

Esse não rompimento se dá porque nossa inserção no mundo é realizada não pela linguagem, mas pela percepção: é o fundo perceptivo o responsável por nossa abertura ao Ser. Na obra Parcours deux, um resumo feito por J.-B. Pontalis de uma intervenção realizada por Merleau-Ponty no Colóquio de Bonneval (1960), diz que “a abertura ao Ser não é linguística:

é na percepção que ele vê o lugar natal da fala” (PII, p. 274). Contudo, o papel da linguagem é retomar esse fundo silencioso, esse solo originário perceptivo de maneira a expressá-lo com todas as suas dobras (num devir que não o esgota), buscando dar voz, fazendo falar a inteligibilidade imanente ao mundo. Embora a atividade de fazer falar o mundo é sempre impossível de se completar inteiramente, dado que essa retomada da origem nunca abarca a totalidade, Merleau-Ponty reafirma, nesse trabalho incansável de retorno, a possibilidade de uma “reabilitação ontológica do sensível” (S, p. 184). Ou seja, há um mundo do silêncio anterior à linguagem, e as coisas percebidas não estão desde sempre presentes na linguagem e nem são, elas mesmas, linguagem. Nessa perspectiva, o erro das filosofias semânticas é fechar a linguagem como se ela não falasse mais do que a si mesma; na verdade, “ela vive apenas do silêncio”, não disfarça o mundo do silêncio, pelo contrário, a fala sobe do fundo da experiência muda, perceptiva, e nossa vivência não é nada mais do que uma vivência-falada. Assim, se soubermos apreender a linguagem “com todas as suas raízes e com toda a sua floração, ela se tornará o mais belo testemunho do Ser” (VI, p. 125. Grifo nosso).

Reconhecer a necessidade de uma reabilitação ontológica do sensível é demonstrar a relevância que a operação linguística atinge no movimento de retorno ao Ser, buscando, nesse processo, exprimir a articulação de sentido que é inerente ao mundo sensível. Ou seja, cabe à linguagem o ofício de manifestar verbalmente e/ou literariamente, de maneira reflexiva, o que se apresenta espontaneamente como sentido mudo do Ser, mas que, no entanto, não procura coincidir o sentido perceptivo com o sentido linguageiro, e sim afirmar uma correlação entre um solo perceptivo e sua expressão linguística. Assim, nesse contato do falante com o mundo pode se revelar o Ser, mas também escondê-lo; esse falante que apreende o mundo silencioso em sua universalidade e o fixa em obra da cultura, visto que o próprio sensível convida à linguagem, a qual se apoia, a se diferenciar e ir além do próprio mundo natural. Mas isso é possível graças à linguagem criadora, falante. Segundo Merleau-Ponty devemos considerar que:

esta linguagem operante que não precisa ser traduzida em significações e em pensamentos, esta linguagem-coisa que vale como arma, como ofensa e sedução, porque faz com que aflorem todas relações profundas da vivência em que se formou, a vivência da vida e da ação, mas também a da literatura e da poesia, então este logos é um tema absolutamente universal, é o tema da filosofia (VI, p. 126).

Então, essa linguagem operante surge do fundo da experiência muda, não como destruição do silêncio, mas o diferencia e o conduz para mais longe. Quando falamos, são as próprias coisas, do fundo de seu silêncio, que são conduzidas à expressão. Falamos aquilo que o silêncio quer dizer. Por isso, essa linguagem retoma e prolonga o silêncio do mundo mudo

para, em seguida, redobrá-lo; “a linguagem é, ela mesma, um mundo, ela mesma, um ser – um mundo e um ser de segunda potência, já que não fala no vazio, fala do ser e do mundo, redobrando, pois, seu enigma, em vez de fazê-lo desaparecer” (VI, p. 100). O silêncio do mundo sensível é inexaurível, visível e invisível, e é precisamente isso que é seu tesouro, seu enigma, uma vez que a fala é envolvida de silêncio, que é, novamente, expresso pela fala.

Assim, silêncio e fala se solicitam mutuamente, não sendo mais o caso de reduzir, sobrepor ou opô-los, mas de ver a expressão como infinita reconversão de um no outro, e o sensível como o lugar que possibilita essa reversibilidade41. Nesse movimento de mútua e

infinita reconversão do silêncio e da palavra, a filosofia vai falando, dizendo e desvelando:

um Ser que não é posto, porque não carece de sê-lo, porque está silenciosamente atrás de todas as nossas afirmações, negações e até mesmo atrás de todas as questões formuladas, não que se trate de esquecê-las em seu silêncio, não que se trate de aprisioná-lo na nossa falação, mas porque a filosofia é reconversão do silêncio e da palavra um no outro (VI, p. 128).

Esse envolvimento do silêncio e da palavra conduz a linguagem à sua significação indireta, à sua lateralidade inacabada e escava no movimento de expressão o movimento reversível, o qual encontra na palavra o seu lado de silêncio invisível (DIAS, 1989, p. 229). Apresentada essa relação entre silêncio e linguagem42, nosso objetivo agora se dirige à

literatura, especificamente no período intermediário do pensamento de Merleau-Ponty, para ver como ela se apresenta como tentativa de forjar uma linguagem que se cria infinitamente no movimento de dizer-se; de como ela, compreendida como modo de visibilização do invisível ou de expressão do sensível, partilha a tarefa comum de reaprender a ver o mundo, configurar-se a ele e de se instituir como obra de arte que sedimenta e reabre o sentido no horizonte da temporalidade.

41 “A noção de reversibilidade supõe dois pontos de vistas equivalentes e que podem trocar-se. E podem trocar-

se porque se sobrepõem (por empiètement, chiasme, entrelacs, enjambement), ou seja, porque os dois pontos de vista pressupõem um ‘elemento comum’: a Carne” (DIAS, 1989, p. 220).

42 Nosso interesse nesse primeiro momento do texto foi somente explicitar como se dá essa relação entre silêncio

e linguagem e dar um panorama geral sobre a linguagem perpassando a obra de Merleau-Ponty, para, doravante, concentrar-se na linguagem literária especificamente no período intermediário de seu pensamento, de modo que possamos retomar o que aqui foi dito no que diz respeito à potência da linguagem literária.

2 O LUGAR DA LITERATURA

Apresentamos no primeiro capítulo uma visão panorâmica da linguagem em diversos momentos do pensamento de Merleau-Ponty, com o intuito de dar sustentação às análises feitas neste capítulo sobre a literatura. Visamos, agora, apresentar o lugar que a literatura ocupa no período intermediário do pensamento de Merleau-Ponty, momento em que a expressão e a linguagem ampliam seus escopos, fazendo da literatura expressão criadora.

Através da leitura do ensaio A linguagem indireta e as vozes do silêncio, falamos da exigência da expressão pictural e linguística alicerçada na noção de diacriticidade, e como, a literatura, enquanto criação expressiva e graças à sua linguagem conquistadora, reabre a história e a cultura através da capacidade da sedimentação e reativação dos sentidos. Por meio da leitura do curso L’institution, la passivité, evidenciamos como a literatura é capaz de se instituir historicamente abrindo-nos a uma temporalidade do advento, do presente na presença. Por fim, mostramos a leitura discordante de Merleau-Ponty da obra O que é a literatura?, de Sartre, no que diz respeito ao uso literário da linguagem, preparando o caminho para adentrarmos no curso ofertado por Merleau-Ponty sobre a literatura em seu contato com os escritores modernos.

Em linhas gerais, este capítulo está dividido em três seções: a exigência da expressão; a literatura como criação expressiva; Merleau-Ponty, Sartre e a literatura.