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O que é escrever? A distinção entre prosa e poesia para Sartre

2.3 Merleau-Ponty, Sartre e a literatura

2.3.1 O que é escrever? A distinção entre prosa e poesia para Sartre

Antes disso, vale ressaltar que a proposta de uma literatura engajada em Sartre faz parte de um projeto mais amplo de sua filosofia que deve ser examinado juntamente com suas ideias políticas70. Adiantemos também que o que guia sua reflexão sobre a linguagem

literária, na prosa e na poesia, é a capacidade que cada uma delas tem de clarificar ou tornar obscuras significações que estão além da linguagem. Quer dizer, a medida do êxito ou do revés da literatura é o fato de a linguagem triunfar ou fracassar na clarificação do real. Enquanto para a prosa isso se torna algo eficaz e positivo graças à instrumentalidade da linguagem prosaica71; na poesia torna-se o contrário, dado que a atitude dos poetas visava

afastar-se da transitividade da linguagem, estimando aspectos seus que interditam a passagem das palavras às coisas, numa espécie de culto ao insucesso72, fazendo da poesia

Merleau-Ponty visa ambiguidade/simultaneidade entre o prosaico e o poético; opera também no debate ontológico, quando Merleau-Ponty visa à simultaneidade/ambiguidade do ser e do nada (PERIUS, 2015, p. 197- 217).

70 Não temos como detalhar aqui o que a noção de engajamento representa para a filosofia de Sartre dado seu

amplo alcance e importância. Pois, “o engajamento deve ser pensado a partir de tudo que nos falta para realizar a ideia da literatura e a ideia da sociedade, num regime de reciprocidade definido pela liberdade. A literatura engajada tem como horizonte um compromisso livre que talvez jamais venha a existir e que, no entanto, é o componente essencial da própria ideia de literatura (SILVA, 2006, p. 73). Para aprofundar nesse amplo tema, conferir (SILVA, 2004, p. 205-225; 2006, p. 69-82; 2010, p. 18-28).

71 “A função do escritor é chamar o gato de gato. Se as palavras estão doentes, cabe a nós curá-las. Em vez disso,

muitos vivem dessa doença” (SARTRE, 2015, p. 225).

72 “A poesia é um quem-perde-ganha. E o poeta autêntico escolhe perder, a ponto de morrer para ganhar. Repito

que se trata da poesia contemporânea; a história apresenta outras formas de poesia. [...] Portanto, se se deseja realmente falar do engajamento do poeta, digamos que ele é o homem que se empenha em perder” (SARTRE, 2015, p. 25. Nota 4).

corresponsável pela crise à qual a literatura moderna passava no pós-guerra a ponto de chamá- la de “um câncer de palavras”73. Sartre credita à poesia o fato de ter tornado a linguagem

doente, de considerar as palavras como coisas e não como signos, distante de entendê-la como “linguagem-instrumento”. Por isso a necessidade de realizar tal distinção entre prosa e poesia, entre a linguagem caracterizada como prático-instrumental, por um lado, e como literário- poética, por outro.

Sartre coloca então a poesia lado a lado com a pintura, a escultura e a música. O artista produz objetos, conjuntos de cores, de sons ou de palavras que rementem nada mais do que a eles mesmos. Para ele, “a poesia não se serve de palavras; eu diria antes que ela as serve. Os poetas são homens que recusam a utilizar a linguagem” (SARTRE, 2015, p. 19). Os poetas são, para Sartre, aqueles que não visam uma linguagem como instrumento pela qual se opera a busca da verdade, tampouco pretendem discutir o verdadeiro ou dá-lo a conhecer; eles não aspiram nomear o mundo, pois isso implicaria um sacrifício do nome ao objeto nomeado; não falam, nem se calam: “trata-se de uma outra coisa” (SARTRE, 2015, p. 19). A atitude poética não considera as palavras como signos, pois “a ambiguidade do signo implica que se possa, a seu bel-prazer, atravessá-lo como uma vidraça, e visar através dele a coisa significada, (a poesia) ou voltar o olhar para a realidade do signo e considerá-lo como objeto (a prosa)” (SARTRE, 2015, p. 19. Grifo nosso).

Para Sartre, “o poeta está fora da linguagem, vê as palavras do avesso, como se não pertencesse à condição humana, e, ao dirigir-se aos homens, logo encontrasse a palavra como uma barreira” (SARTRE, 2015, p. 20). A atitude poética interdita assim o acesso aos homens, parece não conhecer as coisas por seus nomes e se abre para um labirinto na linguagem. Melhor dizendo, ela produz uma inversão entre meios e fins, uma vez que não incita os leitores à ação, mas, pelo contrário, regozija-se somente em operar uma linguagem que é “espelho do mundo”, conservação de metáforas. A consequência de tal atitude é o silêncio ou quietismo dos poetas, os quais se contentam apenas em modificar a linguagem, restringindo- se aos limites da ficção. Desse modo, dá-se mais importância à figuração poética da ação do que efetivamente revelar as possibilidades dessa ação ser realizada. Disso decorre o questionamento sartriano do engajamento do poeta, visto que está mais fadado ao fracasso do que ao êxito, sendo sua poesia um anti-valor para a literatura.

73 “É claro que em toda poesia está presente certa forma de prosa, isto é, de êxito; e, reciprocamente, a prosa

mais seca encerra sempre um pouco de poesia, isto é, certa forma de fracasso: nenhum prosador, mesmo o mais lúcido, entende plenamente o que quer dizer; ou diz demais, ou não diz o suficiente, cada frase é um desafio, um risco assumido; quanto mais se vacila, mais a palavra se singulariza; ninguém, como mostrou Valéry, consegue compreender uma palavra até o fundo. Assim, cada palavra é empregada simultaneamente por seu sentido claro e social e por certas ressonâncias obscuras, eu quase diria: por sua fisionomia (SARTRE, 2015, p. 26. Nota 5).

Por outro lado, Sartre reconhece o privilégio da prosa em sua análise sobre a linguagem. Lembramos que o caráter de instrumento, o modo como utilizar a linguagem, serve de baliza para realizar a distinção entre prosa e poesia. A prosa é “utilitária por essência” e o “prosador como um homem que se serve das palavras” (SARTRE, 2015, p. 26). Embora o poeta e o prosador escrevam, mas a única semelhança entre eles, para Sartre, está no movimento da mão que traça as letras. O “escritor (prosador) é um falador, designa, ordena, recusa, interpela, suplica, insulta, persuade, [...] fala para não dizer nada. Já vimos suficientemente a linguagem pelo avesso; convém agora considerá-la do lado direito” (SARTRE, 2015, p. 26). Notemos que na linguagem prosaica, a função das palavras é servir de meio cuja finalidade é ser designação de objetos; antes de mais nada, a prosa é “uma atitude de espírito”, e só por ela nosso olhar “atravessa a palavra como o sol ao vidro” (SARTRE, 2015, p. 27). O escritor se inscreve nessa linguagem, sendo ela um prolongamento dos seus sentidos e um momento particular da ação e não se compreende fora dela.

Falar é agir e o prosador é um homem que escolheu determinado modo de ação secundária, ação por desvendamento. Falando, o escritor desvenda a situação por seu próprio projeto de mudá-la; desvenda-a a si mesmo e aos outros para mudá-la; assim engaja-se um pouco mais no mundo e, ao mesmo tempo, passa a emergir dele um pouco mais, já que ele o ultrapassa na direção do porvir (SARTRE, 2015, p. 28). O escritor “engajado” sabe que a palavra é ação, sabe que todo desvendamento implica mudança e só se pode desvendar o mundo quando se é tencionado a mudar. O objetivo do escritor é “desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, sua inteira responsabilidade” (SARTRE, 2015, p. 30). Uma vez engajado no universo da linguagem, não pode mais fingir que não sabe falar, e, mesmo sendo o silêncio um momento da linguagem, o ato de recusar-se a falar ainda é falar. Por mais que se questione o fato de o escritor ter dito sobre isso e não sobre aquilo, para Sartre, o escritor é aquele que decide dizer certas coisas de determinado modo.

Ademais, a linguagem do prosador sartriano é essencialmente designativa e, frequentemente, dá-nos a sensação de estarmos em posse de uma ideia que nos foi comunicada por palavras, sem que nos lembremos de nenhuma delas. Por isso que “o estilo, decerto, é o que determina o valor da prosa, mas ele deve passar despercebido” (SARTRE, 2015, p. 30). O estilo é, para Sartre, um simples meio de persuasão, comparável à “etiqueta da missa”, visto que a missa não é a fé, ela predispõe para a fé. O todo harmônico das palavras, sua beleza, o equilíbrio das frases predispõem as paixões do leitor, sem que ele se dê conta.

Nesse sentido, na arte da prosa, quando bem-sucedida, é a própria linguagem que deve se apagar, ou se fazer esquecer, ao colocar seu leitor em contato direto com a coisa mesma; sem deixar-se contaminar pela poesia, a prosa nada perde com o engajamento e se mostra como um relato de acontecimentos, porque dá a conhecer a existência na singularidade do escritor ao passo que a sua narrativa deve espelhar a situação histórica e não uma existência geral. A obra do escritor é lugar onde ele deve manifestar seu engajamento, não como passividade abjeta, colocando seus planos e vícios em primeiro lugar, mas “como uma vontade decidida, como uma escolha, com esse total empenho em que viver que constitui cada um de nós” (SARTRE, 2015, p. 37). Nessa empreitada, o romance não pode só se contentar em refletir a situação histórica, mas deve ser o espelho crítico da época ou “deve revelar ao leitor algo dele e mesmo da sociedade” (SILVA, 2010, p. 24). O valor conferido, por Sartre, à prosa, provém de uma concepção de linguagem literária como possibilidade de engajamento e transformação social.