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3.1 A íntima relação entre filosofia e literatura

3.1.3 O paradoxo entre escrever e viver, entre homem e autor

Dos muitos paradoxos que a literatura contém, Merleau-Ponty sublinha, no final da primeira parte das Recherches sur l’usage littéraire du langage, aquele que parece ser o mais trabalhado em seu curso, o de escrever e viver. O filósofo francês se pergunta se “há uma literatura que não seja uma especialidade, uma maneira de viver particular, com seus vícios deformantes, que seja uma consciência da vida e não uma variedade particular da técnica interessada do Para-Outrem?”97 (RULL, p. 82). Nesse caso, autor e leitor permaneceriam

homens ou tornar-se-iam maníacos? A obra seria um espelho da vida de homem que o escritor vive? Esse problema motiva o filósofo francês a investigar esse paradoxo, pois, se a literatura se nutre do vivido, como seria exatamente essa relação conflitante entre viver e escrever? Merleau-Ponty tentará responder tais problemas recorrendo a Valéry e a Stendhal, ao longo do curso. Vimos, rapidamente, que Valéry é autor escolhido por Merleau-Ponty para contrapor-se à proposta sartriana de uma literatura engajada, em O que é a literatura?. Contrariamente ao autor de O ser e o nada, Merleau-Ponty salienta que “escrever não é uma atividade como decidir, agir, – o escritor enquanto escritor nunca age como o profissional da ação, [...] escrever como ensinar não é um meio, mas um gosto – na ação há sempre sedução, não apelo à liberdade” (RULL, p. 150). Pela mesma razão, escrever não seria o objetivo e a vida um meio ou, do mesmo modo, como poderia haver determinação se a vida, assim como a linguagem, é também habitada pela espontaneidade e a contingência? A vida, a linguagem é essa conquista da espontaneidade que extrapola toda estranheza do ato de escrever, mas que não coloca, em princípio, o escritor fora do viver.

Diante disso, Merleau-Ponty avança afirmando, pela via da negatividade, aquilo que é escrever: “escrever não é fim e não é meio de outro fim” (RULL, p. 154). Escrever não é meio porque não é uma ação prosaica pela qual se obtém no mundo resultados; a linguagem não se instrumentaliza para obter seu sentido fora dela, pois, se isso acontecesse, a ação da obra

97 A gênese desse problema se dá na leitura crítica que Merleau-Ponty faz de Sartre, uma vez que Sartre tenta

salvar a literatura remetendo-a à vida, o livro como palavra. “Jamais a literatura fala como a vida, o livro nunca é ato como os outros atos: ele não é ‘maniqueísta’, nunca parte do mesmo eu e não alcança o mesmo tu que a vida” (RULL, p. 82).

literária deixaria de ser obliqua e seu sentido deixaria de ser aberto, inesgotável. Escrever também não é fim, não se vive para escrever, tampouco a obra seria a finalidade a ser alcançada como promessa oferecida pela religião, pois, se isso acontecesse, a literatura estaria imobilizada, não teria nada a dizer; é no exercício da vida que, algumas vezes, a obra se torna expressão. Além disso, para Merleau-Ponty, “escrever, em relação ao viver, não é efeito e nem causa” (RULL, p. 155). Se escrever fosse uma causa da vida do escritor, este seria causa de si mesmo; no entanto, escrever não é um simples efeito, pois se ele escreveu com todas as “dificuldades de ser”, isso aconteceu na medida em que ele as superou, de certo modo, pelo próprio exercício da fala, já que essas dificuldades tendiam para o silêncio. Valéry, então, torna-se escritor e, por conseguinte, vive; “ele é conduzido a superar sua oposição à vida e a fazer a teoria dessa superação. Ao invés de ser Narciso ele escreve Narciso e por isso cessa de ser” (RULL, p. 156).

A análise da existência de um escritor não deve ser a redução de sua obra à sua vida; sua vida funciona apoiada sobre sua obra, que não é explicada por sua vida, porque sua vida a pressupõe. Assim, “a obra é subproduto da vida ou máscara da vida, ela contamina de mentira a vida, na medida em que nela está a contraparte fantasmática, em que ela lhe fornece pseudojustificação, em que ela tem por função apenas dar consistência aparente a uma fraqueza vital” (RULL, p. 156). No entanto, mesmo nesse caso, ela não é um efeito de uma escolha vital, mas revelação, inauguração [dévoilement], retomada deliberada, ao passo que conserva uma relação intersubjetiva com seus leitores. Para Merleau-Ponty, “a obra não é coisa, mas arquitetura de signos, por isso ela contém o fermento de transformação, de se tornar conteúdo aberto e tem seu sentido além de suas conclusões” (RULL, p. 157). Em outras palavras, o paradoxo entre escrever e viver no qual escritor se insere, as contradições que a obra literária porta, fazem com que nenhum homem possa ser medido pelas suas obras, com que nenhum homem seja o equivalente do que escreve, com que nenhum homem seja uma espécie de gênio.

Escrevendo sobre Claudel, Merleau-Ponty admite que só é possível falar do escritor como gênio, se o gênio for aquele cujas palavras têm mais sentido do que ele mesmo lhes podia dar, aquele que, ao descrever os relevos de seu universo privado, desperta nos homens diferentes dele uma espécie de rememoração daquilo que está dizendo, então Stendhal, Valéry, Claudel foram, às vezes, gênios. Não porque foram super-homens, e, sim, porque “falar de gênio é postular que um homem pode ser do mesmo estofo do que escreve, e que ele produziu como uma macieira produz maçãs.” De modo que, “não há gênio que o seja continuamente, o gênio não é uma espécie ou uma raça na humanidade” (S, p. 353). O

escritor, nesse caso, furta-se com todo direito à maior parte das discussões que sua obra faz nascer, porque elas, segundo Merleau-Ponty, “dão origem a mal-entendidos” (S, p. 357). Para quem é leitor assíduo de livros, o livro é um alimento imediatamente assimilável, degustável; para o escritor, “é o resultado de uma duração, de um exercício, de uma vida difícil. O cúmulo da ilusão é imaginar que o homem seja no seu melhor o que são as suas obras” (S, p. 357). Para aqueles que desejam fazer do escritor um “sacramento”, cuja movimento atrairia cegamente os leitores até ele, recebe como resposta barricadas, impossibilidade de acesso. Nos livros, é fácil falar, admitir os outros, fazer-lhes justiça, e nisso consiste a sua virtude, sua felicidade. Na vida, “não é tão fácil, porque os outros acreditam no gênio e pedem-lhe tudo” (S, p. 357), enfim o escritor é um homem que trabalha para viver e não pode dispensar ninguém do trabalho de ler e do trabalho de viver.

Dessa maneira, longe de afirmar qualquer escolha metafísica através da qual decorreria, ao mesmo tempo, obra e vida como causa e efeito, Merleau-Ponty reitera que “a literatura não é o contrário da vida, mas justamente porque ela já é maneira de viver, ela está em conflito com a vida tout court” (RULL, p. 159). Assim, a literatura uniria o bizarro e o comum, o escritor seria “qualquer outro”, mas se encontraria “o mesmo” que os outros. Aos olhos do outro, pergunta-se Merleau-Ponty, “o escritor, como homem de linguagem, não seria então um enganador? Por que ele escreve sua vida ao invés de vivê-la” (RULL, p. 151). Tais perguntas serão retomadas em sua leitura sobre Stendhal, sobretudo tratando-se da “sinceridade” do escritor. Em Stendhal, veremos esse paradoxo ganhar novos contornos, já que a atividade de escrever e a de viver se comunicam e se tornam estilo literário sem jamais prescindir da espontaneidade e da função central que possui a linguagem.