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3.1 O LUGAR DA MODALIZAÇÃO NOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS

3.1.2 Modalidade vs modalização

Conforme Castilho e Castilho (1992), a tradição gramatical explicita que o julgamento do falante acerca do conteúdo proposicional, apresentado pelo modus, pode ser expresso de duas formas:

(1) o falante apresenta o conteúdo proposicional numa forma assertiva (afirmativa ou negativa), interrogativa (polar ou não-polar) e jussiva (imperativa ou optativa); (2) o falante expressa seu relacionamento com o conteúdo proposicional, avaliando seu teor de verdade ou expressando seu julgamento sobre a forma escolhida para a verbalização desse conteúdo (CASTILHO; CASTILHO, 1992, p. 201).

Castilho e Castilho (1992) explicam que, em geral, a estratégia (1) é designada modalidade, e a estratégia (2), modalização. Contudo, os autores questionam essa distinção, argumentando que, em qualquer uso que se faz da linguagem, há sempre uma avaliação prévia do falante sobre o conteúdo que vai veicular, o que resulta na escolha em afirmar, negar, ordenar, permitir, expressar certeza ou dúvida sobre esse conteúdo etc.

Nesta pesquisa, entende-se ser metodologicamente pertinente uma distinção entre modalidade e modalização, considerando que essas categorias dizem respeito a estratégias linguísticas distintas. Porém, em concordância com a argumentação posta no parágrafo

35 anterior, considera-se que tanto uma quanto a outra expressam o relacionamento do produtor do texto com o conteúdo proposicional, e, ainda, com o interlocutor.

Ressalta-se que alguns dos autores consultados, como Parret (1988), Palmer (2001), Neves (2006), Miranda (2005) e Campos (2001), por exemplo, tomam o termo modalidade como correspondente ao que aqui se toma por modalização. Portanto, a proposta de distinção entre as duas categorias não leva em conta a descrição de modalidade dada por esses autores, mas se assenta na definição dessa categoria conforme explicitada por Castilho e Castilho (1992), que pode ser traduzida pela expressão “modalidades de frase” (CERVONI, 1989, p. 74).

Toma-se como orientação basilar para a distinção das categorias em questão o estudo de Vion (2005), cujo entendimento é de que a modalidade acompanha obrigatoriamente um enunciado, correspondendo à reação subjetiva do locutor em face do conteúdo do texto. Vale observar que a opção por diferenciar modalidade de modalização não implica a retomada das teorias tradicionais que apresentam em campos opostos dictum e modus.

Segundo a perspectiva de Vion (2005), a modalidade diz respeito a aspectos mais gerais, como as modalidades de frase, relacionadas aos tipos de frase empregados, citados anteriormente na voz de Castilho e Castilho (1992). Também entrariam nessa categoria noções como a dicotomia realis vs. irrealis. Conforme Palmer (2001), numa descrição geral, pode-se dizer que a categoria realis diz respeito a enunciados factuais, a situações atualizadas, que podem ser acessadas por meio da percepção direta; a categoria irrealis retrata situações não atualizadas, que estão no terreno do pensamento, do conhecimento e da imaginação. Trata-se de uma dicotomia que está diretamente relacionada às categorias tempo e modo verbais, embora não se resumam a elas. Tomem-se para análise dois títulos dos textos de onde se coletou o corpus desta pesquisa:

[i] A CHAVE È FISCALIZAR (Texto 31)

[j] FISCALIZAR PODE SER UMA BOA SOLUÇÃO (Texto 6)

Em conformidade com Palmer (2001), observa-se, no primeiro caso, a atualização da modalidade realis, com uma asserção que pretende representar uma dada realidade, ainda que seja formulada no domínio da opinião. Em [j], ao contrário, atualiza-se um enunciado não factual, que apresenta uma dada realidade cuja concretização depende de outros fatores, não explicitados no título em questão; tem-se aí um caso de modalidade irrealis.

36 Entende-se que a escolha por dada forma de enunciar um conteúdo é relevante para a observação de como o produtor do texto manipula as estruturas e os elementos linguísticos que tem à disposição para pôr em cena o seu projeto de dizer. Na análise da orientação argumentativa e da relação interlocutiva proposta em um texto, a observação de aspectos como tempo e modo verbal e das noções de realis e irrealis parece ser produtiva. A título de exemplificação, pode-se citar um aspecto significativo relacionado à dimensão linguística de superfície (KOCH; FÁVERO, 1987) dos textos argumentativos stricto sensu: o tempo/modo verbal predominante é o presente do indicativo.

Diferente da modalidade, que obrigatoriamente é atualizada em qualquer contexto de uso da linguagem, a modalização retrata um fenômeno particular, que pode aparecer ocasionalmente em um enunciado, conforme analisa Vion (2005). Essa interpretação é reforçada por Bronckart (2009, p. 334), que explica: “enquanto alguns textos estão saturados de unidades de modalização, em outros, essas mesmas unidades são raras ou ausentes”. Para esse autor, que considera a modalização uma forma concreta de realização de posicionamento, a recorrência à estratégia em tela parece se relacionar ao gênero do texto:

[...] as unidades de modalização poderão, por exemplo, estar quase ausentes em algumas obras enciclopédicas, em alguns manuais científicos, ou ainda em alguns “faits divers”, na medida em que os elementos constitutivos do conteúdo temático desses textos podem ser apresentados como dados absolutos ou “subtraídos à avaliação” (grau zero da modalização); ao contrário, essas unidades poderão ser freqüentes nos artigos científicos, nos manuais de história, nos panfletos políticos, etc., já que, nestes, os elementos do conteúdo temático são objeto de debate, de discussão, e, portanto, de avaliação (BRONCKART, 2009, p. 334).

Se o tipo frasal e o modo verbal escolhidos revelam posições assumidas – o que se pode medir, por exemplo, pelo não engajamento comumente associado ao subjuntivo e, ao contrário, pelo engajamento demarcado pelo modo indicativo, ou, ainda, pela deonticidade relacionada ao modo imperativo –, um ou outro tipo de frase e uma e outra forma verbal precisam ser selecionados pelo falante. A relativa liberdade do produtor do texto se limita, assim, à escolha do tipo frasal e do modo verbal que serão atualizados. Ainda que possa fazer escolha entre as formas de dizer, não pode fugir das possibilidades dadas pelo sistema reconhecido pela comunidade linguística e não pode deixar de escolher uma ou outra forma de fazê-lo.

Entende-se que o mesmo não ocorre com os modalizadores stricto sensu, que, em geral, tomam lugar no enunciado a partir da escolha do falante em externalizá-los, quando poderiam ser omitidos. Há sempre outras formas de apresentar certo conteúdo proposicional,

37 inclusive sem recorrer a tais elementos; mas cada uma delas carrega nuances específicas, que podem direcionar de maneira diversa a construção do(s) sentido(s) e a interlocução pretendida.

Segundo essa análise, tem-se em [i], A chave è fiscalizar, um enunciado não modalizado, enquanto em [j], Fiscalizar pode ser uma boa solução, há uma marca explícita de modalização: o verbo modal em destaque, que traz à cena a noção de possibilidade epistêmica.

Enunciados como o representado em [j], em que figuram modalizadores stricto sensu, guiam a seleção do corpus desta pesquisa. Porém, embora, por uma escolha metodológica, a modalidade não constitua foco central deste trabalho, ela é considerada na análise, ainda que de forma secundária, uma vez que é também responsável por explicitar a forma como o produtor se relaciona com o conteúdo do texto e com o interlocutor, atuando, portanto, no processo de negociação. Tome-se, para exemplo, o parágrafo a seguir, parte do corpus desta pesquisa:

[k] Todos já sabemos que a Amazônia ao longo de um periodo, vem sendo desmatada sem piedade. Diante dessa realidade os governantes deveriam tentar acabar com o desmatamento, deveriam investir maiores custos em fiscalização na Amazônia, contratar mais fiscais, promover palestras para que a sociedade saiba o que a Amazônia é capaz de produzir. (Parágrafo 01, Texto 01)

Estão em destaque os elementos modalizadores. O primeiro, uma expressão que indica necessidade epistêmica, explicita a vontade do produtor de assumir a responsabilidade pelo conteúdo modalizado, que é tomado como verdade e como se esta fosse compartilhada com o leitor, o que se evidencia não apenas na escolha lexical, mas também no uso do presente do indicativo e da pessoa do verbo. Trata-se de uma primeira manobra, considerando o nível do parágrafo, que visa a criar condições para a aceitação do conteúdo dado no segundo período. O produtor busca primeiro garantir que uma dada realidade seja aceita pelo leitor para só depois apresentar uma avaliação a respeito dessa realidade, considerada já acertada entre os parceiros da interlocução.

Os outros dois modalizadores, do eixo deôntico, veiculam a ideia de obrigação. Ao mesmo tempo, o uso do futuro do pretérito do indicativo encaminha outras leituras: apresenta uma crítica, uma vez que aciona o pressuposto de que as obrigações expressas não estão sendo cumpridas; revela que o produtor não assume integralmente o conteúdo da mensagem, protegendo-se da responsabilidade envolvida no uso do presente do indicativo, por exemplo; ao mesmo tempo, a orientação acionada pelo futuro do pretérito em verbos deônticos

38 promove aparente enfraquecimento da ordenação. A modalidade de frase, então, retrata uma manobra que visa a criar condições para a aceitação do conteúdo dado. Ao apresentar sua leitura de modo mais ou menos incisivo, o produtor indica ao interlocutor uma interpretação dada como necessária ou como possível, respectivamente, e espera que este se posicione a partir desse encaminhamento.

Além das estratégias ligadas à noção de modalidade e de modalização, outros recursos podem ser postos em cena para demarcar a orientação argumentativa e interlocutiva proposta no texto. No parágrafo citado anteriormente, observa-se que o uso do pronome indefinido todos, do advérbio já e da expressão nominal essa realidade, por exemplo, atuam na direção de apresentar o conteúdo modalizado como um fato de conhecimento público, inquestionável, criando condições para o aparecimento da proposta de ações orientada pelos verbos deônticos. A escolha lexical do verbo tentar, por sua vez, vai em direção contrária, explicitando a intenção do produtor de não parecer incisivo na leitura apresentada.

Da mesma forma que a modalidade, esses outros recursos que não se enquadram na categoria de modalização stricto sensu, embora não constituam o foco central da análise, são aqui considerados como manobras de negociação. Parte-se do entendimento de que os movimentos de negociação são evidenciados por elementos modalizadores, mas podem ser sustentados, reforçados ou remodelados por estratégias linguísticas outras dadas no cotexto.