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Para verificar a possibilidade de uma estratégia linguística acomodar função no plano interativo, faz-se necessário considerar os modalizadores como estratégias linguístico- interlocutivas postas em cena para apresentar certo grau de argumentação. Tais elementos, segundo Koch (2002),

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[...] caracterizam os tipos de atos de fala que deseja desempenhar, revelam o maior ou menor grau de engajamento do falante com relação ao conteúdo proposicional veiculado, apontam as conclusões para as quais os diversos enunciados podem servir de argumento, selecionam os encadeamentos capazes de continuá-los, dão vida, enfim, aos diversos personagens cujas vozes se fazem ouvir no interior de cada discurso (KOCH, 2002a, p. 136).

Os modalizadores são responsáveis, portanto, por demarcar a relação que o produtor do texto estabelece com o conteúdo do enunciado que produz e com o seu interlocutor. O produtor – um estrategista que organiza seu texto em função de um querer dizer (KOCH, 2003a) – vale-se de estratégias diversas que podem tanto comprometê-lo com o dito quanto eximi-lo da responsabilidade pelo conteúdo da mensagem; pode projetar tanto a imagem de alguém que procura apresentar uma opinião a partir dos conhecimentos que tem sobre o assunto tratado quanto a imagem de alguém que prefere não se impor, mas propor leituras possíveis. As escolhas linguísticas são feitas, em tese, de modo a favorecer seu projeto de dizer; são motivadas “pelo jogo da produção e do reconhecimento das intenções” (PARRET, 1988, p. 80) movimentado via linguagem.

A modalização pode ser mais ou menos explícita, mais ou menos velada, dependendo, entre outros fatores, do gênero textual ao qual o produtor recorre para levar a cabo suas intenções. Quanto mais alto é o grau de argumentação de um texto, mais passível ele está de ser preenchido por marcas de modalização explícita.

Em outras palavras, pode-se entender que, apesar de os modalizadores não serem recursos atualizados exclusivamente em textos de opinião – Coracini (1991) e Guimarães (2001), por exemplo, observam o papel dos modalizadores no discurso de divulgação científica –, tais textos constituem locus propício para o aparecimento dessa estratégia linguística, considerando que, nesse contexto enunciativo, a posição que o produtor toma em face do conteúdo que apresenta e de seu interlocutor é explicitada e assumida.

A própria escolha do gênero artigo de opinião permite reconhecer o engajamento do produtor com o conteúdo da mensagem e suas intenções de agir sobre o leitor, o que resulta na apresentação do produtor em seu enunciado. Nesse caso, o uso de elementos modalizadores não precisa ser controlado, tal como ocorre em textos mais “objetivos”. Ao contrário, em textos opinativos, eles assumem importante função por viabilizar a defesa de pontos de vista. Funcionam, então, como estratégia de negociação.

Exemplificam-se estratégias de negociação com um dos enunciados citados na Subseção 2.3.2, tomado de Golder e Coirier (1996). A partir da tradução do enunciado, propõem-se paráfrases parciais:

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[a] A poluição é um problema de todos, uma vez que estamos todos em perigo de morrer (GOLDER; COIRIER, 1996, p. 274).

[a1] Não há dúvidas de que a poluição é um problema de todos, uma vez que certamente estamos todos em perigo de morrer.

[a2] Me parece que a poluição é um problema de todos, uma vez que poderemos morrer por conta desse problema.

O conteúdo proposicional de [a] é mantido nas paráfrases. Porém, a forma de o produtor se relaciona com o conteúdo e, em consequência, com o interlocutor difere em cada um dos casos. Em [a], apresenta-se uma leitura subjetiva de forma incisiva. O uso do presente do indicativo, nesse caso, explicita uma opinião como se fosse um fato, ancorado pelo processo de justificação. O produtor se projeta no enunciado como alguém que tem domínio epistêmico da situação referenciada e cria para o interlocutor o dever de crer (KOCH, 2002a), direcionando a forma como quer que seu enunciado e ele mesmo sejam interpretados.

As paráfrases propostas mostram que essa forma de relacionamento pode ser alterada, conforme o produtor busque uma interação mais ou menos incisiva, mais ou menos tensa, pautada em um maior ou menor engajamento em relação ao dito, enfim, conforme busque relativizar ou enfatizar a força do ato de fala sobre o interlocutor.

As intenções envolvidas na interação e a consideração do público-alvo, entre outros aspectos, podem direcionar o uso de modalizadores que deixem o texto mais enfático, incisivo, como se observa na paráfrase [a1], ou, em outra direção, que tornem o texto um espaço em que a posição do outro é acolhida e a leitura subjetiva é apresentada como uma leitura possível, e não necessária, de dada “realidade”, como se oberva na paráfrase [a2].

A relação intersubjetiva demarcada pelos modalizadores foi também observada por Rodrigues (2001), que apresenta a seguinte análise:

[...] os operadores modais, além de introduzirem e avaliarem uma possível reação- resposta do leitor, abafando uma contra-argumentação não desejada (movimento dialógico de refutação), também funcionam no artigo como um outro modo de persuasão do leitor: eles não introduzem um possível enunciado do leitor, mas funcionam como lugares de sua interpelação (movimento dialógico de interpelação), ou seja, objetivam orientar a sua reação-resposta (verbal ou não, imediata ou retardada) (RODRIGUES, 2001, p. 221).

Para a autora, a orientação da atitude responsiva do leitor é uma das funções discursivas centrais da modalização no artigo de opinião, ideia que é acolhida neste trabalho. Entende-se que, ao recorrer ao uso de modalizadores, o produtor procura orientar argumentativamente o texto, em geral, de forma mais explícita do que o faz quando não conta

61 com esse recurso, e estabelecer negociação com o interlocutor, uma vez que tais estratégias revelam a posição que toma em relação ao texto e também em relação ao parceiro da interação.

Sintetizando o conteúdo desta seção, pode-se dizer que, embora a Linguística tenha herdado da Lógica Clássica a categoria modalidade, os estudos linguísticos têm se distanciado da Lógica por esta não recobrir o funcionamento das línguas naturais. É, pois, posição corrente entre os estudiosos da língua recusar a abordagem da modalidade alética, que define os valores de verdade das proposições, uma vez que se considera que a linguagem não reflete a realidade, e sim a constrói a partir de uma perspectiva subjetiva.

Nesse viés de análise, a dicotomia dictum vs. modus, proposta por gramáticos da Idade Média, também precisa passar por revisão, pois se assenta na oposição entre objetividade, registrada pelo dictum, e subjetividade, demarcada pelo modus, entre a descrição das coisas e a tomada de posição perante essas coisas, ou perante a descrição que delas é dada. Parte-se da ideia de que qualquer enunciado produzido em uma língua natural veicula a visão de mundo do produtor do texto, embora esta possa ser demarcada de forma mais evidente por meio de determinadas estratégias linguísticas.

Também a distinção entre modalidade e modalização não pode se assentar na perspectiva de que apenas a última seja responsável por demarcar a posição tomada pelo produtor perante o enunciado. Porém, entende-se ser metodologicamente pertinente a distinção dessas duas categorias para a análise proposta, pois a noção de modalidade pode abarcar estratégias diversas, cuja abordagem se tornaria difícil em um trabalho como o aqui proposto. Assim, considera-se a proposta de Vion (2005) de tomar a modalidade como uma categoria que acompanha obrigatoriamente um enunciado, dizendo respeito a aspectos mais gerais, como as modalidades de frase e a dicotomia realis vs. irrealis (PALMER, 2001), por exemplo. A modalização, por sua vez, retrata um fenômeno particular, que pode aparecer ocasionalmente em um enunciado (VION, 2005).

Em conformidade com a proposta de Parret (1988) de não limitar a análise dos modalizadores às chamadas atitudes proposicionais, os elementos considerados neste trabalho são tomados como atos ilocutórios. Seguindo essa perspectiva, a modalização deixa de ser vista apenas como forma de expressar a posição do produtor em face do enunciado que produz e passa a ser entendida também como uma forma de expressar a posição do produtor face ao interlocutor, uma vez que tais elementos dão indícios de como o produtor quer ser interpretado pelo parceiro da interação e explicita a intenção de agir sobre este, regulando o

62 tom da interação proposta: mais ou menos incisiva, mais ou menos tensa, por exemplo. Assim, os modalizadores são tomados como estratégias linguístico-interlocutivas.

A análise proposta neste trabalho leva em conta os eixos tradicionalmente considerados no campo da Linguística: modalização epistêmica e deôntica. O primeiro se refere ao eixo da crença, reportando o conhecimento que o falante sobre o tema de referência. Pode ser expressa pela necessidade epistêmica ou pela possibilidade epistêmica. O segundo relaciona-se à conduta, situa-se no domínio do dever (NEVES, 1996) e indica que o falante considera o conteúdo proposicional como um estado de coisas que deve, precisa ocorrer obrigatoriamente (CASTILHO; CASTILHO, 1992). Esse eixo também se divide nos polos necessidade e possibilidade, a primeira relacionada à noção de necessidade/obrigação, e a segunda, à noção de sugestão.

Quando se recorre à possibilidade e à necessidade, epistêmica ou deôntica, atualiza-se o ato ilocutório de asserção forte e de asserção fraca (BORILLO, 1982), respectivamente. Considerando especificamente o texto opinativo, pode-se dizer que, de forma geral, o produtor recorre à asserção forte numa tentativa mais enfática de impor ao leitor um determinado ponto de vista. A interpelação do leitor é menos enfática quando o recurso atualizado retrata uma asserção fraca, por meio da qual o produtor não impõe certas “verdades” ao interlocutor, mas propõe uma leitura baseada no possível, considerando, assim, as próprias limitações e as possíveis objeções do interlocutor em relação ao conteúdo modalizado.

Ambos os polos são postos em cena com vista a alinhar o leitor à orientação argumentativa dada no texto. Portanto, podem ser tomados como produtivos na composição do texto opinativo. Entende-se que o produtor encontra na língua estratégias diversas para propor negociação de forma mais ou menos tensa, mais ou menos comprometida, mais ou menos incisiva; porém, os modalizadores se destacam por explicitar a orientação interlocutiva proposta.

63 4 CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA: COLETA DE DADOS, SELEÇÃO DO CORPUS E PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE

Nesta parte do trabalho, busca-se contextualizar a pesquisa. Inicialmente, explicitam- se questões relativas ao processo de produção dos textos que serviram para a coleta do corpus; após, são tecidas considerações sobre o perfil desses textos; por fim, são explicitados os procedimentos de análise adotados.