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Modelo alimentar da população infanto-juvenil

Estudo Médico-Antropológico de um grupo de crianças do Planalto Central de Angola

4. Modelo alimentar da população infanto-juvenil

Com base na conjugação dos múltiplos parâmetros investigados, construímos, por fim, um modelo alimentar da população infanto-juvenil da região (esta tarefa foi- nos facilitada pelo facto de nós mesmo termos nascido e crescido no Planalto Central de Angola, onde, em companhia de crianças nativas, participávamos também nas incursões ao “mato” para recolha de frutos silvestres). Assim, elaborámos esse modelo (fig. 6), que sintetiza o essencial do padrão alimentar das crianças va’Ndulu.

Centremos, pois, a nossa atenção na evolução longitudinal do padrão alimentar infanto-juvenil (fig. 6). Desde logo, importará realçar que o desmame das crianças é bastante tardio (Quadro V) – em mais de metade das crianças ele ocorria aos dois anos de idade – o que aliás é prática corrente na África subsariana. Ora, é um facto que no aleitamento prolongado a quantidade de leite materno vai diminuindo, mas sabe-se que, do mesmo passo, ele se torna mais nutritivo e mais concentrado, em especial em gorduras. Assim, esse suplemento lácteo é de grande interesse para o estado nutricional da criança, além de que o aleitamento prolongado retarda o reinício da ovulação e, portanto, funciona como um método natural de controlo da natalidade (van Balen, Ntabomvura, 1975). Lentamente, a alimentação infantil vai-se diversificando (fig. 6): começa com a introdução de alimentos tradicionais, feitos à base de farinha de milho, a ocisangua e o atete, cuja importância quantitativa vai progressivamente aumentando. A ocisangua, bebida que em geral as crianças consomem livremente, é bastante alimentícia; é rica em Lactobaccillus (Christian, 1970; Carvalho, 1971), que, como se sabe, são reguladores do ecossistema intestinal e, em certa medida, são anti-diarreicos; e previne as desidratações, tão frequentes neste grupo etário: “(…) A young infant has

a much larger water turnover than an adult and if it is deprived of milk and given no water, it will die of dehydration rather than of starvation, and dehydration is accelerated in a hot climate. (…) – Widdowson, 1997. Inicia-se, outrossim, a introdução progressiva da alimentação dos adultos, designadamente a iputa (pirão). Esta seria, pois, a primeira fase da existência das crianças (até aos 2-3 anos de idade) e decorre, espacialmente, em especial na própria habitação tradicional e no terreiro circundante.

Na segunda fase, dos 2-3 aos 4-5 anos, as crianças alargam o seu universo de exploração, acompanhadas por outras mais crescidas. Como é sabido, a mulher

mão-de-obra não paga da empresa agrícola familiar) e as crianças mais pequena são deixadas nas aldeias à guarda dos irmãos (pouco) mais velhos. Assim, os mais jovens são iniciados nas razias que fazem nos domínios da própria aldeia (imbo), consumindo espigas verdes de milho dos oviumbo e frutos das árvores ali existente (goiabas, mangas, laranjas, etc.).

Na terceira fase, dos 4-5 aos 6-7 anos, as crianças passam a operar como ver- dadeiros bandos organizados, actuando quer na aldeia quer no “mato” (usenge) adjacente. É então praticada uma intensa e diversificada recolecção de alimentos:

Recolecção de origem vegetal:

a) Frutos silvestres das seguintes espécies: olohengo (Anisophyllea gossweileri): consumo referido por 84,6% das crianças; olombula (Uapaca benguellensis): 83,7%; apole e amui (Strychnos schumanniana e S. cocculoides): 67,3%; olosiã (Parinari mobola): 61,1%; akulãkulã (Syzygium guineense): 51,4%; olonuto: 10,6%; ovingonguilã (Lannea rubra): 6,3%; olosambiambia (Ximenia

americana?): 4,8%; atundua (Alframomum alboviolaceum): 1,9%, etc. b) Frutos subespontâneos: akuyu (Ficus spp).

c) Cogumelos (owa: consumidos por 67,3% das crianças): akenda, ondenda,

omembia, osielene, okasoni, ungoma, oseke, ulehe, usuã, onguli, ulangala-

bambi, ukema, etc. d) Tubérculos: ocikambatoto.

Recolecção de origem animal:

a) Termitas (olombunji): ovasuã, ocindundu, okalulu, oñula.

b) Gafanhotos (apange): okatendanguala, okaiehua, onduku, omone,

engunduahelele, okaluiko, opakoke, okambutiã, ekundumba.

c) Lagartas (ovipuka): amumua, olongengu, ovongu, olombalala, okalomba,

ocipuyu, avole, olonjupekelie. d) Grilos: ocienye, ondindo. e) Ratos (olomuku):

Ratos domésticos: epengue, ombandu, ondoti.

Ratos dos campos: ekolongonju, ohakua, ohulu, ondoti, okandondo, osinge,

ocisesele, ongelu.

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f) Toupeiras: ohui, onete.

g) Mel (owiki: 58,5%): eloña, ombuluvulu, ombula.

Geofagia (78,5%):

Barro branco: eve li yela; barro ou terra vermelhos: eve li kusuka, eve li ombunji,

ongongo.

Em relação à geofagia (consumo de terra ou barro), de importância crescente com a idade, verifica-se, inicialmente, uma especial apetência pelos barros brancos, muito possivelmente por carências de cálcio (privação do aleitamento após o des- mame e necessidades fisiologicamente acrescidas pelo crescimento das crianças); depois, a preferência volta-se mais para os barros e terra vermelhos, o que guarda relação com as anemias ferropénicas importantes que se verificam com as infecções maciças por Ancilostomidae.

Conjuguemos agora o nosso modelo alimentar com os estudos antropométricos e parasitológicos que efectuámos. Como antes mostrado, as crianças va’Ndulu têm uma boa progressão da sua estatura até aos 5-6 anos de idade (fig. 2). Tal facto deverá guardar relação com o importantíssimo acréscimo alimentar advindo do recurso ao complemento dos alimentos da própria aldeia e do “mato” adjacente (fig. 6) – como já antes referido, a progressão da estatura depende, fundamentalmente, do valor qualitativo da alimentação. Subsequentemente, quer a estatura quer o peso (figs. 2 e 3) acusam decréscimos comparativamente a outros grupos de crianças estudadas, por via de uma acentuação de carências alimentares, quer qualitativas quer quan- titativas. Com efeito, é o período em que o parasitismo por ancilostomose (espo- liante de sangue e proteínas pelas fezes) atinge 100% das crianças (fig. 5); em que estas começam a ir para a escola, diminuindo drasticamente os alimentos advindos da recolecção; em que passam a tomar parte nas fainas agrícolas (Quadro VI), consumindo, pois as suas fracas reservas calóricas, etc. Concordante com esta in- terpretação é, também, o estudo da espessura da prega cutânea tricipital (fig. 4): neste gráfico é bem manifesto que, a partir dos 6 anos de idade, o tecido adiposo subcutâneo (espelho das reservas calóricas acumuladas) era bastante escasso nas crianças da nossa casuística.

Considerandos finais

As populações tradicionais africanas sempre possuíram, na sua maioria, conhecimentos e mecanismos propiciadores da adopção de padrões alimentares bastante saudáveis, muito em especial no domínio qualitativo (grande diversidade de proteínas, vitaminas e sais minerais). Já no plano quantitativo, as carências calóricas sempre se revestiram em África de maior gravidade (falta de meios de produção e de armazenamento eficazes para cereais, secas periódicas, etc.), sendo que “(…) the

shortage of food affects people of all ages but children, particulary young infants, with their relatively greater requirements for energy and nutrients than adults, are likely to suffer most. (…)” – Widdowson, 1996. Todavia as alterações sociais, políticas, “desenvolvimentistas” (evolução para as monoculturas alimentares e comerciais, etc.), entre outras razões, têm conduzido estas populações para situações graves de depauperamento na saúde e maior dependência dos produtos de origem exógena à comunidade, cujos preços e afluxos não controlam minimamente. Assim, seria interessante que os técnicos e os políticos (ou vice-versa) desses países equacionassem com maior acuidade a implementação de possíveis modelos de auto-subsistência, cujos mecanismos de controlo pertencem, maioritariamente, às próprias comunidades. Deverá, pois, pugnar-se pela procura do desenvolvimento, sim, mas sem dependência!

Na sequência da nossa investigação (condição prévia e necessária para a elaboração de qualquer programa de melhoria da situação socioeconómica de uma dada população), elaborámos, por fim, um “Programa provisório de promoção da saúde” para a zona estudada (David de Morais et al., 1975: 244-52), programa esse que deveria ser implementado pelo “Projecto Piloto de Extensão Rural do Andulo”, e que, realisticamente, se afigurava exequível, tanto mais que o Projecto já tinha iniciado a diversificação de fontes alimentares (implementação da piscicultura, apicultura, etc.); já tinha criado “clubes de mulheres”, que facilmente poderiam interferir na melhoria do padrão alimentar monótono centrado em especial no consumo de milho; já tinha dado início a medidas de saneamento do meio (construção de latrinas, por exemplo), etc.

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Agradecimentos

os nossos agradecimentos são devidos aos Dr.s Alberto Gouveia e João da Rosa (ao tempo, nossos alunos do 4.º ano do Curso Médico-Cirúrgico da Universidade de Luanda), que connosco colaboraram nos estudos laboratoriais parasitológicos.

Referências Bibliográficas

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CHRISTIAN, WFK (1970). Lactic acid bactéria in fermenting maize dough. Ghana Journal

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DAVID DE MORAIS, JA; Gouveia, A; João da Rosa (1974). Subsídios para o conhecimento

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DAVID DE MORAIS, JA (1976a). Contribution à la connaissance de l’Anthropo-Ecologie de

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DAVID DE MORAIS, JA (1976b). Contribution à la connaissance de l’Anthropo-Ecologie de la malnutrition chez les va’Ndulu (Angola). Anais do Instituto de Higiene e Medicina

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WIDDOWSON, EM (1996). Protein-energy malnutrition. In: COX, FG, edit. Illustrated

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Anexos

Fotog. 1 – Interior de igreja rural: o autor a executar a observação clínica de uma criança e três equipas de extensionistas a efectuarem os inquéritos sócio-epidemiológicos

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Fotog. 2 – Observação clínica de uma criança, utilizando material expedito expressamente preparado para o trabalho de campo

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Fotog. 4 – Efectivação de análises parasitológicas em laboratório expedito montado para o efeito

Fig. 1 – Domínio de estudo: aldeias-piloto (a cheio) e aldeias-satélite (David de Morais et al., 1974, 1975)

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Fig. 4 – Espessura da prega cutânea tricipital, segundo os sexos (David de Morais, 1976a, 1976b)

Fig. 5 – Percentagens de crianças parasitadas por Ancylostomidae, segundo a idade (David de Morais, 1976a, 1976b)

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Fig. 6 – Alargamento progressivo do universo das crianças e sua correlação com a alimentação (David de Morais, 1976a, 1976b)

Quadro IIa – Resumo do exame clínico-nutricional

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Quadro IIb – Resumo do exame clínico-nutricional

Quadro III – Estudo das helmintíases intestinais nas 238 crianças

Quadro IV – Número de helmintíases intestinais diferentes diagnosticadas nas 238 crianças

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Quadro V – Crianças desmamadas: idade do desmame