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2. DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO

2.6 MODELO DELIBERATIVO

A convergência de algumas idéias de John Rawls e Jürgen Habermas revigora o modelo deliberativo de democracia. As origens desta concepção não são novas, indo de Aristóteles a Rousseau, de Kant a Arendt. O que a torna atual é sua tentativa de criar uma opção ao paradigma liberal dominante e aos problemas associados a ele. Nesse sentido, a democracia deliberativa busca alternativas e instrumentos que deem ao regime democrático uma nova direção, sem negar, contanto, as contribuições dos modelos teóricos anteriores. Segundo Silva, “privilegia, enquanto essência do ideal democrático, a capacidade detida por todos os cidadãos de deliberar racionalmente sobre as decisões coletivas que lhes dizem respeito”. (SILVA, 2004, p. 2). Para os teóricos deste modelo, o sistema democrático não deveria ser definido pela simples agregação de interesses particulares e que a democracia é justificada somente na medida em que torna possível o uso público da razão.

De acordo com a maioria dos proponentes da democracia deliberativa, a tomada de decisão política é legitimada desde que a política seja produzida em um processo de discussão pública e debate no qual os cidadãos e seus representantes, indo além do mero interesse próprio e de pontos de vista limitados, refletem sobre o interesse geral ou o bem comum. (BOHMAN, 1996, p. 4-5).

Habermas, dentro dessa corrente, foi o responsável pela formulação de um conceito alternativo de democracia política, extraindo elementos tanto da tradição liberal quanto da republicana. Reconhece os direitos e liberdades individuais, por um lado, e por outro, não abre mão da participação dos cidadãos no processo de formação da opinião e da decisão política. Sua concepção de democracia deliberativa coloca-se, portanto, no ponto de convergência entre as duas tradições e incorpora tais elementos numa moldura comunicativa:

A política deliberativa obtém sua força legitimadora da estrutura discursiva de uma formação da opinião e da vontade, a qual preenche sua função social e integradora graças à expectativa de uma qualidade racional de seus resultados. Por isso, o nível do discurso do debate público constituí a variável mais importante (HABERMAS, 2003, p. 27-28)

Para Habermas, o discurso público deve dar-se com base na argumentação racional, possibilitando uma troca de justificativas que torne os participantes informados da visão dos demais, que possibilite a contra-argumentação e que seja submetido às críticas gerais. Além disso, afirma que para a deliberação ser legitimada é fundamental que os procedimentos

adotados assegurem a publicidade do discurso e a igualdade de participação entre os membros. “O discurso racional deve ser público e inclusivo, garantir direitos iguais de comunicação para participantes, requerer sinceridade e tornar difuso qualquer outro tipo de força que não tenha o poder de convencimento do melhor argumento”. (HABERMAS, 1999, p. 332).

A concepção de comunicação pública de Habermas deriva deste foco central. Para ele, os aspectos estruturais da comunicação política seriam mais importantes do que as propriedades individuais, fazendo com que a comunicação pública fosse inclusiva e seletiva, isto é, pautada de forma que os assuntos importantes tivessem espaço, que as informações e contribuições relevantes pudessem ser aproveitadas e que os efeitos fossem resultados de um processo justo e racional (Ibid., p. 199).

Outro teórico que argumenta a favor de uma ordem política mais racional, na qual a tomada de decisão envolva o uso público da razão, é Bohman. Para ele, antes das decisões políticas, os cidadãos e seus representantes devem testar suas razões e interesses em fórum público, com o objetivo de justificar tais razões visando aos interesses públicos. E, em função deste interesse público, o processo de deliberação tornar-se-ia, em consequência, mais racional e justo, pois se desenvolveria por meio da participação e convencimento dos participantes:

A deliberação no sentido examinado aqui é interpessoal, diz respeito ao processo de formação da razão pública – isto é, a razão a que todos no processo deliberativo acham aceitável. Uma análise refinada desse processo é necessária para mostrar que as razões elaboradas para as decisões não são apenas mais convincentes que as razões que não foram submetidas ao teste do escrutínio público em um diálogo livre e aberto de todos os cidadãos, mas também são, provavelmente, epistemologicamente superiores. (BOHAMAN, 1996, p. 25).

A troca de argumentos e contra-argumentos racionais permitiria um processo de aprendizado possibilitando a democracia. Na troca de argumento e contra-argumentos os participantes ficam informados da visão um do outro. A busca pelos interesses comuns, públicos, em um processo em que a necessidade de consenso faz com que as razões sejam colocadas sob a avaliação de todos, passando a se constituir na política. Os autores deste modelo reconhecem a importância da garantia de direitos, acreditando que as condições desiguais devam ser contornadas de modo a assegurar a emergência de um debate racional que garanta as liberdades e oportunidades básicas de todos. Marilena Chauí, lembrando Aristóteles, ressalta que o problema da fundação política é um problema de justiça. A forma

com que a justiça é praticada é o que distingue ‘uma cidade de outra’ e não a natureza. Nesta concepção a lei seria instrumento para amenizar as desigualdades, que variam desde as desigualdades físicas, profissionais e de classe e social. O papel da justiça seria o de procurar o equilíbrio entre os desiguais:

Seu papel é permitir a relação eqüitativa entre os desiguais. Ora, Aristóteles distingue entre o partilhável e o participável. O partilhável diz respeito aos bens materiais necessários à sobrevivência individual e coletiva. O participável concerne ao que não pode ser repartido nem partilhado mas apenas participado - trata-se do poder. A justiça que concerne ao partilhável é aquela nascida de um cálculo de equivalência, isto é, da proporção geométrica entre as necessidades de cada um e os bens que deve receber da Cidade. A Justiça eqüitativa é distributiva segundo um princípio geométrico de proporcionalidade, havendo injustiça se o cálculo for apenas aritmético. A igualdade (econômica) não visa, portanto, a igualar os desiguais, mas igualar seus direitos à partilha dos bens materiais. Ao contrário, no que diz respeito à justiça do participável, problema por excelência da política, o ponto de partida não é a desigualdade, mas a igualdade: somente os iguais participam do poder. Toda a questão que se coloca neste plano, portanto, é a de saber qual o valor que permite estabelecer o próprio valor da justiça, isto é, qual o valor que cria o politicamente justo? Em outras palavras, qual o valor pelo qual há iguais na participação do poder? É na resposta a esta questão que Aristóteles define os diferentes tipos de Cidade: numa aristocracia, o valor será a nobreza, numa oligarquia, a riqueza, numa democracia a liberdade. (CHAUI, 2003, p. 151-152).

A questão, neste caso, seria saber quando uma forma política é mais livre do que a outra, o que “faz da democracia a pedra de toque das diferenças políticas” (Ibid., p. 153). A sociedade mais livre será aquela que potencializar a soberania de seus cidadãos. O inverso seria a preocupação em proteger a todos da possibilidade de um cidadão, ou um grupo, ou uma classe, se aposse da soberania. “A cidade é tanto mais potente e tanto mais livre quanto mais o poder, sendo de todos, não possa ser de ninguém” (Ibid., p. 154). Daí resulta que a distribuição do poder no interior da sociedade é questão fundamental. E o poder é distribuído a começar pela capacidade de cada um influenciar nos destinos do todo. E influir significa opinar, falar e ser ouvido e não apenas votar ou ser votado. Principalmente neste aspecto a comunicação on line proporcionaria condições técnicas de uma efetiva participação. Os mecanismos técnicos dos novos veículos de comunicação possibilitam, em tese, o ressurgimento da nova Ágora: ponto de encontro para tomada de discussão, debates de idéias, realização da democracia plena. Mais plena do que a Ágora original, pois, também em tese, estaria disponibilizada à participação de todos, ou de um número significativo de cidadãos. Utopia, apenas. Reiteramos que o oposto possa estar ocorrendo com as novas tecnologias e seu uso pelo sistema capitalista, e que é obrigação dos que sonham com uma sociedade mais justa apontá-lo, denunciá-lo.

Boaventura de Souza Santos (2001) reconhece que a democracia representativa “constitui até agora o máximo de consciência política possível do capitalismo”, e que, por este motivo, não deva ser dispensada, mas apropriada pelo campo social da emancipação:

A nova teoria de democracia – que também poderíamos designar por teoria democrática pós-moderna para significar a sua ruptura com a teoria democrática liberal, tem, pois, por objetivo alargar e aprofundar o campo político em todos os espaços estruturais da inteiração social. No processo, o próprio espaço político liberal, o espaço da cidadania, sofre uma transformação profunda. A diferenciação das lutas democráticas pressupõe a imaginação social de novos exercícios de democracia e de novos critérios democráticos para avaliar as diferentes formas de participação política. E as transformações prolongam-se no conceito de cidadania, de combinar formas individuais com formas coletivas de cidadania e, finalmente, no sentido de ampliar este conceito para além do princípio da reciprocidade e simetria entre direitos e deveres. (SANTOS, 2001, p. 276).

Sobre o modelo deliberativo cinco pressupostos básicos nos interessam na observação dos portais públicos:

a) a existência de informações a respeito das ações governamentais; b) informações das razões que justificam as ações governamentais; c) a constituição de espaços de discussão e deliberação pública; d) a prestação de contas e esclarecimentos;

e) o controle acerca das ações políticas.

É importante observar que para um aumento do conhecimento a respeito dos temas discutidos e para a construção da opinião dos cidadãos em consequência da troca de informações e de argumentos, é necessário que os indivíduos entrem em contato uns com os outros, que se informem e possam rever suas posições. Nesse sentido, a constituição de fóruns públicos, onde os cidadãos possam discutir assuntos que consideram relevantes e resolver as disputas de maneira livre e igualitária, é um requisito fundamental. Dificilmente estes fóruns poderiam ter um caráter além do local sem a existência da Internet e dos avanços das novas tecnologias. A exemplo do modelo participativo, também no modelo deliberativo a comunicação pública on line poderia desempenhar papel fundamental.