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Modelo Social como Paradigma Normativo: consolidação teórica e lutas

3. MODELO SOCIAL: A DEFICIÊNCIA COMO UMA QUESTÃO POLÍTICA E

3.2 Modelo Social como Paradigma Normativo: consolidação teórica e lutas

Preliminarmente, é preciso ter em mente que o modelo social representou uma mudança de paradigma epistêmico da deficiência, buscando superar limitações e distorções interpretativas do saber biomédico. Os deficientes e os teóricos da deficiência estavam insatisfeitos com as explicações do saber médico e a cultura da normalidade, bem como aquelas elucubrações presentes da Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens da ONU, de 1980, que supradito, tinha o elemento da lesão como foco principal da deficiência, criando-se uma verdadeira “ontologia da deficiência”, pelo que estudiosos e ativistas dos direitos das pessoas com deficiência propuseram novos estudos

sobre a deficiência, culminando com o que hoje se chama de modelo social50. Assim, afirma

Barbara Andrada:

O modelo social surgiu a partir de críticas contundentes a esta concepção de deficiência do modelo médico. Para o modelo social, a deficiência é um problema 50 Os (novos) estudos sobre a deficiência iniciaram no Reino Unido, intitulado “disability-studies”. Citem-se

como expoentes desses estudos autores como Len Barton, Colin Barnes, Mike Oliver, Emma Stone, Geof Mercer, Thomas Campell e Tom Shakespeare. O ponto em comum desses especialistas é a postura crítica do modelo social da deficiência como parâmetro de análise da sociedade.

social: trata-se de um efeito da opressão social imposta a indivíduos com características físicas, mentais ou sensoriais atípicas, em função de algum impedimento. Nesta concepção a deficiência não é um atributo do indivíduo, mas um complexo de condições socialmente criadas. Para este modelo, o impedimento não é a origem da deficiência, mas o ponto de apoio para a instalação de condutas sociais desfavoráveis ao indivíduo. Por essa mesma razão, a medicina não é considerada o principal instrumento de manejo da deficiência, possuindo um lugar necessário, mas secundário, dentre as práticas de normalização propostas pelo modelo social. O enfoque do modelo social toma a deficiência não como uma questão médica, mas política. Sua proposta de atuação para o manejo da deficiência passa, primeiramente, por uma abordagem desmedicalizadora, com foco na remoção das barreiras sociais e ambientais. A perspectiva do modelo social busca transferir do indivíduo para a sociedade a responsabilidade de adaptação do ambiente, além de reivindicar uma mudança nas atitudes e na ideologia social que considere a questão do manejo coletivo da deficiência como uma questão de direitos humanos (ANDRADA, 2013, p. 22).

Dessa maneira, podem-se perceber alguns traços marcantes desta nova epistemologia de compreensão da deficiência: a) a deficiência como um problema eminentemente social e político; b) a deficiência como uma questão de opressão e exclusão social; c) a deficiência não pode ser considerada “atributo” do indivíduo, logo, não é um “qualificativo” particular; d) o processo de exclusão das pessoas com impedimentos ocorre através das chamadas “barreiras”, podendo ser barreiras sociais ou ambientais (BARTON; OLIVER, 1997, p. 27).

Além disso, o modelo social não se limita a fazer uma análise descritiva do mundo, mas também almeja encontrar mecanismos de intervenção na realidade como forma de promover os postulados da igualdade de participação, assim como combater os principais óbices opostos pela cultura da normalidade.

Em vista disso, o Direito adentra nos estudos do modelo social como um instrumento fundamental. Destaque-se que a interpretação que grande maioria dos estudiosos do modelo social faz da ciência jurídica na busca por reconhecimento é de um aspecto instrumental e operacional, manifestando-se ora como forma de controle dos grupos dominantes (os normalizadores sobre os normalizados), ora como meio de emancipação e luta por reconhecimento (CORKER; SHAKESPEARE, 2003, p. 10).

Esta possibilidade de conciliar os estudos da deficiência do modelo social com o Direito é possível, conforme nos ensina Barbara Andrada, tomando as lições de Canguilhem e Foucault, porque o modelo social parte de um ponto de vista normativo.

E o que significa dizer que o modelo social é normativo?

Consiste, em primeiro lugar, rejeitar um ponto de vista ontológico ou essencial do normal ou da deficiência. Explica-se: a deficiência como restrição das pessoas com corpos

impedidos, não é um dado naturalístico. O argumento naturalista é aquele que defende que as condições desfavoráveis em que vivem as pessoas com deficiência são naturais, isto é, consequências de seus corpos lesionados. E quem pode questionar os imperativos da natureza? Ninguém. O deficiente é, na perspectiva médica, um naturalmente incapaz. Por outro lado, o ponto de vista normativista nega que exista um “dado normal” objetivo. Conforme Canguilhem, normal é um valor, “o grau de normatividade é o que de fato define um fenômeno, órgão ou organismo como normal” (ANDRADA, 2013, p. 64).

Em segundo lugar, pode-se argumentar que o modelo social é normativo porque compreende que, pelo fato do normal ser um valor, ele é uma construção. Normatividade nada mais é que a possibilidade de escolher as normas, e também os valores, que regerão a vida dos membros de uma comunidade específica. É um processo analógico à elaboração das leis. As legislações modificam-se de acordo com o território, com a época, com os valores que uma sociedade defende, com as condições econômicas daquela sociedade etc. Faz-se necessária uma referencialidade. O normal, como valor também se rege pela normatividade, porquanto não é absoluto, muito menos universal. Assim, “a perspectiva normativista considera a distinção normal/anormal sempre como contextualizada: é na relação do organismo com o meio que ela acontece” (ANDRADA, 2013, p. 64).

Outro fator que possibilita uma abordagem, pelo Direito, do modelo social da deficiência é que este necessita de uma abordagem sistêmica e complexa. Aqui se entende sistêmica porque vários fatores, em diferentes esferas da realidade humana, afetam em maior ou menor grau, de modo mediato ou imediato, a relação das pessoas com deficiência com a sociedade e o mundo (DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009, p. 64). No saber médico existe uma monopolização e medicalização da deficiência, que é a leitura sanitarista do fenômeno, o que acaba incorrendo em sua progressiva patologização (LANE, 1997, p. 156). Já no modelo social fazem-se necessárias as percepções de múltiplos fatores que influenciam a segregação social dos deficientes, podendo-se citar, as questões econômicas, como a diferença de limitações entre deficientes ricos e pobres, bem como a relação entre pobreza e deficiência, e a averiguação de como a distribuição de renda pode afetar os cuidados das pessoas com corpos lesionados.

Citem-se também as questões políticas, envolvendo temáticas como a representatividade dos deficientes no Parlamento e nas câmaras legislativas, a participação em

órgãos colegiados públicos e/ou da sociedade civil para pleitear seus direitos perante o Estado.

Igualmente, no que se refere às questões culturais, que como supradito, resultaram em processos de estigmatização, de construção de hierarquias da normalidade etc.

Todos estes saberes adentram na discussão sobre a deficiência de modo aglutinado e transversal, apoiados principalmente pela consideração básica de que a deficiência é a

vivência de pessoas com corpos limitados em ambientes com barreiras (DINIZ;

BARBOSA; SANTOS, 2009, p. 70). Deste modo, “questões como renda, mobilidade e ações institucionais não devam ser tratadas de forma isolada, desconsiderando a exclusão das pessoas com deficiência, de modo a promover a participação integral na vida social [...]” (FRANÇA, 2014, p. 116).

No Direito, a deficiência perpassa por âmbitos distintos, tais como: o Direito Constitucional, ao tratar dos direitos e garantias que a Lei Maior assegura aos deficientes, bem como a fruição destes; o Direito Internacional Público, à vista da necessidade de efetiva no plano jurídico interno, as normas internacionais protetivas dos deficientes; as normas do Direito Sanitário; a criminalização da discriminação contra pessoa com deficiência, através do Direito Penal; os institutos da capacidade jurídica, da tutela e curatela, no Direito Civil, tratando das relações particulares dos deficientes com seus familiares e afetos; o Direito do Trabalho e o Direito Previdenciário, ao abordar os dispositivos para o exercício laboral digno quanto às pessoas com corpos limitados, bem como a possibilidade de auxílio da assistência social no acompanhamento daqueles deficientes impossibilitados, permanente ou provisoriamente, de produzir seus próprios recursos.

Estes e outros exemplos salientam que o assunto da proteção das pessoas com deficiência é complexa e multifacetada. Variados ramos do direito confluem de modo a reconhecer a dignidade dos deficientes através das normas.

Seguindo este raciocínio, o presente capítulo subdivide-se em quatro pontos de concentração: a) a ressignificação do conceito de deficiência prorrompido pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, da OMS em 2001; b) uma abordagem da deficiência como questão de opressão e exclusão social – postulado basilar do modelo social; c) uma perspectiva política da deficiência, a que se demonstrou oportuno denominar de movimento “Da casa para Rua”; d) o prisma da relação da diversidade corporal com o Direito

e a Justiça.

O objetivo, neste momento, é esquadrinhar o que seja o modelo social e verificar como ele se manifesta nos tempos hodiernos e também fazer uma relação crítica deste paradigma com o Direito, tendo como propósito responder à seguinte pergunta: qual a relação entre o modelo social da deficiência e o Direito?

3.3 Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (OMS, 2001):