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3. MODELO SOCIAL: A DEFICIÊNCIA COMO UMA QUESTÃO POLÍTICA E

3.1 Modelo Social: materialismo histórico e a politização da deficiência

3.1.2 UPIAS e a politização da deficiência

Conforme mencionado, o modelo social da deficiência surge na década de 1970 nas Universidades do Reino Unido e dos Estados Unidos, especialmente pela criação da Union of

the Physically Impaired Against Segregation (Liga de Lesados Físicos Contra a Segregação) UPIAS.

A UPIAS teve um papel fundamental para uma reflexão séria sobre a deficiência. Primeiro deve-se destacar sua própria representatividade política, tendo-se em vista sua institucionalização no cenário político e por ser formada por deficientes que estudam a deficiência – o que fortaleceu a ideia da necessidade de uma fenomenologia ou sociologia da deficiência.

Anteriormente, quase que a totalidade das instituições que representavam politicamente os deficientes eram fundações caritativas, sejam de ordenações religiosas ou comunitárias, podendo ser públicas e privadas. O grau de representatividade era ínfimo. Assim, a própria UPIAS questionava o financiamento destes “Comissários Caridosos” que recebiam incentivos fiscais e outras benesses financeiras para revestir-se de “competência política” das causas sobre deficiência. Parte destas instituições atuavam de modo segregador, pois sob égide do argumento do cuidado das pessoas com deficiência, na verdade introjetavam-lhes a ideia de dependência submissa através de um processo de convencimento de que as pessoas com deficiência não podem esperar realisticamente uma participação na sociedade ou uma “vida boa” (OLIVER, 1997).

O segundo aspecto é a contribuição teórica que resultou nos princípios básicos para o modelo social, centrados especialmente numa crítica à opressão e na busca pela independência das pessoas com deficiência.

Destarte, o modelo social precisou adotar três objetivos: a) separação semântica entre deficiência e incapacidade; b) crítica à supremacia do modelo biomédico; c) promoção uma abordagem sociológica da deficiência (DINIZ, 2007, p. 52-53).

Quanto à separação entre deficiência e incapacidade, ou, nas palavras de Diniz, separação das ideias “lesão e deficiência” (DINIZ, 2007, p. 42), os pioneiros do modelo social argumentavam que não existe uma relação causal entre lesão e deficiência, visto que é

possível experimentar a deficiência sem ter lesões ou incapacidades físicas e mentais ou, o contrário, ter lesões e não vivenciar a deficiência. Assim, por exemplo, um mesmo indivíduo cadeirante pode em determinado local “A” sofrer restrições de locomoção em espaços públicos, como praças, shoppings, prédios públicos, à vista das limitações arquitetônicas, ou ainda ser tratado com preconceito e discriminação pelas pessoas deste mesmo local. Porém, este mesmo indivíduo, em local “B”, pode não sentir sobre si tais restrições, haja vista que os espaços públicos são adaptados a cadeirantes e a educação das pessoas deste local esteja voltada para inclusão das pessoas com deficiência. Deste modo, uma pessoa com lesão em ambientes diversos pode sofrer ou não a deficiência, de modo que a lesão não é o fato condicionante para deficiência, mas a conjuntura social, sim (DINIZ; PEREIRA; SANTOS, 2009).

A conclusão prévia dos teóricos do modelo social é que a lesão está no corpo, porém a deficiência está no meio social em que o indivíduo vive.

Partir deste pressuposto foi importante para desmistificar a incapacidade, que era atribuída como uma consequência (ou causa) lógica da deficiência. Logo, as premissas do tipo “todo deficiente é incapaz”, ou “toda pessoa que sofre algum tipo de lesão necessariamente sofrerá a deficiência”, eram bastante danosas à ciência da pessoa com deficiência porque assumiam como verdadeira a identificação entre incapacidade, lesão e deficiência (SHAKESPEARE, 2006).

O trabalho da UPIAS foi questionar estas proposições, demonstrando que estas eram falsas e não condiziam com a realidade. Ademais, de um ponto de vista epistêmico, tal raciocínio partia da lesão para concluir pela discriminação, ou seja, era um círculo argumentativo fechado no qual a pessoa com deficiência estava trancafiada.

O epicentro teórico do modelo social foram as conquistas do materialismo histórico de base marxista e sua crítica às relações de poder calcadas no capital e na fundamentação de ideologias (DINIZ, 2007).

O materialismo histórico tem como principal crítica a desnaturalização de determinados modos de pensar, considerados “tradicionais” ou “burgueses”, porque considera que alguns pensamentos dogmatizados socialmente não foram devidamente questionados e acabaram por ser assimilados, seja pela sociedade civil ou pela sociedade acadêmica, como “verdade”, embora nunca tenha havido de fato uma reflexão acerca destas “pseudo-verdades”

(MARX, 2008).

A maioria destes dogmas sociais é baseada em inferências do senso comum e indiferente à crítica. Exemplo é a própria ideia da lesão como elemento que carrega consigo a deficiência e a exclusão. O julgamento feito pela sociedade burguesa era antes uma avaliação estética e moral sobre o corpo marcado, restrito ou impedido, do que propriamente uma conclusão científica. Outra conquista da crítica do materialismo histórico é a denúncia de que o modo de pensar tradicional não é uma inferência neutra, pois a visão do deficiente como anormal serve justamente para justificar a superioridade ou a padronização do normal, que em critérios sociais, correspondente ao homem branco, produtivo e saudável. Nesse sentido fala Squinca (2007):

(…) o modelo social da deficiência, norteado pela teoria marxista, descrevia a deficiência como uma experiência da opressão da variedade corporal resultante de uma sociedade discriminatória e opressiva. A sociedade da concepção marxista na qual o modelo social da deficiência se fundamenta seria aquela pautada por um ideal de indivíduo produtivo, enfim sem lesão (2007, p. 34).

É nesta disposição, que a UPIAS assume uma postura de considerar a deficiência como “uma forma de opressão” (DINIZ, 2007). A segregação que a instituição combate manifesta-se como uma forma precípua de opressão, e de forma mais contundente, porque as práticas segregadoras funcionam com uma lógica de separação, estigmatização e neutralização: primeiro separa-se os indivíduos “normais” dos “anormais”; em segundo lugar, imprime-se naqueles considerados anormais um estigma, uma marca que servirá de identificação negativa daquele sujeito no meio social, por fim, neutralizam-se estes sujeitos apartando-os da convivência com os demais, enclausurando-os em instituições educacionais (escolas especiais), médicas (hospitais e manicômios) ou comunitárias (cidades para deficientes, centros de acolhimento).

Todavia, este procedimento de genocídio social não é natural nem é neutro. E essa é justamente a principal crítica do materialismo histórico.

Sabe-se que já em Émile Durkheim se tem uma análise acerca do poder de influência das convenções sociais no comportamento individual. Trata-se do seu conceito de fato social e ordem filogenética. É preciso resgatar o conceito de fato social48 do sociólogo francês porque

48 Durkheim define fato social do seguinte modo: “É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui existência própria, independente de suas

a ideia de coerção suscitada por Durkheim muito se equipara ao conceito de opressão mencionado pelos membros da UPIAS, ou seja, uma força que age sobre o indivíduo alterando seu modo de vida independente de sua vontade49. Como já alertara o mencionado

autor, “Somos então vítimas de uma ilusão que nos faz crer que elaboramos, nós mesmos, o

que se impôs a nós de fora” (DURKHEIM, 2007, p. 5).

Entretanto, o sumo teórico da UPIAS é indiscutivelmente Marx e o seu materialismo histórico. A crítica ao capitalismo e ao Estado liberal é contundente nos princípios organizadores e geradores da instituição britânica, que vê no sistema de produção baseado no lucro o principal causador da discriminação contra as pessoas com deficiência.

Este posicionamento do modelo social se desenvolve em grande parte contra a cultura do “homem produtivo”, pois na lógica de que o homem bom (normal, desejável, desejado etc.) é aquele que tem capacidade produtiva, os deficientes são descartados, daí a necessidade de resgatarem-se conceitos marxistas como – reificação – tendo em vista que o indivíduo é reduzido a objeto ou máquina de produção – e alienação – pois a cultura da produtividade introjeta no pensamento comum a necessidade de adequar-se ao modelo de homem produtivo para ter “utilidade social” (BARTON, 1998).

Ainda no que diz respeito à alienação, o materialismo histórico provoca o questionamento acerca dos verdadeiros beneficiados financeira e politicamente por esta padronização do homem ideal liberal, suscitando interrogações acerca de quem é privilegiado com o conceito de deficiência? Quem é prejudicado? Quais as consequências de criar-se um ideal de homem produtivo? Quem é beneficiado com a cultura do homem produtivo? Para além de outros questionamentos. É nesse sentido que a UPIAS declara:

Esta sociedade é baseada na necessidade das pessoas competirem no mercado de trabalho a fim de ganhar a vida. Para o empregador de mão de obra, os fisicamente alterados não são geralmente tão bons para aquisição quanto os nãos alterados. Nós, portanto, acabamos na parte inferior desta sociedade como um grupo oprimido (Declaração da UPIAS, 1974, tradução nossa).

manifestações individuais” (DURKHEIM, 2007, p.13).

49 A tese central de Durkheim em As regras do Método Sociológico é a imperatividade e coerção dos fatos sociais. Dessa maneira afirma o francês: “Esses tipos de conduta ou de pensamento não apenas são exteriores ao indivíduos, como também são dotados de uma força imperativa e coercitiva em virtude da qual se impõe a ele, quer ele queira, quer não” (DURKHEIM, 2007, p. 2). E conclui que os fatos sociais manifestam-se “em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõe a ele” (DURKHEIM, 2007, p. 3).

É preciso revisitar os postulados do materialismo histórico de Marx e Engels, principalmente por estar-se diante de uma das teorias mais reinterpretadas das ciências sociais.

Sabe-se que o ponto chave da teoria de Marx é sua crítica da história como moldada por ideias ou valores, de sorte que, para o autor alemão, a força motriz das relações sociais está na realidade material dos sujeitos, isto é, nas circunstâncias econômicas dos atores sociais que participam da construção da História.

Marx afirma, em Contribuição à crítica da Economia Política, que está preocupado com o que chama de “coisas materiais” e que estas “coisas” estariam no centro dos estudos sobre Economia Política, isto é, a ciência das relações econômicas e relações de poder. Como assevera o próprio Marx, seu estudo sobre “as coisas materiais”, isto é, o materialismo histórico, é uma crítica à Filosofia do Direito de Hegel, que percebia as relações jurídicas como explicadas por si mesmas ou fechadas em valores jurídicos originados do “espírito humano”. Com isso o filósofo e jornalista alemão nega a produção do conhecimento por valores em si mesmos. A exemplo de Weber ou Durkheim, Marx crê que na história, seja nas práticas sociais mais individuais ou nas decisões políticas do Estado, existe uma força coativa do social sobre o indivíduo. Esta força imperativa é que determina o sujeito, não o contrário. Assim, existe uma produção da consciência individual pelo ser social e esta “consciência” é produto histórico: determinado, produzido e justificado pelas condições materiais. Cabe citar uma das suas célebres passagens:

O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência (MARX, 2008, p. 47).

É interessante como a perspectiva do materialismo histórico funcionou como base para o modelo social da deficiência.

A relação da sociedade com o modo de produção vigente, isto é, o capitalismo, assim como a criação da ideia (ou ideal) de homem produtivo, foram os principais alvos das críticas dos membros da UPIAS (DINIZ, 2007). Os teóricos do modelo social acreditavam que o capitalismo e a cultura burguesa atribuíam ao sujeito uma necessidade de ser útil ao mercado de trabalho e não um sujeito digno em si. Esta obrigação possui força vinculante e moral, de modo que aqueles que não estavam aptos ao trabalho eram sumariamente segregados, pois eram qualificados como não desejados, improdutivos e inúteis (OLIVER, 1997, p. 54).

O grande problema deste processo de qualificação ao modo de estigmatização, suscitado por Goffman, é que ele é sempre coercitivo, não importando a vontade do sujeito e não levando em consideração a história e a subjetividade dos indivíduos deficientes. Deste modo, a sociedade burguesa capitalista faz uma leitura moral ou valorativa do deficiente, atribuindo-lhe o estigma de inútil como um valor execrável por si mesmo, sem questionar o porquê de tal adjetivação negativa.

3.2 Modelo Social como Paradigma Normativo: consolidação teórica e lutas