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4 A EDUCAÇÃO INFANTIL COMO CAMPO DE CONSTRUÇÃO

4.2 ABORDAGENS CURRICULARES DE EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA

4.2.2 Modelos Curriculares Contemporâneos

Com a crescente influência dos estudos sobre o desenvolvimento da criança no século XX, os modelos curriculares que se expandem a partir dos anos 1960 são classificados por Spodek e Brow (1998) em quatro categorias: (1) os programas Montessori em duas abordagens distintas, uma que mantem as orientações originais e outra que incorpora conhecimentos sobre as teorias de aprendizagem, (2) os programas behavioristas que enunciam seus objetivos em termos comportamentais e organizam fases curtas e sequenciadas de aprendizagem, como por exemplo, o DARCEE e o DISTAR (programa publicado comercialmente para ensinar língua, aritmética e leitura), (3) os programas de educação aberta, difundidos principalmente nos jardins de infância progressistas e (4) as abordagens construtivistas, entre as quais destaca-se, de modo especial, o currículo High Scope de Orientação Cognitivista.

Nos estudos contemporâneos sobre Pedagogia(s) da Infância, Oliveira- Formosinho (2007) classifica, segundo modelos de pedagogia, modelos curriculares da pedagogia da transmissão, o DISTAR e o DARCEE; e da pedagogia da participação, as abordagens curriculares High Scope (Estados Unidos), Kamii Devries (Estados Unidos), Reggio Emilia (Itália), Modena (Itália), Pen Green (Inglaterra), Freinet (Brasil), Movimento da Escola Moderna (Portugal) e Associação Criança (Portugal), entre os teóricos que embasam estes modelos, destaca Piaget, Mead, Vygotsky e Bruner.

A autora esclarece que “a pedagogia da participação centra-se nos atores que constroem o conhecimento para que participem progressivamente, através do processo educativo, da(s) cultura(s) que os constituem como seres sócio-histórico- culturais” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2007, p. 18). E caracteriza os conteúdos na pedagogia da transmissão como capacidades pré-acadêmicas, persistência e linguagem adulta, enquanto na pedagogia da participação seriam constituídos por estruturas e esquemas internos mentais, conhecimento físico, matemático e social, metacognição e instrumentos culturais.

Entre as abordagens curriculares citadas, apresentamos sucintamente as principais ideias e práticas relativas a currículo e conhecimento que são identificadas nas propostas do currículo High Scope e na experiência de Reggio Emilia. Pois, consideramos que a primeira influenciou de forma ampla e profunda os processos de

construção curricular em nosso país, a partir do início da década de 1980, e a segunda se tornou referência mundial em educação infantil na atualidade, o que pode ser comprovado pelo vasto número de obras que analisam e divulgam suas proposições, embasando os processos de reconstrução curricular em diferentes países e instituições. Além destas, situamos também a proposta curricular da Espanha, tendo em vista a compreensão de sua influência nas políticas curriculares nacionais, principalmente na década de 1990.

Enfim, trataremos de dialogar com as principais ideias e orientações curriculares atuais para educação infantil em diferentes países da Europa na perspectiva de compreender suas influências no contexto brasileiro.

A abordagem do currículo High Scope foi iniciada na década de 1960, por David Weikart, presidente da Fundação de Investigação Educacional do mesmo nome em Michigan/EUA e apoia-se no trabalho cognitivo-desenvolvimentista de Jean Piaget e seus colaboradores e na filosofia de educação progressiva de John Dewey. São identificadas quatro fases na história evolutiva do currículo High Scope, nasce numa perspectiva de educação compensatória, define-se como um currículo de orientação cognitivista na sua segunda fase, organiza sua atividade em experiências-chave na terceira fase e, finalmente, em sua quarta fase se caracteriza pelo processo de maior diálogo entre teoria e prática o que resulta na redefinição/ampliação das experiências- chave e elaboração de instrumentos de planejamento, registro e avaliação. (FORMOSINHO, 1998).

Podemos examinar as características e principais orientações da abordagem curricular High Scope, em pelo menos três obras: “A criança em ação” (HOHMANN, BANET E WEIKART, 1979) que descreve sua terceira fase, “Educar a Criança” publicada originalmente em 1995 (HOHMANN; WEIKART, 2007) e “Educação de Bebés em Infantários” (POST; HOHMANN, 2007) que são publicações mais atuais.

São definidos cinco princípios básicos que orientam o trabalho diário dos profissionais envolvidos na abordagem High Scope: Aprendizagem pela ação; Interações positivas entre adultos e crianças; Ambiente de aprendizagem agradável para a criança; Rotina diária consistente e Avaliação diária da criança baseada no trabalho em equipe. As crianças constroem o conhecimento através da reflexão sobre os significados das experiências vividas, enquanto são desafiadas a explorar, questionar, buscar respostas, resolver problemas e criar novas estratégias de iniciativas pessoais. Nessa perspectiva, a criança se envolve em experiências-chave,

que são “interações criativas e permanentes com pessoas, materiais e ideias que promovem o crescimento intelectual, emocional, social e físico” (HOHMANN; WEIKART, 2007, p. 5).

Na perspectiva do paradigma cognitivo-desenvolvimentista fundamentado em J. Piaget, uma experiência, processo ou método educativo só é válido em termos de desenvolvimento se:

1) exercita e desafia as capacidades daquele que aprende, capacidades essas emergentes numa dada etapa de desenvolvimento; 2) encoraja e ajuda aquele que aprende a desenvolver o seu padrão especifico de interesses, aptidões e objetivos a longo prazo e 3) apresenta a experiência da aprendizagem quando aquele que aprende está, em termos de desenvolvimento, mais apto a dominar, generalizar e reter o objeto da aprendizagem e a relacioná-lo com experiências anteriores e expectativas futuras. (HOHMANN, BANET E WEIKART, 1979, p.12).

Sendo assim, as experiências-chave estão atualmente organizadas em dez tópicos: representação criativa, linguagem e literacia, iniciativa e relações interpessoais, movimento, música, classificação, seriação, número, espaço e tempo. O educador precisa criar contextos nos quais essas experiências-chave possam ser desenvolvidas e observar/avaliar e apoiar as aprendizagens das crianças. (HOHMANN; WEIKART, 2007).

A rotina diária inclui o processo “planear-fazer-rever” no qual cada criança pode expressar suas intenções, desenvolver e refletir sobre o trabalho. Além desse processo, há momentos em pequenos grupos e em grande grupo que possibilitam a experimentação de novos materiais e intervenções dos professores. As atividades são planejadas a partir da observação das ações das crianças tendo, como parâmetro, as experiências-chave. Por exemplo, se for observado que alguns insetos atraíram a atenção das crianças no pátio, é possível planejar que durante o tempo em pequenos grupos elas possam observar e desenhar os insetos (experiência-chave de representação criativa: desenhar e pintar).

As experiências-chave são utilizadas para observar, planejar e avaliar as crianças, constituem em “um conjunto de instrumentos destinados a ajudar os adultos a compreenderem as crianças mais novas e a levá-los a usar essa compreensão nas suas interações diárias com as crianças” (HOHMANN; WEIKART, 2007, p. 472). Para cada categoria de experiências-chave são apontadas sugestões para os adultos sobre

como apoiá-las ao longo de um dia de trabalho com as crianças. Por exemplo, com a experiência chave “desenvolver melodias” da categoria música, sugere-se que o adulto ouça e mostre reconhecimento pelo uso que as crianças fazem do tom e da melodia, faça com as crianças jogos de emparelhamento de tons de voz, cante às crianças os seus comentários e faça jogos do tipo “adivinhem esta canção”.

São organizadas áreas de trabalho/interesse que possibilitem diferentes tipos de atividades, podendo ser estruturadas a partir das seguintes: área da areia e água; área dos blocos; área da casa; área das atividades artísticas; área dos brinquedos; área dos livros e da escrita; área da carpintaria; área da música e movimento; área dos computadores e área de exterior.

As experiências-chave para bebés e crianças são organizadas em torno dos seguintes objetivos: desenvolver o sentido de si próprio; aprender acerca das relações sociais; aprender a reter coisas através da representação criativa; ganhar competência no movimento e na música, aprender competências de comunicação e linguagem; aprender sobre o mundo físico explorando objetos; aprender os primeiros conceitos de quantidade e de número; desenvolver a compreensão de espaço e começar a aprender sobre tempo (POST; HOHMANN, 2007).

Na Proposta curricular oficial da Espanha, estabelece-se um currículo obrigatório, prescritivo e, ao mesmo tempo, aberto, negociável entre os diferentes contextos. Propõe um currículo organizado por áreas curriculares, para as quais são organizados os âmbitos de experiências e blocos de conteúdos. Estes são entendidos como:

O conjunto de formas culturais e os saberes selecionados para fazer parte das diferentes áreas, em função dos objetivos gerais de cada uma delas. Os conteúdos incluem fatos, conceitos, princípios, habilidades, técnicas, estratégias, valores, normas e atitudes. (GARCIA, 2004, pp. 21-22).

Sendo assim, são definidos os seguintes blocos de conteúdos para cada área: Área 1- Identidade e Autonomia: Conhecimento do corpo e configuração da imagem de si mesmo; Habilidades perceptivo-motoras envolvidas na resolução de tarefas de natureza diversa; Aspectos cognitivos, afetivos e de relacionamento envolvidos em atividades da vida cotidiana; A saúde: habilidades básicas relacionadas com o cuidado de si mesmo e do ambiente. Área 2 - Descoberta do meio físico e social: As relações sociais e a atividade humana; Os objetos; Animais e plantas; A paisagem. Área 3 –

Comunicação e representação: Linguagem oral; Aproximação da linguagem escrita; Expressão e produção plástica; Produção e expressão musical; Expressão corporal; Relações, medida e representação no espaço.

As autoras Bassedas, Hughet e Solé (1999) apresentam e defendem a proposta espanhola no que se refere à organização de conteúdos de aprendizagem na educação infantil sem que isso desconsidere as particularidades desta etapa educativa e da criança atendida. Entendem o termo conteúdo de forma ampla, como tudo o que pode ser objeto de aprendizagem e, consequentemente, de ensino.

Finalmente, a Experiência de Reggio Emilia situa-se numa pequena cidade situada na região de Emília Romagna, nordeste da Itália, que criou um movimento de Educação Infantil após a Segunda Guerra Mundial, mediante a colaboração de pais, educadores e crianças. O currículo desenvolvido é considerado “emergente” idealizado por Loris Malaguzzi, influenciado por Dewey, Wallon, Claparède, Ferrièrre, Decroly, Vygotsky, Erickson, Freinet, Montessori, entre outros. (LINO, 1998; EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 1999).

As escolas de Reggio Emilia não têm um currículo planejado com sequência de conteúdos e unidades a serem trabalhados. Malaguzzi (1999, p.100) explica que:

A cada ano cada escola delineia uma série de projetos relacionados, alguns de curto, outros de longo prazo. Esses temas servem como apoios estruturas principais, mas depois fica a cargo das crianças, do curso dos eventos e dos professores, determinar se a construção virá a ser uma cabana ou um prédio de apartamento ou qualquer outra coisa [...] Os professores seguem as crianças, não seguem planos. Os objetivos são importantes e não serão perdidos de vista, mas o porquê e como se chegar até eles são mais importantes.

Rinaldi (1999, p. 111) fala de um currículo emergente no qual o planejamento é um método de trabalho no qual os professores apresentam objetivos educacionais gerais, mas não formulam os objetivos específicos para cada projeto ou cada atividade a priori. Inicialmente, formulam hipóteses sobre o que poderia ocorrer, com base em seu conhecimento das crianças e das experiências anteriores, a partir das quais formulam objetivos flexíveis e adaptados as necessidades e interesses das crianças, incluindo aqueles expressados por elas a qualquer momento durante o projeto, bem como aqueles que os professores vão selecionando à medida que o trabalho avança. A autora explica: “No nosso trabalho, falamos sobre planejamento, entendido no

sentido de preparação e organização do espaço, dos materiais, dos pensamentos, das situações e das ocasiões para a aprendizagem”. (RINALDI, 1999, p. 115)

Para Katz (1999), os projetos oferecem a parte do currículo na qual as crianças são encorajadas a tomarem suas próprias decisões e a fazerem suas próprias escolhas, geralmente em cooperação com seus colegas, sobre o trabalho a ser realizado.

Presumimos que este tipo de trabalho aumenta a confiança das crianças em seus próprios poderes intelectuais e reforça sua disposição de continuar aprendendo. As atividades incluem observação direta, perguntas a pessoas e a especialistas relevantes, coleta de artefatos pertinentes, representação de observações, de idéias, de memórias, de emoções, de imagens e de novos conhecimentos em várias maneiras, incluindo encenação dramática. (Ibid, p. 38)

Rinaldi (1999) explica que no início de um projeto, os professores devem reunir-se e discutir de todos os modos possíveis como o projeto poderá vir a evoluir, considerando as ideias prováveis, as hipóteses e as escolhas feitas pelas crianças. Ao fazer isso, preparam-se para todos os estágios subsequentes do projeto – mesmo se o inesperado acontecer.

Além do trabalho em projetos, as crianças de Reggio Emilia – especialmente as mais jovens – engajam-se em muitas outras atividades. “A oportunidade para uma ampla gama de jogos espontâneos com blocos, dramatização, brincadeiras ao ar livre, audição de histórias, encenação de papéis, culinária, tarefas domésticas e atividades ligadas à arrumação pessoal, bem como atividades como pintura, colagem e trabalhos com argila, estão disponíveis a todas as crianças diariamente”. (KATZ, 1999, p. 45).

Na abordagem de Reggio Emilia registramos ainda o trabalho no atelier – espaço rico em materiais e ferramentas onde as diferentes linguagens das crianças podem ser exploradas por elas e estudadas pelos educadores em uma atmosfera favorável e tranquila. Lá as crianças podem experimentar modalidades, técnicas, instrumentos e materiais alternativos; explorar temas escolhidos por elas ou pelos educadores,

possibilitando desde o estudo das afinidades e oposições de diferentes formas e cores aos objetivos complexos da narrativa e da argumentação, da transição da expressão de imagens em símbolos até sua decodificação, do modo como as crianças foram contaminadas

pela exposição aos meios de comunicação, a diferenças entre os sexos em termos de preferências simbólicas e expressivas. (MALAGUZZI, 1999, p. 85-86).

A prática pedagógica de Reggio Emilia se constitui a partir de linguagens múltiplas – respeitando os esforços das crianças em produzir significado de suas experiências - e de co-construção, de relacionamentos e diálogo, é rica em paradoxos e ironia, valoriza a cooperação assim como a confrontação, admite tanto a dúvida e a perplexidade como o questionamento científico. Dahlberg, Moss e Pence (2003) apresentam a proposta de Reggio como a “pedagogia de relacionamentos”, na qual conhecimento, identidade e cultura são co-construídos por crianças na relação com os outros.

Podemos identificar fortes influências dessas abordagens curriculares no Brasil. Na década de 1980 são implantadas várias experiências oficiais e institucionais com base no currículo de orientação cognitivista da abordagem High Scope, nos anos 90 as políticas neoliberais se ancoram na experiência da Espanha e consultam estudiosos desse país do campo da didática, do currículo e da psicologia na elaboração dos documentos oficiais (como, por exemplo, o RCNEI) e desde então também são veiculadas no Brasil as traduções de obras que divulgam a abordagem de Reggio Emilia, considerada hoje como maior referência para educação infantil no mundo.

De acordo com os relatórios da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OECD analisados por Haddad (2010), as tensões relativas aos modos como instituir orientações curriculares nacionais para educação infantil tem sido objeto de amplo debate mundial. Os países55 de tradição numa

pedagogia social defendem que essas orientações devem garantir apenas princípios orientadores de práticas, buscam manter um currículo aberto e holístico no qual todas as áreas de desenvolvimento são trabalhadas através da brincadeira e múltiplas experiências em torno de um amplo projeto de trabalho. Enquanto, outros países56

definem orientações mais específicas, normativas e prescritivas com uma abordagem mais acadêmica ao currículo e à didática que prioriza as relações ensino-

55 Países nórdicos e da Europa Central, como por exemplo, a Suécia, Dinamarca e Noruega.

56 São citados países como a Austrália, Canadá, Estados Unidos, França, Holanda, Irlanda e Reino Unido.

aprendizagem e busca garantir a aquisição de conhecimentos, competências e habilidades organizadas em disciplinas ajustadas às faixas etárias das crianças.

O desafio hoje tem sido marcar o campo do currículo para educação infantil que deve se constituir no diálogo com esses dois modelos em oposição. O relatório da OCDE (Haddad, 2010) considera que mesmo com ênfases curriculares diferentes, essas duas abordagens devem ser partes de um mesmo currículo, uma parte inclusa na outra. Cita como exemplo, a extensa rede vinculada à abordagem de Reggio Emilia, que envolve mais de 13 países.

A qualidade dos programas de educação infantil tem relação também com a formação de seu professorado. Bennett (2004 apud HADDAD, 2010) destaca que quando os profissionais têm baixa escolaridade e pouca formação, existe a necessidade de um currículo mais detalhado e prescritivo, pois a construção conjunta de um currículo amplo para criança pequena requer conhecimento de psicologia infantil e formação pedagógica consistente.

É urgente, portanto, discutir com mais precisão e cuidado, o objeto e a função da Educação Infantil – a aprendizagem e o desenvolvimento de criança pequena, salientando que é preciso registrar e refletir sobre currículos que atendam suas especificidades e promovam a ampliação de saberes e conhecimentos.

4.3 EDUCAÇÃO INFANTIL, CURRÍCULO E PROPOSTA PEDAGÓGICA: ENTRE