2. EFICIÊNCIA DE MERCADO: REVISÃO DE LITERATURA
2.2. Teoria de Microestrutura de Mercado
2.2.1. Modelos de custos de inventário e assimetria informacional
De modo geral, os modelos da TMM buscam explicar os desvios dos preços de mercado do valor intrínseco dos ativos. Assim, seguindo Hasbrouck (1996), uma abordagem possível é partir do modelo de eficiência de mercado da RW3 descrito na seção 2.1.2, e adicionar as possíveis perturbações ocasionadas pela microestrutura de mercado. Esta proposição pode ser modelada decompondo o processo gerador das séries de preços de mercado em três componentes: o prêmio pelo risco μ; a alteração na estimativa racional do valor intrínseco do ativo devido à chegada de novas informações (ε); e as perturbações de microestrutura que desviem o preço com relação ao valor intrínseco (s). Formalmente:
𝑝, = 𝜇 + 𝑝, + 𝜀 + 𝑠 (22) A definição de todas as variáveis é similar à da equação (2) da RWH. Para facilitar o desenvolvimento do raciocínio e suas implicações para a série de retornos em tempo contínuo,
mais uma vez considera-se pi,t como o logaritmo natural do preço de mercado do ativo i no
momento t. A única diferença com relação à RWH é o termo st, que por definição é estacionário,
mas não necessariamente com E[st+1] = 0.
O termo st pode ser visto como uma representação das fontes de alterações de preços
da Tabela 1, à exceção do fluxo de nova informação pública já contemplado por εt
(HASBROUCK, 1996). Vale notar que há a possibilidade de efeitos permanentes que afastem os preços de mercado de seu valor intrínseco, como aqueles decorrentes da assimetria informacional do mercado.
Para tornar mais concretos os efeitos da adição do termo st na equação de
precificação do mercado, demonstra-se aqui um modelo simples que exemplifica como os fatores de microestrutura interagem. Ele é decomposto em duas partes. A primeira refere-se aos efeitos permanentes da assimetria informacional na série de preços de mercado. Supõe-se então a existência de traders com informação privilegiada (doravante traders informados) e de traders que possuem acesso apenas à informação pública disponível (doravante traders não informados). Estes últimos sabem que há agentes com informação privada negociando no mercado, e estimam a partir de um parâmetro exógeno constante g o quanto os preços de mercado refletem a informação privada. Sem perda de generalidade, supõe-se ainda que o prêmio pelo risco do ativo seja μ = 0, de modo a simplificar a exposição:
𝑝∗, = 𝑝∗, + 𝑤, (23)
e 𝑤, = 𝜀, + 𝑔. 𝑣 , em que 1 > 𝑔 > 0 (24)
sendo 𝑝∗, é o preço que reflete as alterações na informação pública do mercado (doravante
valor intrínseco público). A grande diferença com relação à RWH está na composição de wt,
colocada na equação (24). O primeiro termo (εi,t) tem a mesma interpretação da RWH: é uma
variável aleatória e serialmente independente que reflete a atualização da estimativa de valor intrínseco devido à chegada de nova informação pública. Já o segundo termo coloca a influência
da existência de informação privada. Ele reflete três suposições a respeito do cálculo de 𝑝∗, : (i)
ele se baseia apenas na informação pública disponível; (ii) não se pode distinguir trades fundamentados em informação privada daqueles baseados em informação pública; e (iii) mesmo os agentes não informados sabem da existência de informação privada, mas não sabem
com certeza em que medida ela impacta o valor intrínseco do ativo. Como consequência de (iii), os investidores não informados podem apenas estimar o quanto choques na demanda do
ativo (vt) representam a ação de investidores informados. Supõe-se que essa estimativa seja
homogênea, e dependa apenas de um fator 1 > g > 0 constante. Ele pode ser visto como o custo
de informação dos agentes sem acesso a informações privadas. Supõe-se que vt seja uma
variável aleatória, serialmente independente de wi,t, que reflete o componente aleatório do fluxo
de ordens de negociação. Quanto maior for g, maior a crença do caráter informativo dos preços de mercado, e maior peso os traders não informados darão a sinais provenientes de alterações na demanda do ativo t.
A segunda parte do modelo explora os fatores causadores de alterações transitórias nos preços. Além dos agentes já destacados, supõe-se aqui também a existência de um market maker. Este tem como objetivo a manutenção de um inventário com um montante fixo do ativo t, e para atingi-lo estabelece cotações para absorver o excesso de oferta ou demanda dos demais agentes. Supõe-se ainda que exista um spread entre o maior preço de ordem de compra (cotação de bid) do ativo e o menor preço de oferta (cotação de ask) de venda do ativo, como de fato ocorre nos mercados de capitais. Esta característica é denominada na literatura de bid-ask spread. A partir destas premissas, o restante do modelo é descrito conforme as equações abaixo:
𝑞, = 𝑝∗, + 𝜀, − 𝑏𝐼, , com 𝑏 > 0 (25)
𝐼, = 𝐼, − 𝑥, (26)
𝑥, = −𝑎 𝑞 − 𝑝∗, + 𝜀, + 𝑣 , com 𝑎 > 0 (27)
𝑝, = 𝑞, + 𝑐, . 𝑥, , com 𝑐 > 𝑔 > 0 (28)
A equação (25) estabelece o midpoint de cotações entre os preços de bid e ask. qt
pode ser visto então como a cotação estabelecida pelo market maker para levar em conta alterações nas informações públicas sobre o valor intrínseco do ativo (𝑝∗, + 𝜀, ) e seu
desequilíbrio conhecido com relação ao inventário desejado (It-1)25. O novo fluxo de informação
privada em t não é conhecido pelo market maker, mas a informação que era privada em t-1 é
considerada pública em t – ou seja, 𝑝∗, é conhecido no momento t. O termo I é conhecido
pelo market maker apenas em t-1. Isto, pois ele não conhece ex ante qual será a oferta e demanda dos demais agentes pelo ativo em t – fatores que influenciam sua posição de inventário no momento presente. Além disso, a resposta do market maker não compensa totalmente o
25 O estabelecimento do midpoint do spread entre o preço de bid e ask pelo market maker é assumido por diversos
desequilíbrio de inventário observado, de modo a tornar a evolução das cotações do market maker menos descontínua. Isto é representado pelo termo b: quanto maior ele for, mais rapidamente o market maker se aproximará de seu inventário desejado, e menos suaves serão
os movimentos de suas cotações26.
Sem perda de generalidade, presume-se que o objetivo de inventário do market maker seja manter uma posição que não esteja nem comprada e nem vendida no ativo, ou seja,
It = 0. Consequentemente, o market maker buscará responder a desequilíbrios em seu inventário
observado em t-1 (It-1). Estes desequilíbrios, por sua vez, são determinados pelo desequilíbrio
acumulado no instante anterior (It-2) e o excesso de demanda pelo ativo em t-1 (xt-1).
Assim, a relação das equações (25) e (26) pode ser vista da seguinte forma: o market
maker observa o desequilíbrio de seu inventário (It-1), causado pelo seu desequilíbrio acumulado
(It-2) e pelo excesso de demanda do mercado pelo ativo (xt-1). A partir desta observação, ele
estabelece cotações (qt) de modo a exercer uma pressão de demanda (se It-1 < 0) ou oferta (se
It-1 > 0) para retornar a sua posição de inventário desejada. Contudo, para evitar que haja grande
descontinuidade em qt, este agente não busca corrigir imediatamente sua posição de inventário,
o que é representado por b.
A equação (27) determina a dinâmica do excesso líquido de demanda pelo ativo
(xt), ou seja, o volume demandado do ativo pelos investidores (exceto o market maker) menos
o volume por eles ofertado – para uma dada cotação qt. O primeiro fator da equação retrata a
demanda líquida dos não informados, sensível ao quanto qt se distancia da estimativa do valor
intrínseco público (𝑝∗, + 𝜀, ). A sensibilidade dos investidores quanto a este desvio (ex.: o
quão rapidamente investidores não informados respondem a este desvio) é representada por a.
O segundo fator, vt, reflete a alteração aleatória na demanda pelo ativo – por exemplo pelo fluxo
de nova informação privada – que altera a demanda líquida total do mercado pelo ativo. Ressalta-se que nem os market makers e nem os agentes não-informados conseguem distinguir
a influência dos dois fatores na demanda líquida pelo ativo. Ou seja, eles só observam xt.
Por fim, a equação (28) determina o efeito da dinâmica até aqui exposta nos preços
de mercado (pt). O primeiro termo é o midpoint de cotação estabelecido pelo market maker (qt),
estabelecido a partir do valor intrínseco público e a posição de inventário desejada por este
26 O fato do market maker não retornar imediatamente à sua posição desejada de portfólio reflete o price-smoothing
comumente praticado por estes agentes no mercado. No mercado americano, por exemplo, é formalmente colocado como obrigação dos market makers que eles atuem suavizando os preços de mercado de ativos, de modo a não os tornar muito descontínuos (HASBROUCK, 1991).
agente. Esta última é influenciada pelo comportamento dinâmico da demanda líquida dos demais agentes pelo ativo. O segundo termo reflete a pressão da demanda líquida dos demais agentes no momento presente e os custos resultantes para absorção desta demanda pelo mercado. A demanda líquida é determinada por dois fatores: a atuação dos investidores não informados motivada por desvios percebidos entre a cotação do market maker e o valor intrínseco público; e um fator aleatório, que pode refletir a chegada de nova informação privilegiada no mercado, entre outras possibilidades.
O termo c, por sua vez, reflete a iliquidez do ativo em t. Utilizando o conceito de liquidez da seção 1.4, a função desta variável na determinação dos preços pode ser descrita de maneira que: para que o excesso de demanda (oferta) seja absorvido pelo mercado em um cenário de baixa liquidez (alto c), os investidores devem aceitar comprar (vender) a preços mais altos (baixos) do que os de mercado, ou a incorrer em custos de processamento das ordens de compra. Este custo associado à liquidez é sempre maior que zero, o que é resultado da premissa de existência de um bid-ask spread.
Em resumo, a dinâmica do modelo pode ser descrita da seguinte maneira27: dado
um choque positivo na variável aleatória vt, a demanda pelo ativo (xt) aumentará. Por sua vez,
isto eleva tanto o preço de mercado (pt) quanto o valor intrínseco real do ativo 𝑝∗, . Todavia,
como c > g 28, p
i,t > 𝑝∗, . Este excesso de demanda também causa um custo de inventário para o
market maker (It < 0).
No período seguinte, supondo vt+1 = 0, os preços de mercado sofrerão dois efeitos:
a pressão pelo excesso de demanda, que vai aos poucos sendo absorvida pelo market maker até que o efeito do choque se dissipe; e um efeito permanente a partir da crença dos agentes não informados a respeito do nível de assimetria informacional do mercado. O primeiro efeito se
inicia com o market maker aumentando qt+1 para recompor seu inventário. Em consequência
disso, aumentará a percepção dos traders não-informados de sobreprecificação do ativo,
causando aumento de sua oferta e queda em xt+1. Dinamicamente, o market maker responde
diminuindo qt até eliminar seu custo de inventário, de modo que xt → 0 e qt → 𝑝∗, + 𝜀, .
O segundo efeito se refere à estimativa dos agentes não-informados a respeito do conteúdo informacional dos movimentos de preços: o efeito do choque em vt se transporta
27 Para simplificar o raciocínio, supõe-se aqui que ε
i,t = εi,t+1 = 0, sem perda de generalidade
28 Esta premissa reflete o fato do spread estabelecido pelo market maker ser tal que ele busque recuperar tantos os
permanentemente para as estimativas do valor intrínseco dos ativos, refletindo o information risk (g) dos agentes não-informados.
A partir da equação genérica (22) de modelos de TMM, pode-se sumarizar os efeitos dos termos de microestrutura nos preços de mercado conforme abaixo:
𝑠, = 𝑝, − 𝑝∗, = 𝑐, . 𝑥, − 𝑏𝐼 − 𝑔, . 𝑣 , (29)
O primeiro termo relata o efeito da iliquidez em conjunto com o tamanho da demanda líquida. O segundo termo se refere ao efeito dos custos de inventário. O terceiro termo representa o efeito do belief dos agentes quanto à assimetria informacional. Os dois primeiros fatores tendem a se dissipar a partir de um choque inicial na demanda pelo ativo, o que significa que seu efeito deve ser uma reversão à média dos preços de ativos – ou sua dependência serial negativa. O terceiro termo também tende a reverter os choques iniciais de preços, com a diferença de que o efeito deste choque no nível de preços não se dissipa (HASBROUCK, 1996). Para os objetivos deste trabalho, é particularmente importante verificar os efeitos dos fatores de microestrutura na previsibilidade de retornos de curto prazo – em especial variações na liquidez. Para isso, apresenta-se formalmente o impacto da microestrutura na sua previsibilidade a partir da análise de seu efeito na propriedade MDS (e, logo, da imprevisibilidade) da série de preços:
𝐸 𝑟, |𝑟, = 𝜇 + 𝐸 𝑠 |𝑟, (30)
𝐸 𝑠, |𝑟, = 𝑐, . 𝐸 𝑥, |𝑟, − 𝑏. 𝐼 − 𝑔, . 𝑣, (31)
A equação (30) é similar ao conceito de MDS, mas com a inclusão de E[st+1|ri,t-l]
representando a influência do fator de microestrutura. O termo l é qualquer número de lags tal que 𝑙 ∈ 𝑁. Partindo de uma situação de equilíbrio no qual It-1 = 0, um choque exógeno em vt+1 (suponha vt+1 = 1) afetará o nível de xt em igual montante. Assim, neste caso E[si,t+1|ri,t-l] = (ci,t+1 – gi,t+1)vi,t+1. Presumindo g constante, e aplicando a premissa do modelo que c > g, pode-se concluir que: (i) ativos menos líquidos sofrerão maior efeito de um choque, partindo de uma posição de equilíbrio; (ii) um aumento na liquidez (diminuição de c) torna o efeito do choque inicial na série de retornos mais próximo de zero. Dinamicamente, este menor efeito inicial causa menores desequilíbrios de inventário, por sua vez diminuindo também dinamicamente o termo de perturbação com relação à MDS.
As inferências realizadas a partir do modelo apresentado possuem algumas limitações. Por exemplo, para que a dependência serial dos retornos seja negativa, presume-se
implicitamente que b seja suficientemente grande para que o ajustamento de inventário do market maker seja relativamente rápido. Ademais, os efeitos devido à assimetria de informação e custos de inventário são considerados de forma aditiva no modelo. Mais, a demanda do trader informado – e consequentemente a estimativa de mercado do conteúdo informacional das negociações – poderia ser em princípio afetada pelas cotações (qt), e não apenas pela nova
informação privada que ele possui (representada por vt) (HASBROUCK, 1996).
Apesar das ressalvas colocadas, o modelo aqui apresentado é um bom exemplo de como fatores da microestrutura de mercado podem afetar a previsibilidade da série de preços de mercado. Para os objetivos deste estudo, afirma-se então que caso modelos da TMM como o exposto tenham propriedades próximas dos resultados empíricos obtidos, espera-se que: (i) possa haver dependência serial negativa permeando a série de retornos de curto prazo – em especial em portfólios com baixo nível de liquidez; (ii) o aumento da liquidez diminua a previsibilidade da série.