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Modernização conservadora: a agricultura no sertão de currais

3.2 MUDANÇAS E CONSERVAÇÃO NO SÉCULO XX DO RN

3.2.2 Modernização conservadora: a agricultura no sertão de currais

Conforme destacado anteriormente, a vinda da independência não modificou muito a economia ou a estrutura social dessa região, inclusive a lei de terras consolida a estrutura fundiária vigente na primeira região colonizada do país20. Nesse aspecto,

uma mudança importante na dinâmica econômica do Nordeste brasileiro ocorre com a interrupção das exportações norte-americanas durante a guerra de secessão. Esse momento é marcado pelo crescimento do valor das commodities no mercado internacional, com destaque para o algodão. Devido à região Nordeste já ter previamente uma estrutura de produção mínima, implantada quase como subsistência durante os anos, ela consegue aproveitar o momento e dar um salto importante na estruturação desse mercado que vinha a passos lentos desde o início da revolução industrial. Esse cenário consolida a estrutura gado-algodão nas fazendas no interior da região, mesmo a pecuária ainda sendo a economia principal no semiárido (ANDRADE, 1980).

20Desde o final do século XIX a cem anos adiante, a história do Rio Grande do Norte, em especial, do seu interior, é a cultura do algodão. Quando se pensa em entender os aspectos relacionados às instituições, aos costumes e à organização deve-se se pontuar a questão do ouro branco a todo o momento. Esse debate mereceria dedicação exclusiva, mas para instrumentalizar esta pesquisa serão tomados apenas alguns pontos nas próximas páginas. Para um debate mais denso sobre a temática, consultar Clementino (1987).

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No Brasil, a chegada massiva dos imigrantes, somada ao fim da escravidão e o início da república, criou um mercado consumidor e uma mão de obra assalariada que viria a estruturar uma dinâmica econômica interna. Com o avançar do século XIX e, especialmente, do século XX, a economia monetária que só era dinâmica no comércio exterior passou a ser internalizada produzindo uma demanda crescente por bens de consumo. Mello (1986) demonstra, de forma sistemática, como no início do século XX a cafeicultura paulista, o assalariamento, além dos centros urbanos levaram à conformação das indústrias de bens de consumo que ganham corpo durante a Primeira Guerra Mundial.

Apesar dessa dinâmica no centro, no Nordeste, tanto quanto em grande parte do país, pela falta de integração nacional, baixa monetização e poupança regional, esses processos não ocorreram. As exportações para o exterior continuaram a ser o centro dinâmico dessas economias. Nota-se que a balança comercial inter-regiões no país só superou a performance do mercado internacional no pós-Segunda Guerra Mundial. Mesmo após a década de 1950, nas regiões periféricas do país, as exportações para fora do Brasil tiveram uma composição fundamental da economia dessas regiões, até a integração mais completa após a década de 1970 (CANO, 2007).

O fortalecimento do mercado inter-regional para todo o Brasil ampliou algumas complementaridades e beneficiou o país, no sentido de movimentar mesmo os Estados periféricos que vinham de uma estagnação do pós-Primeira Guerra Mundial. A esse respeito, Cano (2007) retrata bem os desafios:

Contudo, ao integrar-se no mercado, com a ausência de barreiras protecionistas, pode-se ganhar na competição de determinados produtos, mas não na de todos; participar do “mercado nacional aberto” significa também “abrir o mercado regional”. Dessa forma, a integração proporcionaria efeitos de estímulo, de inibição ou bloqueio e, até mesmo, de destruição (CANO, 2007, p. 189).

Cano (2007) demonstra ainda que o processo de integração nacional até o final da década de 1950, bem como o avanço da industrialização da região Sudeste, em especial, São Paulo, não teve como consequência o avanço das funções primárias em outras regiões. Ou seja, a agricultura capitalizada paulista absorveu muito da demanda originada do aumento dos trabalhadores urbanos, assim como as necessidades da indústria local. Assim, a partir de técnicas que poupam mão de obra, eles conseguiam competir com muitos produtos similares produzidos em regiões não

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capitalizadas. Neste estudo, propomo-nos a tratar dos impactos diretos desses processos na cultura do algodão e no desenvolvimento das regiões estudadas no interior potiguar.

A não integração aos mercados nacionais, considerando a proximidade da Europa, em especial da Inglaterra, assim como as sucessivas crises nos países exportadores de algodão, fez com que, até 1930, houvesse uma expansão constante dessa cultura em todo o semiárido nordestino. A estrutura construída a partir dos currais, no auge da lavoura da cana, além dos açudes e estruturas hídricas, foram chave para a diversificação e uma expansão acelerada no Seridó da cotonicultura. O aperfeiçoamento genético feito depois das últimas grandes secas do século XIX com a poupança dos velhos coronéis viabilizou a implantação dessa cultura de forma sistemática. Por se tratar de cultura do arbóreo, com baixo custo de mão de obra e manutenção, ela pode se manter ao longo de anos no mercado mundial, considerando os períodos de baixa, sendo expandida nos momentos de alta do preço.

Além disso, por ser uma cultura que tem baixo custo de manutenção e poderia ser conduzida, naquele momento, por uma mão de obra precária, não se manteve ao longo do tempo e expandiu para pequenas e médias propriedades, ou mesmo pulverizou os recursos e o poder no semiárido, em especial, no Seridó. Para trabalhar esse aspecto da conservação da estrutura anterior, será abordado o estudo de Clementino (1987), que irá mostrar a ascensão e a queda do maquinista21 no Rio

Grande do Norte, e a forma como o capital comercial se estruturou nessas regiões. Nesse processo, o primeiro elemento importante é a construção de relações de apadrinhamento. Esse tipo de relação de subordinação vinha da época da Coroa a partir das estruturas de segurança e dos títulos de nobreza, mas ganham outras formas com o advento da república. Na cotonicultura, é importante destacar a construção desses laços por meio de empréstimos para garantir ao pequeno produtor condições de plantar no seu pequeno roçado, que se dá de duas formas: a primeira é o adiantamento da compra da colheita com base na cobrança de juros exorbitantes; e a segunda é a compra do algodão na folha a um preço bem inferior ao praticado no mercado.

21 Clementino vai apresentar que o processo de produção do algodão, a partir da maquina de desencaroçar, junto com a logística foram se transformando ao longo do tempo e assim a queda do algodão foi construindo a vida do comercio e têxtil nas cidades.

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A relação estabelecida pelo empréstimo se consolidava a partir do maquinário responsável por descaroçar o algodão e a viabilização do comércio da pluma do algodão. Dessa forma, o maquinista que detinha o descaroçador era um porteiro chave que conectava a produção ao mercado externo e, por consequência, garantia a retenção dos empréstimos e organizava o capital comercial. Logo, o papel do fazendeiro maquinista do início do século XX, com a casa de exportação, era de estabelecer relações de complementaridade na organização e na concentração do capital nessa atividade econômica (CLEMENTINO, 1987).

É dessa forma que se perpetua a estrutura fundiária, não apenas pela grilagem e pelo cercamento das terras mas também com base no controle da circulação da mercadoria. Ou seja, mesmo com os baixos custos da cotonicultura no semiárido, os empréstimos e a intermediação do fazendeiro que detém o descaroçador são elementos chaves de manutenção de poder, também entre pequenos proprietários. Além disso, no primeiro momento, a falta de integração no mercado nacional e o fato de o centro estar voltado à exportação são fatores que vão fortalecer esses tipos de laços.

A manutenção desse enclave exportador pode ser aferida por meio das empresas instaladas no Rio Grande do Norte, em especial, em Natal, que era responsável por escoar o algodão do Seridó, que fazia as vezes da casa exportadora na relação com o mercado internacional, como aponta Clementino (1987, p. 67): “Em Natal, existiam grandes firmas, listadas por Pearse, entre as maiores do Nordeste: Boris Fères & Cia., Julius Avon, Söhsten & Cia, Wharton Pedroza & Cia., todas de capital estrangeiro”.

Os impactos do maquinário utilizado para descaroçar o algodão também refletem o processo de desenvolvimento do seu tempo, que vai das bolandeiras, no final do século XIX, aos locomóveis e até as usinas. Enquanto as primeiras pertenciam aos fazendeiros e muito da produção estava na própria propriedade, muitas das usinas já se localizavam nas pequenas cidades e mantinham relações diretas com as casas exportadoras e faziam todos os processos para o maior aproveitamento do algodão, da pluma ao óleo, reservando a torta para o gado. É interessante notar a necessidade de mais tecnologia a partir da concentração do capital comercial e a forma como a cotonicultura se integrava de maneira sistemática à pecuária existente. A cotonicultura no Rio Grande do Norte pode ser dividida em três períodos históricos: um primeiro, quando havia uma baixa integração entre os mercados

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regionais no Brasil, assim, a principal relação se estabelece a partir das firmas estrangeiras; um segundo, com base na concorrência com o algodão herbáceo de São Paulo e as transformações no mercado nacional; e um terceiro, com a decadência da cotonicultura, inicialmente, no semiárido e, em seguida, no agreste. É interessante notar as transformações no território potiguar ao longo desse período com o estabelecimento das cidades pequenas e médias e o papel que elas terão no período seguinte, tendo em vista a forma como serão estabelecidas as redes de comércio e serviço na região.

Os primeiros 30 anos do século XX foram conhecidos como os períodos de bonança do ouro branco no Rio Grande do Norte, em especial, no Seridó. Apesar de problemas de perdas com alguns períodos de estiagem, ou da diminuição de safras, os constantes preços nos mercados internacionais e as sucessivas crises políticas e econômicas em países concorrentes, como na Primeira Guerra Mundial ou no Egito, fizeram com que, no geral, as sacas de plumas tivessem ganhos sucessivos, mesmo com a tecnologia muito atrasada. Essa mudança só ocorreu de forma mais sistemática com o avanço do algodão paulista sobre a cotonicultura nordestina, com a integração das regiões e o início da criação do mercado nacional (CLEMENTINO, 1987).

Trinta anos após a revolução de 1930, ampliaram-se as contradições para o avanço do algodão, em especial, no semiárido. Como resultado, a tecnologia da colheita primitiva, dificuldades de logística para escoar começaram a causar problemas sistemáticos. Apesar de não conseguir competir no mercado nacional, o Seridó, em especial, mantinha sua valia no comércio exterior. A qualidade da espécie mocó, por causa da sua fibra longa, fez com que o produto mantivesse uma franja no mercado internacional, mesmo com um recuo da produção. Além disso, o melhor proveito da cultura como um todo (pluma, caroço e óleo), o baixo custo da manutenção da lavoura, assim como da mão de obra, e a convivência com a pecuária bovina durante todo o período deram estabilidade para as fazendas nas regiões com poucas mudanças na estrutura de poder e economia no período. Durante a queda no preço internacional, o foco ia para a pecuária, utilizando os caroços como parte da dieta do boi; quando havia alta, a cultura arbórea já estava pronta para ser aproveitada. Esse tipo de política também foi importante para manter a estrutura de poder vigente como irá se discutir a seguir (MORAIS, 2005).

Além disso, as décadas de 1960 e 1970 são marcadas por uma profunda crise nessa cultura, atingindo todas as regiões do RN, tendo o Seridó como epicentro. A

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volta da pecuária de maneira mais central na economia, com o advento do gado leiteiro como alternativa, é reflexo de uma mudança profunda na estrutura social e tecnológica no Brasil e no mundo. A decadência da cotonicultura vai muito além das pragas ou das secas na década de 1970. A esse respeito, Clementino (1987) destaca o avanço tecnológico de fibras sintéticas e as modificações no setor têxtil que provocaram uma queda no preço do algodão fibra longa. Houve, ainda, a reorganização do campo na grande fazenda do semiárido com a volta da pecuária e o avanço de outras plantas industriais, causando a diminuição da demanda e, por sua vez, da oferta do algodão no Rio Grande do Norte.

Durante todo o período, os incentivos estatais para a manutenção da lavoura, que, no início, vinham apenas por meio de uma política hídrica, no segundo momento, passaram a ter uma política de incentivo fiscal e compra governamental que sustentou parte da exportação e implementação das usinas. Mas o auge veio com a SUDENE e a implantação dos polos industriais. Já com a crise avançando e os grandes grupos têxteis se desenvolvendo no Sudeste, a política passou a não ser mais investir nos grupos locais, mas na abertura de grandes grupos nacionais do Sudeste. Essa inversão intensificou a crise no final dos anos 1970, como observamos no trecho a seguir:

Para o Nordeste e, particularmente, para o Rio Grande do Norte (produtor de fibra longa), esse efeito gerava dupla ação sobre o setor algodoeiro, dada a especificidade da fibra. À medida que essa indústria têxtil penetrava no Nordeste e no Rio Grande do Norte, desestruturava a produção regional têxtil (consumidora de fibra longa) e se implantava com uma base técnica poupadora de algodão e potencialmente não consumidora de fibra longa. Isso significa dizer que, mantida a tendência do consumo de matérias-primas da indústria têxtil nacional, em termos relativos, a tendência é a de que o consumo de fibra de algodão seja decrescente também na região. Melhor dizendo, há indícios que o parque têxtil instalado no Rio Grande do Norte - “terra do algodão” - esteja consumindo matéria-prima do sudeste (CLEMENTINO, 1987, p. 193).

A consequência dessa série de crises constantes foi a decadência sistemática do setor, a ponto de a cotonicultura, durante a década de 1980, ter uma participação bem residual no Rio Grande do Norte e a cultura de subsistência junto à pecuária ganhar novamente proeminência. Em seção adiante, pretendemos mostrar como foi o processo de reinvenção e ressignificação das instituições a partir dessa grande crise.

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Assim como a lei de terras exterminou a pecuária ultraextensiva, transformou o vaqueiro em trabalhador rural ou em pequeno proprietário que atuava de forma subordinada em relação aos grandes fazendeiros dando início a um primitivo sistema monetário. O segundo momento foi a retirada do centro dinâmico do interior da fazenda do coronel, seja pela grande produção e empréstimo, seja pela inserção do descaroçador nas usinas nos pequenos centros urbanos que se tornavam polos de comércio. Já nos anos 1950 e 1960, a dinâmica entre a fazenda e a usina se transformava num fluxo urbano-rural e constituirá um cenário que se redesenhará nos anos 1980 (MEDEIROS, 2006).

Nessa direção, dois elementos de organização nos momentos de crise foram importantes no semiárido devido à decadência da produção e da crise no campo nos anos 1960: a consolidação de sindicatos, a ser discutida na seção que trata da política, e o desenvolvimento do cooperativismo. No segundo caso, surgiu com base em dois modelos: um construído pela igreja, com o objetivo de levantar capital para acabar com atravessadores ou conseguir maquinários, como no caso descrito por Guerra (1980), em Apodi, do Padre Pedro; o outro foi com base na iniciativa de fazendeiros em busca de financiamento mais barato que se organizaram em consórcios a fim de viabilizar uma agroindústria ou uma usina, como descrito por Morais (2005). Em ambos os casos, o cooperativismo (visto no interior do Estado antes dos anos 1990) não funcionou, seja por problemas de gestão e levantamento de capital, seja pelos dirigentes das cooperativas tomarem ganhos e capitais para si. É importante destacar esses elementos que também serão marcas e trajetórias que carregarão aprendizados e experiências para o momento seguinte.

Mesmo sem a pujança do início da república, no Seridó, a persistência dos coronéis no entorno do algodão e a construção da imagem da riqueza advinda do “ouro branco” fizeram com que os impactos na projeção social e política da região, assim como os símbolos, também fossem marcantes. A elite local conseguiu estabelecer a construção de um discurso que apontava para um conteúdo imagético de riqueza e prosperidade da região, que, de certa forma refletia, a autoestima daqueles viviam no Seridó (MORAIS, 2005). Destacam-se ainda as relações de "vassalagem" assim como o orgulho do povo seridoense que vai se transformando de maneira sistemática ao longo da história tendo a igreja um papel de organização da região para um novo período.

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Já a dinâmica de Apodi passava por uma relação permanente com Mossoró. Em todo o semiárido, a cotonicultura foi importante como a pecuária, porém, a falta de acúmulo de capital na região fez com que o capital comercial e a circulação partissem de Mossoró e se integrassem mais com dinâmicas vindas do Ceará. A capacidade das famílias de Mossoró como entreposto e encontro fez com que o Oeste potiguar e seu entorno (no estado vizinho) tomassem a cidade como principal centro logístico e dinâmico da região (GUERRA, 1980). Essa característica vai realinhar os embates políticos no Estado a partir da década de 1970, com a ascensão das elites mossoroenses, especialmente depois da instalação da Petrobras e a decadência das antigas elites seridoenses.

A reinvenção dessas elites será fundamental para conseguir manter os poderes com o advento da república. Ademais, a crise econômica dos anos 1980 assim como a retomada da democracia no país com a ascensão dos movimentos populares são peças chave para diversas mudanças estruturais, novos arranjos institucionais e ressignificação desses espaços a partir das trajetórias traçadas até o final dos anos de 1970. Por fim, é fundamental ver como se organizou a política nesse último período.