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1 INTRODUÇÃO

2.1 FUNÇÕES DOS PRODUTOS

2.1.4 Modo de apreensão dos produtos

Partindo do princípio de que cada uma das funções do produto exerce um papel diferente na relação usuário−produto, é necessário aprofundar um pouco acerca da percepção e dos modos de apreensão do usuário diante de cada uma das funções explicitadas. A percepção visual, um dos meios de acesso à dimensão estético- simbólica nesta pesquisa, é, de acordo com Jung (1964), um processo que, além dos aspectos conscientes, envolve também aspectos inconscientes. Em outras palavras, as imagens com as quais o ser humano lida diariamente influenciam o seu modo de ver e compreender os objetos, mesmo que não haja real consciência dessa influência.

De acordo com Vázquez (1999, p. 135), “perceber é entrar em uma relação singular, sensível e imediata com um objeto”, havendo, contudo, diferenças entre a percepção estética e a percepção comum. Enquanto a percepção estética é de caráter contemplativo e desinteressado, a percepção comum é exercida de acordo com uma finalidade, “é antes de tudo um meio a serviço de um fim. Um fenômeno é observado para que seja conhecido” (VÁZQUEZ, 1999, p. 142). No âmbito deste trabalho prevalece a percepção estética do usuário, a qual é espontânea e não apresenta interesse em analisá-lo a partir de algum fundamento ou preceito teórico.

Dondis (2000, p. 19) argumenta que

o modo como encaramos o mundo quase sempre afeta aquilo que vemos. O processo é, afinal, muito individual para cada um de nós. O controle da psique é freqüentemente programado pelos costumes sociais.

Porém, apesar do alto grau de individualidade presente no processo de interpretação e apreensão das coisas percebidas, “há um sistema visual, perceptivo e básico, que é comum a todos os seres humanos; o sistema, porém, está sujeito a variações nos temas estruturais básicos”.

Arnheim (2000, p. 4) explica que

o que uma pessoa ou animal percebe não é apenas um arranjo de objetos, cores e formas, movimentos e tamanhos. É talvez, antes de tudo, uma interação de tensões dirigidas. Estas tensões não constituem algo que o observador acrescente, por razões próprias, a imagens estáticas. Antes estas tensões são inerentes a qualquer percepção como tamanho, configuração, localização ou cor.

Essas ideias encontram suporte na Teoria da Gestalt3 sobre o

fenômeno da percepção. De acordo com essa teoria, existem atributos que são percebidos de modo semelhante por todas as pessoas, tendo em vista que “toda forma psicologicamente percebida está estreitamente relacionada com as forças integradoras do processo fisiológico cerebral” (GOMES FILHO, 2000, p. 19). De acordo com o autor,

não vemos partes isoladas, mas relações. Isto é, uma parte na dependência de outra parte. Para nossa percepção, que é resultado de uma sensação global, as partes são inseparáveis do todo e são outra coisa que não elas mesmas, fora desse todo (p. 19).

Considerando que a relação emocional entre usuário e produto é influenciada pelo modo como o usuário percebe as características dos produtos, Norman (2004) faz uma abordagem sobre os níveis de processamento cerebral relativos a cada nível de percepção dos produtos que vem sendo adotada como um dos princípios básicos da relação emocional usuário−produto.

Norman (2008, p. 56) argumenta que os produtos “oferecem um conjunto contínuo de conflitos” e categoriza a experiência das pessoas com os produtos em três níveis de processamento: visceral, comportamental e reflexivo.

3 A Teoria da Gestalt tem origem na psicologia e estuda conceitos relacionados à

percepção visual. Sua fundamentação teórica trata exclusivamente de conceitos relacionados à percepção visual da forma, entendida como limite exterior da matéria, ou seja, a imagem visível de um objeto (GOMES FILHO, 2000).

O nível visceral é rápido, “diz respeito ao impacto inicial de um produto, à sua aparência, toque e sensação”. É sensorial e está relacionado, portanto, à percepção. O nível comportamental está relacionado à experiência de uso do produto, e essa experiência abrange a função, o desempenho e a usabilidade. Já o nível reflexivo está vinculado à construção da autoimagem e da satisfação pessoal (NORMAN, 2008, p. 56).

Norman (2008, p. 41) explica que o modo como os três níveis interagem é complexo, tendo em vista que “cada nível desempenha um papel diferente no funcionamento integral das pessoas” e cada nível interage entre si, modulando um ao outro. E, portanto, sua explanação sobre o funcionamento de cada nível é simplificada com vistas a facilitar a compreensão, mas chama a atenção para a dificuldade em aplicar tais simplificações.

Essa observação sobre a dificuldade em categorizar os níveis de processamento cerebral pode ser estendida à categorização das funções dos produtos, tendo em vista que as funções dos produtos também interagem entre si e modulam umas às outras. Ou seja, as categorizações, nesse caso, são viáveis em virtude de facilitar a compreensão de cada dimensão do produto, mas os entrelaçamentos e suas implicações aumentam à medida que se aprofunda a procura das especificidades de cada dimensão.

Iida, Barros e Sarmet (2007, 2008) fazem uma associação entre o conceito de Löbach (2000) sobre as funções dos produtos e a classificação de Norman (2004) sobre os três níveis de processamento cerebral do prazer, aplicáveis ao design, relacionando a função estética ao nível de processamento visceral, a função prática ao nível de processamento comportamental e a função simbólica ao nível reflexivo. A Figura 2 apresenta a relação das funções dos produtos (LÖBACH, 2000) aos níveis de processamento cerebral (NORMAN, 2004).

Figura 2 – Diagrama das funções do produto Fonte: Adaptado de: Iida, Barros e Sarmet (2007).

É no nível visceral que o indivíduo reage de modo instintivo ao produto e faz julgamentos imediatos a partir de reações instantâneas de admiração e apreciação, ou não. É nesse nível que o indivíduo classifica um produto como feio ou bonito, por exemplo (IIDA; BARROS; SARMET, 2008). O nível visceral implica o prazer espontâneo proporcionado pela experiência estética e, portanto, está vinculado à função estética.

Iida, Barros e Sarmet (2008, p. 40) explicam que o nível comportamental decorre do resultado de uma ação, da interação entre produto e usuário, e envolve análises, julgamentos e decisões conscientes, os quais podem “confirmar ou não aquela impressão inicial, de natureza visceral”. Isso quer dizer que a primeira reação de um indivíduo diante de um produto se dá por meio dos sentidos, que são despertados a partir do impacto provocado por sua aparência, e só após utilizá-lo é que o usuário encontra-se em condições de emitir um parecer sobre seu desempenho funcional. O nível comportamental diz respeito a outro tipo de prazer, diferente do prazer espontâneo da experiência estética, ou seja, diz respeito à satisfação decorrente da efetividade proporcionada pela usabilidade de produto e, portanto, está vinculado à função prática.

O nível reflexivo é contemplativo e cognitivo, impulsionado pelo pensamento; é mental, evocativo e cultural e, portanto, está relacionado à função simbólica. Iida, Barros e Sarmet (2008, p. 40) explicam que o prazer reflexivo “está nos objetos que as pessoas usam para construir a auto-imagem e representação junto à sociedade”; é de caráter global e não está associado a características particulares do produto. Ainda de acordo com os autores, “um produto muito antigo ou de um autor famoso pode ser apreciado mesmo tendo defeitos funcionais”, tendo em vista que nesse nível de comportamento as pequenas falhas detectadas no produto podem ser desconsideradas.

Desse modo, o prazer reflexivo tem a ver “com relações de longo prazo, com os sentimentos de satisfação produzidos por ter, exibir, e usar um produto” (NORMAN, 2008, p. 58). Em outras palavras, “é consolidado a longo prazo, devido ao acúmulo de sentimentos e satisfações com certos produtos ou marcas” (IIDA; BARROS; SARMET, 2008, p. 40).

Diante do exposto, é possível compreender que a relação usuário−produto é afetada em um, ou mais, dos três níveis de processamento cerebral explicitados − visceral, comportamental e reflexivo −, assim como pelas funções dos produtos relacionadas a esses níveis. E, portanto, as reações emocionais do usuário ocorrem de maneiras distintas conforme a especificidade de cada produto. Em síntese, pode-se dizer que a apreensão das funções dos produtos é complexa e envolve diversos fatores, que vão desde um nível de processamento cerebral automático e inconsciente até um nível de reflexão profundo e consciente, no qual a configuração e o contexto do produto cooperam para a percepção e a apreensão da dimensão estético-simbólica e da função prático-utilitária dos produtos.