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morfologia, particularidades e influências

No documento O Retábulo no Espaço Ibero-Americano (páginas 163-177)

Mateus Rosada

1

, Maria Ângela Pereira de Castro e Silva Bortolucci

2

Introdução

Uma das maiores dificuldades em se pesquisar a arte brasileira dos séculos pretéritos é identificar os autores das obras. Os percalços começam pela característica de nossos arquivos, nos quais muitas vezes as lacunas são maiores do que a documentação propriamente dita que resistiu até a atualidade. Somam-se a tais dificuldades o fato de a assinatura e a marca do autor da obra não terem sido considerados como elementos importantes pelos personagens do período analisado. Por esses motivos, é raro encontrar-se registro de autoria das obras.

Identificar quem as fez também facilitaria compreender, pelas origens do autor, quais foram suas influências. No entanto, não há nenhum nome de entalhador registrado nos períodos do maneirismo e do barroco português no Estado de São Paulo. O autor mais antigo sobre o qual há alguma menção é Luís Rodrigues Lisboa (Ortmann1951, 66), já do período joanino. Em nossa investigação, mesmo com extensa pesquisa bibliográfica e em material primário, encontramos menção ao nome de apenas dezoito entalhadores no universo de 120 igrejas e mais de trezentos retábulos pesquisados. Mapear as influências dos grupos de artífices que atuaram em São Paulo foi uma necessidade que nos impusemos e que nos levou a organizar agrupamentos pela semelhança na talha, numa observação muito mais visual e estilística do que documental. Chegamos, assim, à identificação de 84 grupos responsáveis pela talha paulista, com influências várias, dos quais detalharemos os quatro mais importantes que atuaram no século XVIII.

Primeiras influências

Os remanescentes mais antigos do Estado, as quatro colunas do retábulo da Matriz da cidade de São Vicente, evidenciam um saber erudito e, tendo pertencido à extinta igreja jesuíta da cidade, foram, como crê Lúcio Costa (2010, 157), parte de um altar completo confeccionado 1Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP). Professor licenciado da Faculdade de

Administração e Artes de Limeira (FAAL).

2 Graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), doutora pela Universidade de São Paulo (USP)

na metrópole e para cá trazido pronto. Há ainda os retábulos das capelas rurais de Voturuna, em Santana de Parnaíba, e do Sítio Santo Antônio, em São Roque, ambos da década de 1680, que se crê terem sido feitos por artistas oriundos da América Hispânica (Amaral 1981, 88), que chegaram a São Paulo conjuntamente com padres jesuítas. Destaque-se que São Paulo era o principal entreposto português que ligava a América Lusa à Hispânica, mantendo intenso comércio com o Cone Sul americano, especialmente nos três primeiros séculos da colônia, sendo rota de comércio e sofrendo bastante influência espanhola nesses tempos.

O Grupo de Luís Rodrigues Lisboa (atuante em 1736-1761)

Adentrando-se ao século XVIII, encontramos o primeiro entalhador com oficina registrada na cidade de São Paulo. Trata-se do português, provavelmente olissiponense, Luís Rodrigues Lisboa (Portugal – São Paulo, 1761), irmão terceiro franciscano a quem se atribui a confecção do retábulo de Nossa Senhora da Conceição da igreja da Ordem em São Paulo (Ortmann 1951, 147) (Fig. 1). Em algum tempo, o grupo do qual fazia parte e provavelmente era o mestre realizou obras em pelo menos quatro cidades: Itanhaém, Mogi das Cruzes, Santos e São Paulo. Alguns desses retábulos foram deslocados: dois altares colaterais da Matriz de Mogi das Cruzes, quando da demolição desta, foram entregues à Igreja de Nossa Senhora do Brasil, na capital; o corpo de um retábulo lateral da Antiga Sé paulistana encontra-se compondo o altar da Capela do Santíssimo de Bom Jesus dos Perdões; e o Mosteiro de São Bento, que possuía obras deste grupo, enviou peças que hoje compõem partes do retábulo do mosteiro beneditino de Jundiaí e do retábulo de São Miguel da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da capital. Assim, encontramos atualmente, do grupo de Luís Rodrigues Lisboa, doze retábulos (ou partes) em sete igrejas e cinco cidades.

Há alguns elementos de ornamentação que caracterizam o grupo. Por exemplo, a clássica estrutura joanina com intercolúnios oblíquos, acompanhada pelo coroamento em arquivoltas concêntricas arrematado em tarja. As mísulas são ornadas com festões de flores e levam querubins bochechudos e de feições infantis à frente, com penachos atrás de suas cabeças. Figuras humanas de corpo inteiro se assentam também no coroamento de alguns retábulos. Nos exemplares mais antigos, as colunas são salomônicas, com o terço inferior estriado e parte superior ornada de motivos fitomorfos; nos demais, são pseudossalomônicas e os motivos vegetais correm nos sulcos das espiras em toda a extensão das colunas. A talha de flores, volutas e acantos é primorosa e possui um crescendo de qualidade dos primeiros aos últimos altares. São representados vários tipos de flores, aqui sempre em ramagens de três caules amarrados, e as folhas são de um desenho rico, recortado, com ranhuras e nervuras. As fitas que cingem os ramos surgem em nós com laços ou enroladas à ramagem.

As cartelas possuem desenhos bastante elaborados, quase sempre assimétricos, com enrolamentos de folhas de acanto e volutas. Estas, por vezes, terminam em pequenas formas conchóides ou repetições do dorso de suas voltas, semelhantes a cornucópias. Todos esses conjuntos são bastante movimentados, com dobramentos e curvas concorrentes.

Nas obras deste agrupamento, a disposição de anjos nas mísulas, suas feições, o uso de penachos, a forma das folhas e flores que adornam as colunas salomônicas, o padrão e as proporções dos acantos e volutas dos capitéis compósitos, o desenho dos lambrequins e de grande parte dos ornamentos das cartelas guardam inquietantes semelhanças com a talha elaborada por Francisco Xavier de Brito (Lisboa, s.d. - Ouro Preto, 1751), especialmente nos

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altares laterais da Igreja da Ordem Terceira da Penitência do Rio de Janeiro (1726-1743). Brito, como Rodrigues Lisboa, era português de Lisboa e, ainda que o entalhador da Penitência carioca tenha um traço mais refinado, a origem de ambos pode indicar que tenham tido as mesmas influências comuns no além-mar.

Fig. 1 - Retábulo lateral de Nossa Senhora da Conceição na Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco,

da Ordem terceira da Penitência, em São Paulo (1736-1740). (Fotografia do autor)

O Grupo de Bartholomeu Teixeira Guimarães e José Fernandes de Oliveira (atuante em 1766-c.1800)

Já de características rococós, o grupo de artífices com maior quantidade de obras no Estado de São Paulo possui o registro de nomes de dois entalhadores com obras semelhantes: Bartholomeu Teixeira Guimarães (Lordelo, Guimarães, Portugal, 1738 - Itu, São Paulo, Brasil, 19-02-1807) e José Fernandes de Oliveira, responsáveis por 33 retábulos em nove cidades paulistas - Aparecida, Atibaia, Cotia, Guarulhos, Itu, Mogi das Cruzes, Santos, São Paulo, e Sorocaba – além de um retábulo-mor na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Viamão (Bonnet 2008), no Estado do Rio Grande do Sul, cidade que era destino de tropas de comércio paulistas. Certamente as obras aqui elencadas não podem ter saído todas do cinzel dos dois artistas que batizam o grupo, pois seria impossível que confeccionassem tantos retábulos em 45 anos, por mais que tivessem um número razoável de ajudantes. O nome de Bartholomeu Teixeira é citado no inventário de Maria Francisca Vieira, senhora de posses da cidade de Itu, que destinou em seu inventário 600 mil réis para financiar a metade do valor contratado com o dito entalhador para a feitura do retábulo da Matriz de Nossa Senhora da Candelária em 1786 (Cerqueira 2015, 03-05) (Fig. 2). José Fernandes de Oliveira tem seu nome registrado nos livros de contas das ordens terceiras de São Francisco (Ortmann 1951, 323-29) e do Carmo, ambas na cidade de São Paulo (Andrade 1963, 160), em lançamentos referentes ao retábulo-mor da primeira em 1791 e por partes do retábulo da segunda em 1793.

Sobre as origens desses dois artífices, encontramos o testamento de Bartholomeu Teixeira, preservado no Arquivo Público do Estado de São Paulo, onde o próprio menciona ter sido batizado em Guimarães; quanto a José Fernandes de Oliveira, cremos que seja português do Porto, pois o Dicionário de Artistas e Artífices do Norte de Portugal (Ferreira-Alves 2008, 243) indica a presença em 1758 de um entalhador de mesmo nome na freguesia de Campanhã, do conselho da mesma cidade. O mesmo dicionário elenca cinco carpinteiros e entalhadores com o sobrenome Teixeira Guimarães atuantes no século XVIII nas cidades do Porto e de Guimarães, indicando que Bartholomeu pode ter pertencido a uma família de artífices.

Acabamos por reunir a ambos os entalhadores no mesmo grupo por terem muitas características semelhantes, que nos levam a supor que Fernandes de Oliveira possa inclusive ter sido discípulo de Teixeira Guimarães, dada a grande similaridade de estrutura e elementos decorativos dos retábulos por eles executados, especialmente os auriculares, quase idênticos. Este grupo foi crucial na formação de um padrão exclusivamente paulista, que não se repete em outros estados brasileiros, a não ser no já citado caso de Viamão, certamente um caso importado e isolado.

Os auriculares, elementos que surgem na obra de Teixeira Guimarães e se repetem com assustadora semelhança na de Fernandes de Oliveira, são de origem bávara (Smith1962, 144), e marcaram não só a obra do presente grupo, mas foram também utilizados, com variações formais a partir dos padrões por eles difundidos, por outros artistas paulistas até a década de 1830, ou seja, durante setenta anos desde os casos mais antigos. Note-se que esses elementos são muito comuns no Norte português, especialmente nas regiões de Braga, Porto e Vila Real; e sabemos que, em 1801, em São Paulo, 45% dos homens portugueses provinham do Minho, 20% dos Açores e 16% de Lisboa (Geni s.d.); 19% eram de outras partes de Portugal.

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Fig. 2 - Retábulo-mor da Igreja Matriz de Nossa Senhora

da Candelária, em Itu (1786-1788). (Fotografia do autor, 2014)

A talha deste grupo caracteriza-se, basicamente, por retábulos de ornamentação rococó, baseada quase que exclusivamente nos auriculares, mas que mantêm uma estrutura um tanto tradicional, joanina, perceptível no uso insistente de sanefas em arco joanino com lambrequins (quando outras as peças retabulares do período já eram arrematadas em arco pleno), tarjas nos coroamentos e colunas torças, nos exemplares mais antigos, ou lisas, sem nenhum ornamento ou estria, nos mais recentes. Há uma linha evolutiva dos retábulos deste grupo, que tende à simplificação dos elementos e limpeza das superfícies, mas a presença de auriculares se dá em todos os exemplares.

Os auriculares, aliás, são os elementos que marcam as obras de Teixeira Guimarães e Fernandes de Oliveira. Tratam-se de composições de volutas concorrentes ou sobrepostas com leques de pétalas, geralmente em seus extradorsos e, no caso específico dos artistas deste grupo,

com grande regularidade das ditas pétalas, quase sempre de mesmo tamanho, conformando um contorno regular e uniforme, distinto da solução formal encontrada por artistas como Francisco Vieira Servas em Minas, por exemplo, cujos contornos eram mais variados e movimentados.

Destaque-se que colunas totalmente lisas em retábulos rococós, sem apliques, estrias ou marcações, surgem a partir deste grupo e se repetem em obras mais recentes de outros entalhadores, sendo encontradas, no Brasil, apenas em terras paulistas, à exceção de uma ocorrência isolada nas igrejas da região norte-mineira de Diamantina e Serro.

Grupo do Rococó Fluminense (atuante em c.1780-c.1800)

Existem em São Paulo muitos exemplares de influência do Rio de Janeiro que, se era pequena até meados do século XVIII, torna-se cada vez maior no decorrer do século, a partir da transferência da capital da colônia de Salvador para lá, em 1763. É a segunda sede de capitania mais próxima da capital, a 420 km desta (Ouro Preto, anteriormente denominada Vila Rica quando era capital de Minas Gerais, localiza-se a 400 km). Desse modo, a afluência de pessoas – e artífices – do Rio de Janeiro para São Paulo se faria sentir cada vez mais fortemente. Nesse período, o fato de ser capital, também estreitou a relação carioca com a sede da metrópole e os padrões estéticos da corte portuguesa, um tanto distintos do norte do país, chegavam à colônia americana via Rio de Janeiro e dali se disseminavam. Myrian Ribeiro de Oliveira destaca que “o modelo de decoração rococó elaborado no Rio de Janeiro estendeu-se a outras

cidades da região Fluminense, como Angra dos Reis, Paraty, Itaboraí, Maricá e Campos dos Goytacazes” (2003, 96). Percebemos que, para além do Rio de Janeiro, essa influência ultrapassou a divisa das capitanias e chegou a São Paulo, atingindo o Vale do Paraíba paulista, região que sempre teve uma ligação mais estreita com a capital fluminense devido à sua posição geográfica. Com isso, além das cidades fluminenses citadas, artífices de clara influência fluminense realizaram trabalhos nas igrejas de Aparecida, Guaratinguetá (Fig. 3) e Cunha, não por acaso, todas no caminho velho da Estrada Real, que ligava a Minas Gerais ao porto fluminense de Paraty, cidade que pode ter sido a porta de entrada desse grupo em São Paulo.

O grupo guarda muitas semelhanças com as obras de um dos principais artífices do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII: Inácio Ferreira Pinto (Rio de Janeiro, 1759- 1828) (Rabelo 2001). Há visíveis semelhanças das igrejas deste grupo, nas colunas estriadas, nos capitéis, nos coroamentos, entre outros elementos, com igrejas fluminenses, como as de Santa Rita e de Nossa Senhora do Rosário, em Paraty; de Nossa Senhora da Guia, em Mangaratiba; do Carmo, Campos dos Goytacazes; de Santa Rita, Santa Efigênia e Santo Elesbão, Santa Luzia, Ordem Primeira do Carmo, Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores e Nossa Senhora da Glória do Outeiro.

Uma primeira característica tipicamente fluminense que salta aos olhos, antes mesmo de se observar os retábulos, é o arremate superior dos arcos-cruzeiros, sempre ornados com cartelas nas pilastras e na face do intradorso e com rocalhas que extrapolam o espaço restrito da moldura, formando aletas laterais que se alçam da composição e preparam o espaço central, na chave do arco, para receber uma tarja de grandes proporções.

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“Tipicamente carioca é, entretanto, a decoração da arcada que delimita externamente o retábulo, com relevos ornamentais aplicados em intervalos regulares, e uma elegante tarja central ladeada por duas aletas sinuosas em curva aberta (...). Tanto a tarja como as aletas foram monumentalizadas, para a adaptação às dimensões do arco cruzeiro, recebendo as últimas requintado desenho rocaille, assim como os ornatos em talha dourada, aplicados na face interna das pilastras e no intradorso do arco. Essa primorosa composição ornamental, (...) foi retomada no arco cruzeiro de outras igrejas, notadamente Mãe dos Homens, Lapa dos Mercadores, Ordem Terceira do Carmo e Santa Cruz dos Militares, transformando-se me marca definitiva do rococó religioso do Rio de Janeiro”(Oliveira 2003, 188-89).

Fig. 3 – Retábulo-mor da Catedral de Santo Antônio, em Guaratinguetá (c.1780).

Essa forma de ornamentação cujas rocalhas escapam da moldura do arco-cruzeiro só ocorre em igrejas paulistas do estilo rococó deste grupo.

Além dos arcos-cruzeiros, os retábulos do rococó fluminense possuem muitas características marcantes e únicas dentro do contexto paulista. Apresentam, inicialmente, estrutura com o camarim central arrematado em arco pleno e coroamento que se dá, nos retábulos-mores3, em frontão curvilíneo ladeado de volutas com moldura superior e resplendor ao centro (Tirapeli 2003, 278), forma que ocorre com mais frequência no Rio de Janeiro e, com algumas particularidades, em Minas Gerais. Nos colaterais, a única diferença está na moldura superior, que passa a ser triangular. Essa solução de coroamento difere da maior parte dos altares paulistas do rococó, cuja regra foi a de manter a composição encimada por uma sanefa em arco joanino e uma tarja central, características que marcam o período anterior, do barroco joanino.

Também o tratamento das colunas difere do padrão paulista, pois são retas e estriadas com estrias salientes, arrematados tanto no primeiro terço como nas partes superior e inferior do fuste por elementos fitomorfos, semelhantes a botões de flor, que se intercalam nos espaços entre as estrias ou as abraçam. Os capitéis são compósitos e ornados com as folhas estilizadas, de bordos lineares e sem recortes. A única exceção se dá nas colunas do retábulo-mor de Cunha, que são salomônicas com as espiras ornadas de flores miúdas, mas de um padrão diferente de qualquer retábulo paulista e semelhante às flores que decoram as colunas torças fluminenses do período.

As colunas estriadas e a forma do coroamento dos retábulos do rococó do Rio de Janeiro levam Myrian Oliveira a ligá-los a um padrão olissiponense:

“Os elementos de maior destaque são as colunas retas e estriadas, acima das quais eleva-se um frontão de linhas sinuosas, com anjos adoradores ajoelhados nos arranques laterais. Essa estrutura reproduz uma tipologia muito comum na região de Lisboa, de onde foi provavelmente importado o modelo” (Oliveira 2003, 188).

É importante que se destaque que a figuração humana quase inexiste nos altares rococós do Estado de São Paulo, estando presente, com raras exceções, apenas neste grupo de entalhadores, e mesmo as figuras dos anjos adoradores nos coroamentos, citadas por Oliveira (2003, 188) ao observar igrejas cariocas, não ocorre na variante paulista.

As cartelas e as tarjas contam com a presença de amorfismos. Ainda assim, as estrias das conchas são perceptíveis. As bordas são tratadas com volutas que são sempre abraçadas por algum elemento que escapa da composição interior e encimadas/rodeadas por flores e folhas. Nota-se a presença da representação de folhas de palmáceas, vocabulário de influência pombalina, estilo da coorte portuguesa do período. Tal elemento evidencia, mais uma vez, a ligação desse padrão com a ornamentação de Lisboa, disseminada no Brasil predominantemente via Rio de Janeiro.

3Neste grupo existem apenas três retábulos-mores: o de Guaratinguetá, o de Cunha e o da Igreja de São Gonçalo

paulistana. Os dois últimos são resultados de reformas, pois apresentam partes de características de entalhe diferentes. O único que possui toda a estrutura fluminense é o de Guaratinguetá.

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O Grupo de João da Cruz (atuante em 1792-1879)

Outro grupo atuante no Estado de São Paulo, já mais recente, avançando para o século XIX, é o do artífice João da Cruz. É de sua confirmada autoria o retábulo-mor da Igreja da Ordem Terceira do Carmo de Mogi das Cruzes (Ordem Terceira 1768-1818, 88) (Fig. 4). Este agrupamento foi muito duradouro por conta de prováveis seguidores que realizaram obras bastante tardias seguindo alguns padrões compositivos e ornamentais do entalhador, daí a persistência do estilo por 87 anos. É também o segundo grupo com maior número de altares confeccionados no Estado de São Paulo: são 23 retábulos em doze igrejas de sete cidades: Caçapava, Guararema, Mogi das Cruzes, São Paulo, Suzano, Taubaté e Tremembé. As linhas gerais do grupo (que possivelmente teve mais de um entalhador além de João da Cruz, dada a quantidade de obras) tornaram-se uma espécie de estilo regional na faixa entre Mogi e Taubaté, a ponto de terem sido padrão para a confecção dos dois retábulos mais tardios, que avançam pela segunda metade do século XIX.

Fig. 4 - Retábulo-mor da Igreja da Ordem Terceira

do Carmo, em Mogi das Cruzes (1803-1805). (Fotografia do autor, 2014)

Todos os municípios aqui se situam ao longo do caminho que leva ao Rio de Janeiro. Não deve ser por acaso que encontramos algumas características fluminenses nos altares de João da Cruz, como o coroamento com frontão ladeado de volutas e com resplendor ao centro: a obra mais antiga é o retábulo-mor da Catedral de Taubaté, quase vizinha às cidades de Aparecida e Guaratinguetá, por onde circularam, no mesmo período, os entalhadores do Grupo do Rococó Fluminense. Também neste grupo, numeroso em obras, apresenta-se uma linha evolutiva, que se percebe mais claramente pelo tratamento do coroamento e pela evolução dos capitéis das colunas, com uma tendência sempre para a simplificação.

Há trabalhos com coroamento à moda fluminense, com frontão curvilíneo ladeado de volutas, com moldura superior e resplendor ao centro, assentado sobre um arco de camarim pleno e ornado com rocalhas ou lambrequins. Há, no entanto, uma sensível diferença entre o coroamento do padrão João da Cruz com o rococó do Rio de Janeiro: a arquivolta externa do

No documento O Retábulo no Espaço Ibero-Americano (páginas 163-177)