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Os lados da Morte no poema “Deste lado”

3 SOL, POEIRA E CINZAS FIGURAÇÕES DA MORTE NA POESIA

3.1 Nuances do humano findar-se em O tempo consequente – 1966

3.2.4 Os lados da Morte no poema “Deste lado”

Dentre as figurações da morte na poesia dos brasileiros, o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu o poema “Como encarar a morte”35 (Alguma Poesia, 1930) em que o eu lírico poetiza o fenecimento humano observado por vários ângulos (de perto, de longe, por dentro, por fora e outros). Dialogando com o tema, porém com outra possibilidade para as faces da morte, H. Dobal publicou, em 1969, O dia sem presságios, em que o poema “Deste lado” traz versos que divisam os lados da Morte, que se posicionam próximos do eu lírico, fazendo-se confundir com a vida:

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A Morte configurada nesse poema de Drummond, numa leitura possível, é quase um jogo de palavras. Entende-se que os versos foram poeticamente planejados para que o poema não seja fácil de ser decifrado, para que não se possa mesmo enfrentar a Morte “de frente”. Numa síntese do poema: a Morte “ao longe”, esquecida – “dorme no espaço, numa terna imagem da barca dos beija-flores”, depois “à meia distância” se faz numa convivência de “claridade e sombra”, “trevas e claridade”, numa metáfora sutil às faces contíguas da vida e da morte; em seguida, pelo olhar “de lado” já se percebe o esboço ainda meio indefinido de uma figura e suas marcas que se mostram mais visíveis por “um código de sandálias”; na perspectiva “de dentro” menciona-se um “gás indefinível” ainda que referindo-se à presença de “um corpo”, e por fim a constatação de “um no outro” indissociado, pois afinal fica a sugestão de que a morte está presente na vida e que todos a conhecem mas, não querem enfrentá-la.

DESTE LADO

Deste lado da morte fica a terra triste aonde só os desejos retornam. Terra triste usurpada por outras lembranças: seus rios secam na memória, sua memória sem lágrima seca no chão salgado

deste lado fica o brejo do sono,

os campos onde floresce a beleza das cinzas. Deste lado da morte um pássaro parado grita seu nome no calor da tarde deste lado, o calor da noite voa o rasga-mortalha

Despreparado deste lado da morte o homem conta os seus dias. Seu cansaço

reverte ao pó de outra terra (DOBAL, 2007, p. 91-92, grifos nossos).

Na primeira estrofe, de sete versos no estilo “livre e branco” dobalino, quando o sujeito lírico afirma que /deste lado da morte fica a terra triste/, entende-se que a morte tem dois lados: deste lado, onde o sujeito lírico se encontra e outro lado, que se subentende que exista em oposição a este primeiro. Habitando ambos os lados, assim, pode-se entender que tudo é Morte, tanto deste lado, como do outro lado! O poema acrescenta que “deste lado” é uma terra triste onde somente os desejos retornam e, depois são enumerados aspectos desta terra triste, voltada para memórias que foram substituídas e o que nela secou: os rios, o brejo, as lágrimas. No entanto, o brejo, que deveria ter água, se constrói de sono e sonho, onde o chão é estranhamente salgado. Todos esses índices remetem a tristezas e lágrimas, e se o chão mostra-se salgado, talvez os versos pretendam disfarçar que as lágrimas, antes “brejos de lágrimas”, tenham secado ali, restando apenas o gosto salgado. “Deste lado” da morte, nos campos, só “florescem” cinzas, portanto, não “florejam” na acepção própria do termo como deveria ser, pois o “florescimento de cinzas” é uma imagem de oposição à vida, afinal, as cinzas simbolizam a Morte, a volta ao pó.

Portanto, a primeira estrofe que define “este lado da morte” contempla a descrição de uma vida onde há secura, mas que também existem lágrimas que secam e que somente deixam o sal e as cinzas. Os brejos talvez sejam uma grande metáfora dos olhos, outrora “embrejados” pelas lágrimas, pois neles se disfarçam o sono e a lágrima que secou. Este lado da morte nada mais é do que a vida, porém somente quando ela se faz caracterizada por uma profunda tristeza que sugere ao eu lírico, que a considere a própria Morte em sua outra face, antes não divisada.

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Na segunda estrofe, de quatro versos, “este lado da morte” ainda é ampliado por mais detalhes: há um pássaro, mas ele não voa e está estranhamente parado, porém, ele grita seu nome (sabe-se que alguns pássaros tiveram seus nomes adotados a partir da semelhança sonora com o seu canto), e esse canto se propaga no calor da tarde e esse calor se espalha pela noite. Recolhendo os indícios e complementando as ideias relativas à Morte, há outro pássaro que voa e, coerentemente ao propósito de “construção da morte poética”, este outro é um pássaro chamado de “rasga-mortalha”,3637 espécie de coruja, cujos sobrevoos e gritos estridentes são considerados sinais de mau augúrio. Fechando a segunda estrofe já se exibe a Morte, que sob o olhar lírico configura-se como uma vida dolorosamente triste, cheia de presságios ou augúrios. Os sons dos pássaros, ainda que não expressos em palavras ou onomatopeias, ocorrem aos sentidos do leitor por uma espécie de memória coletiva desses elementos da natureza.

A terceira estrofe, observando-se a disposição visual do poema, vê-se que ele se reduz para três versos, mostrando-se aos olhos do leitor, numa concepção de esgotamento, de redução, de decaimento. Nela se confirma uma compreensão de que, deste lado da morte, alguém, no caso, “o homem” não está preparado para a vida (no caso dessa vida dolorosamente triste) e por isso mesmo conta os seus dias, atitude que se poderia comparar à de um prisioneiro na cela, aguardando dias de liberdade. Observa-se que o eu lírico afasta-se para propiciar a ideia de amplidão do sujeito homem, que como se viu nos poemas “Homem”, “Réquiem” e “Verão”, não é um homem exclusivo, mas, o “homem espécie” que, despreparado, por não ter recursos para enfrentar as repetidas agruras, vive aquela situação de tristeza e somente lhe resta contar seus dias. De uma maneira geral, a expressão “contar os dias” significa uma impaciência para realização de algo, mas também existe uma conotação em que se diz “contar os dias” quando se está próximo da morte. No caso do poema, sugere-se que a contagem dos dias é para dizer da expectativa de que se complete aquela “sina” sua conhecida, prenunciada, que culmina com a Morte.

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Rasga-mortalha é o nome popular que, na região Nordeste, dá-se à pequena coruja, de cor branca, de voo baixo. O atrito de suas asas, ao voar, produzem o som de um pano que está sendo rasgado. O povo acredita que, quando ela passa sobre a casa de alguma pessoa doente, ela esteja rasgando a mortalha do doente, que assim estará prestes a morrer. Disponível em: http://www.dicionarioinformal.com.br/rasga-mortalha/ Acesso em: 31 ago. 2013.

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CHIAVENATO, Júlio José, no seu livro A Morte – uma abordagem sociocultural (1998, p. 60), comenta o ensaio “Anúbis, ou o culto do morto”, do folclorista brasileiro Câmara Cascudo, que diz que “no Nordeste brasileiro se acreditava que a alma saísse do corpo em forma de pássaro ou que, conservando a aparência humana, “fosse transparente como uma fumaça branca.” Algumas aves são assim ícones da presença da Morte no Nordeste.

Nos dois últimos versos, o eu lírico diz que há um cansaço e considera-se que tal cansaço deste lado da vida se confirma ou se mostra como algo que fará com que aconteça “um reverter” da realidade ou “um transferir-se” a outra terra onde há de encontrar “o outro lado da morte”, aquele que ainda está oculto, mas, que “numa outra terra” (que não será esta terra triste de agora) reverterá ao pó – consumando-se o lado convencional da morte. Certamente, o outro lado da Morte, será sob a terra, em sepultura.

O poema “Deste lado” revela a vida triste como sendo este lado da morte, quando a vida é tão seca e revela-se em tantos augúrios que é somente uma questão de “lados” de uma mesma presença: a presença da Morte. Configura-se assim a Morte como aquela que pode se apresentar ainda em vida, por meio de uma vida mal vivida, insípida ou infeliz para depois, no processo de decrepitude rumo ao fenecimento, ampliar sua eficácia e realizar a conversão física final do indivíduo ao pó. Assim, um dos lados da Morte é a conhecida “Morte em vida”, que é uma figuração que se destaca neste poema além de estar presente em outros, porém, vislumbra-se a outra face, qual seja, a Morte que leva à decomposição espontânea do cadáver ou mesmo à incineração, modalidade em que se acelera o processo, inclusive dos ossos, levando-os diretamente ao pó.

As figurações da Morte que se caracterizam pela incorporação do sentimento de Morte em vida conquistam espaço nos poemas de A província deserta. O envelhecer também ganha dimensão e consciência de Morte, assim como ocorre com os fenômenos cíclicos da natureza. Com essa mesma compreensão do envelhecer como processo de elaboração do morrer avançamos para mais leituras sob esta perspectiva para a Morte.