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Quando o sono e a fome são irmãos da morte

3 SOL, POEIRA E CINZAS FIGURAÇÕES DA MORTE NA POESIA

3.1 Nuances do humano findar-se em O tempo consequente – 1966

3.2.2 Quando o sono e a fome são irmãos da morte

A poesia de H. Dobal faz muitas referências a sono e sonhos, bem como também “entressonhos” ou devaneios. Desde a mitologia antiga encontram-se conexões entre as manifestações do sono e da morte, inclusive a própria mitologia se encarregou de designá-los como irmãos. Desde a Antiguidade estas vinculações míticas da Morte estão exemplificadas em poesia, como no caso do poema épico antigo “Ilíada” de Homero a.C, em que é mencionada uma representação da morte como irmã do sono.

Com título em latim, o poema “Humanae Vitae”32 faz pequeno relato de uma vida humana que, numa leitura possível, lembra notícias de jornal com fotos de crianças tristes e esquálidas, como aquelas que são comumente exibidas em reportagens sobre a fome e a

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Humanae Vitae é o nome de uma encíclica papal que orienta os católicos acerca do controle da natalidade, defendendo que a própria natureza divina contemplou aos humanos com a possibilidade de controlar o tamanho da família sem fazer uso de contraceptivos, pois a mulher tem períodos férteis e inférteis. Do longo texto, transcreve-se trecho a seguir: “11. Estes atos, com os quais os esposos se unem em casta intimidade e através dos quais se transmite a vida humana, são, como recordou o recente Concílio, "honestos e dignos" ; e não deixam de ser legítimos se, por causas independentes da vontade dos cônjuges, se prevê que vão ser infecundos, pois que permanecem destinados a exprimir e a consolidar a sua união. De fato, como o atesta a experiência, não se segue sempre uma nova vida a cada um dos atos conjugais. Deus dispôs com sabedoria leis e ritmos naturais de fecundidade, que já por si mesmos distanciam o suceder-se dos nascimentos. Mas, chamando a atenção dos homens para a observância das normas da lei natural, interpretada pela sua doutrina constante, a Igreja ensina que qualquer ato matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida . Disponível em:

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miséria em países do terceiro mundo, porém, agora transmutadas poeticamente a fim de encontrar seu lugar também na arte das letras:

HUMANAE VITAE O menino minguante vem do rio das fêmeas. Nascido ao poente seu dia parado sem pressentimentos. Sem socorro

de remédio seu transe de fome do rio do sono

ao rio das mortes (2007, p. 81, grifos nossos).

Trata-se de composição em estrofe única de 10 versos polimétricos, que se medidos, contar-se-ão entre 3 a 6 sílabas, o que os torna, visualmente “contidos”, quase que se estreitando rumo ao seu final. Nesta apreciação, sugere-se que, conforme o poema se constrói visualmente, os versos estejam mostrando-se desta forma, tão “minguantes” quanto o objeto do poema, corroborando uma analogia lírica à fase da lua, com o propósito de promover conexão de imagens com a matéria poética: /O menino minguante/, /vem do rio das fêmeas/, /nasceu ao poente/. Com brevidade visual e conteudística, o poema encena a presença de um menino caracterizado como “minguante”, talvez, porque ao eu lírico, pareceu-lhe que o mesmo “minguava” ou estava à míngua e, por conseguinte, era “rondado” pela morte. Os dois primeiros versos dizem da sua origem: o menino /vem do “rio das fêmeas”/, o que pode ser uma metáfora do ventre materno com suas “águas placentárias” – que afinal são o berço natural, original de todo homem. Do terceiro ao quinto verso, o sujeito lírico recorre a uma espécie de representação construída com base na percepção do movimento da terra ao redor do sol e das fases da lua para dizer a respeito desse menino: Nascido ao poente/, /seu dia parado/, /sem pressentimentos/. Na recepção do quadro, nota-se que há uma descrição que se “antecipa” ao que deveria ser um começo porque ao invés do menino nascer na “fase” “crescente” e de lá fazer uma ascensão, dá-se que ele já “nasce no poente”, em curva de declínio. E mesmo que fosse um dia parado e sem pressentimentos, os termos que se seguem dizem o contrário acerca do tempo, pois do sexto ao último verso, a vida do menino se processa, com brevidade: /sem socorro de remédio/, sua vida transcorria em /seu transe de fome/. Como alertou o título, “da vida humana”, no poema, neste específico exemplar da natureza humana, que já principia a vida em decadência, desde a fome da infância surgem os

efeitos do sono que podem sinalizar a fraqueza do corpo, para que, finalmente, com o esgotamento desta vida que “míngua”, desde o princípio, chegue a Morte.

O poema sugere que a morte se instaura desde a hora do nascimento – é a morte que “leva” os seres no “seu sono faminto”: /do rio do sono/, /ao rio das mortes/, provavelmente um sono provocado pela fome constante que, por sua vez, leva à desnutrição e nessa perspectiva até a morte. Existem referências na mitologia e na literatura acerca da Morte como sendo a irmã do Sono33, mas, construindo-se esta trilha de leitura por outro ângulo de observação, as analogias e comparações talvez se expliquem simplesmente pelo fato de haverem visíveis semelhanças quanto ao repouso do corpo, aspecto de imobilidade, cerramento de olhos e perda de consciência, sendo que no caso do sono, tudo acontece de forma espontânea e temporária, enquanto que no caso da outra, normalmente, de forma involuntária e definitiva. Aspecto observável à parte, percebe-se como possível, por compatibilidade de sentidos e familiaridade com os temas da morte, acrescentar a categoria “Fome” à família da Morte. Metaforicamente, utilizando-nos do vocabulário emprestado, vê- se que seus versos expressam esse lado imageticamente “minguante” das crianças nascidas nessa condição “poente”, sem perspectivas de serem “sóis” na sua plenitude e alcançarem “o meio dia”, para depois fruírem da trajetória comum transcursiva da vida rumo ao “poente definitivo”. Em semelhante concepção, na leitura do poema encontramos outra representação que se apropria das fases da lua: a criança (um ser lua-nova), que nem sequer chega a “ser crescente” e muito menos a “ser-cheia” e já se faz “minguante”. Pois, na antípoda da lua, “o sono, irmão da Morte, nutrido pela fome” ajuda a mover o sol do dia em direção ao poente, para assim chegarem as trevas, representadas no poema, no seu último verso, pelo “rio das mortes”. Neste poema, a Morte é uma figura que pode ser associada ao sono e à fome que consome os seres, levando-os a serem “minguantes” e determinando seu final. Nas analogias comentadas, a Morte no poema pode ser associada aos movimentos da natureza pelas metáforas do sol poente e da lua minguante – afinal, o curso da vida rumo ao “ocaso” é

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A ideia de “Sono, irmão da Morte” já aparece na tradição do poema épico A Ilíada de Homero, parte XIV [...] Pousa em Lemnos, donde era o divo Toas; Lá se encaminha ao Sono irmão da morte,/ A destra lhe estreitou: “Como antes, Sono,/ Senhor de homens e deuses, tu me atendas,/E a minha gratidão será perene”. HOMERO, Ilíada. Livro XIV. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/iliadap.html#14. Acesso em: 23 set. 2013. Entretanto, outras obras literárias aludiram a essa associação das figuras do sono e da morte, conforme estudos de Jacob Pinheiro Goldberg e Oscar Dambrosio constantes do livro “A Clave da Morte” (1992, p. 51). Ainda assim, o poema dobaliano poderá estar criativamente vinculado à cena do menino “minguante” dormindo faminto, “rodeado por indícios da presença da Morte”. Na Mitologia grega Hipnos é a personificação do sono, da sonolência; seu equivalente romano é Somnus. Segundo a “Teogonia” de Hesíodo, ele é filho sem pai de Nix (Νύξ, "noite"), a escuridão acima de Gaia, outras fontes dizem que o pai é o Érebo (As Trevas Primordiais, que personificam a escuridão profunda e primitiva que se formou no momento da criação). E são muitos irmãos, entre os quais o mais importante é seu irmão gêmeo Tânato, a personificação da morte. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Hipnos. Acesso em: 11 nov. 2013.

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natural para tudo na natureza. Entretanto, nesta narrativa poética, não é o ritmo natural da vida que segue seu curso, afinal trata-se de uma criança que, normalmente, deveria chegar à condição de adulto, depois à velhice e por fim à morte, mas, o final do menino faz-se precipitado pela fome, porque ele já nasceu na condição de “minguante” e uma vez envolvido pelo sono e enfraquecido pelo transe da fome, chega-lhe a Morte. Portanto é principalmente a Fome que se afigura como a Morte neste poema, dadas as feições do menino que incorpora a “primeira” e se sabe que a “segunda” já o espera, ao lado, no momento de “tomar a criança nos braços”. Isolada dos grupos de assemelhados, esta configuração se dá enquanto mais um exemplo de um percurso figurativo para a morte na poesia de H. Dobal.

Na sequência de tópicos analíticos das representações, tem-se que uma “voz coletiva” foi testemunha de uma aparição da Morte nos contextos históricos do estado do Piauí. Tal configuração se faz em um poema, que se aproxima de um “de estilo épico”, pela narração que se insinua grandiosa, porém, nela se instaura uma ambiguidade, na medida em que a “suposta” grandiosidade não passa de uma ironia ao contexto histórico que se ofereceu por meio da fórmula de um canto heroico e, ao longo da leitura e ao seu final, vê-se que tal imagem desvaneceu-se e se recompôs enquanto oposto.