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Quando os “outros bichos” choram numa “Melancholia Rural”

3 SOL, POEIRA E CINZAS FIGURAÇÕES DA MORTE NA POESIA

3.3 A contabilidade da morte em poemas de A Província Deserta

3.3.2 Quando os “outros bichos” choram numa “Melancholia Rural”

Na parte designada Informações da Natureza, do livro A província deserta, uma epígrafe composta por excerto da obra I libri de La vita de Salvatore Quasimodo apresenta os poemas no trecho em que diz “Você me diz que tudo foi em vão, a vida, o dia corroído pela água constante [...] – Oh meus doces animais.”38 Tal epígrafe é claramente alusiva às questões da vida e da morte, numa compreensão de que uma é parte da outra, e a água constante mostra-se como uma metáfora do tempo, o qual, assim como a água, “corrói”, “desgasta”. Na compreensão da epígrafe também se propõe um alargamento dos horizontes da poesia da ‘Vida e da Morte’ em direção a todos os seres da natureza, a todos os animais.

Deste modo apresentado pela epígrafe, outro perfil de morte da poesia dobalina está relacionado ao fenecer das “outras espécies”, a exemplo do que encontramos no poema a seguir, que vem a instaurar dúvidas acerca da sensibilidade dos “outros bichos” à presença da Morte. Conforme pensamento de Edgar Morin39, o único animal que pressente ou reconhece a presença da morte, inclusive ritualizando funerais, é o “bicho homem”. Entretanto, pela expressividade deste poema que representa elementos do universo rural, identifica-se a existência de comportamentos diferenciados desses outros bichos em relação ao fenecer:

MELANCHOLIA RURAL

Aqui as reses vêm chorar seus mortos O sangue ferido que encharcou a terra, Aqui os pássaros tristes

No verão interminável Choram a vida difícil A morte fácil

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QUASIMODO, Salvatore. I libri de La vita, 1947. Livro fonte do excerto que serve de epígrafe à parte I do livro de poemas de H. Dobal, A Provincia Deserta: “Tu mi dici che tutto è vano, lavita, i giorni corrosi da um

‘acqua assídua...” O miei dolci animali”. Salvatore, 1947. Disponível em:

mhsteger.tumblr.com/post/986118909. Acesso em: 25 ago. 2013 . 39

No prefácio à segunda edição de O Homem e a morte (1997, p.13), Edgar Morin comenta que “as ciências do homem negligenciam sempre a morte. [...]”. No entanto, a espécie humana é a única para a qual a morte está presente ao longo da vida, a única a acompanhar a morte com um ritual funerário, a única a crer na sobrevivência ou renascimento dos mortos. Ainda sobre o tema (p. 59), narra a respeito dos símios e antropoides que se comportam diante dos mortos de sua espécie como se estivessem vivos, como numa cegueira à morte.

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E os dependentes da terra Dobrados sobre si mesmos Seis dias na semana

Vão cavando os seus túmulos (DOBAL, 2007, p. 116, grifos nossos).

“Melancholia Rural” é poema constituído por duas estrofes, sendo a primeira composta por três e a segunda por sete versos. A primeira estrofe se apresenta como tema central do poema. Os versos 1 e 2, apresentam-se como narrativas do ponto de vista do eu lírico, acerca de fatos colhidos das memórias de um cotidiano rural. Quando o primeiro verso diz /aqui as reses vem chorar seus mortos/, /o sangue ferido que encharcou a terra/ - em princípio, nos causa estranhamento, pela possibilidade de se admitir que as reses possam exprimir sentimentos em relação aos seus pares mortos, mas, o sujeito poético o afirma e assim compõe a imagem ao mesmo tempo plástica e sonora. Desta perspectiva, o tom da melancolia rural se espalha desde o choro das reses, passando pela tristeza dos pássaros, até alcançar o bicho homem. É um sentimento compartilhado por toda a natureza que, no caso do poema, sente a presença da Morte. Ainda em relação aos dois primeiros versos, acrescenta-se a esta análise, a informação de que, conforme depoimento de pessoas que viveram naqueles espaços rurais do Piauí, é comprovativo40 que, de fato, existe algo que se assemelha a uma forma de expressão de sentimento pelas reses que vêm chorar seus mortos no local do abate, e que a triste cena se repete ao longo de vários dias após a morte do animal que pertencia ao rebanho: os animais se dirigem até o local da morte e berram de forma diferente, numa espécie de choro ou lamento profundo, capazes de entristecer a qualquer testemunha da cena. Em seguida, o poema faz referência ao sangue que se espalhou encharcando a terra no episódio da morte do animal. É uma cena “fotográfica” e ela talvez tenha o propósito de ser uma cena poética representativa da existência do sentimento de dor em relação à morte também entre outros animais.

Mas o poema segue representando aquela Morte, desta feita dos versos 3 ao 6, que narram: /aqui os pássaros tristes/, /choram a vida difícil/, /a morte fácil/. Estes versos atribuem aos pássaros o dom do choro e da tristeza, assim como também aproximam as ideias da “vida difícil” e da “morte fácil”, por meio do recurso criativo de unir os opostos morte-vida, difícil- fácil, invertidos numa construção de pares antitéticos, desta forma conquistando o olhar do leitor para a ênfase pretendida. Na composição do cenário rural, o pássaro é uma presença constante na obra poética de H. Dobal e esse canto triste está associado à concepção de uma

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Informação colhida em entrevista ao senhor Pergentino de Castro Lima, médico cirurgião teresinense, cuja família tem, por apreciar a vida no espaço rural, conserva uma propriedade e gado bovino no município de Campo Maior - Piauí.

vida difícil e, por extensão, da morte fácil que campeia no mundo rural, seja na fauna ou na flora. O tema da melancolia nestes primeiros versos é desenvolvido pelos seres que figuram o espaço rural. Em seguida, dos versos 7 a 10: /E os dependentes da terra/, /Dobrados sobre si mesmos/, /Seis dias na semana/, /Vão cavando os seus túmulos/. O poema se volta para “um sujeito dependente da terra” que identificamos como o bicho homem, que afinal, semeia, planta e quando há o que colher da terra, dela sobrevive. Ele é aquele reiterado sujeito que na cena poética dobalina representa os milhares que existem e que, conforme diz o poema, “durante seis dias da semana dobram-se sobre si mesmos” e nesse exercício de entrega repetido durante toda a vida, “cavam seus túmulos”. Nesta leitura, divisa-se uma figuração imagética que imprime uma espécie de “arquétipo” do homem rural que se debruça no trabalho com a terra e, encurvado ou dobrado, a ela se dedica, dia após dia, de sol a sol. Nessa terra em que ele escava, planta e muitas vezes não colhe o necessário à sobrevivência, desenha-se ou vislumbra-se a sua própria sepultura. A referência aos seis dias da semana parece ser uma alusão ao descanso domingueiro, quase sempre dedicado à fé religiosa cristã.

O cotidiano que serve de contexto à “melancolia rural” não é somente tema de poesia, mas realidade passível de constatação, inclusive no que diz respeito ao “luto” das reses que vêm chorar a morte dos seus “semelhantes”. Que figuração seria essa, no rol das configurações que foram visitadas até este momento destes estudos? Entende-se que este poema não representa somente um sentimento de melancolia que se instaura em um ambiente rural, mas, a demonstração de que “outros bichos”, a partir de observações acolhidas do senso comum, têm pressentimentos e sentimentos em relação à Morte e que, portanto, “ela” pode se configurar pelas expressões de tristeza neles identificada. No caso das reses, o sangue dos seus semelhantes, talvez, lhes despertem algum “tipo de memória” em relação à cena da morte acontecida, e por este motivo a expressão dorida do choro dos animais que se repete durante vários dias após a consumação da morte daquele outro espécime do grupo – é o luto daqueles animais. Que tipo de figuração propõe-se para esta aparição? É a Morte na Natureza, quando por alguma razão, o ponto de vista do sujeito lírico volta-se para esses eventos que se estampam ao seu redor, provocativos dos versos.

De certa forma dialogando com El Matador do livro O dia, em A província, há outro conceito de herói que a poesia dobalina traz associados às Mortes nas cidades. O contexto é a sociedade capitalista, e os heróis são aqueles que representam a classe trabalhadora, que dia-a- dia morrem em benefício de uma classe “gastadora”. Os versos tecem uma crítica irônica que se constitui no perfil do poema. Apesar de fazer referência às “classes” que movimentam o sistema, a Morte, em meio a tudo, é individual.

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