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Simulacros de heróis e suas mortes numa cidade irreal de Unreal City

3 SOL, POEIRA E CINZAS FIGURAÇÕES DA MORTE NA POESIA

3.3 A contabilidade da morte em poemas de A Província Deserta

3.3.3 Simulacros de heróis e suas mortes numa cidade irreal de Unreal City

No poema Unreal City, o poeta piauiense promove um intertexto com a obra The Waste land (1922) de Thomas Stearns Eliot, que H. Dobal muito apreciava.41 O título do

poema, bem como sua estrutura estética, além de algumas outras alusões, são claros intertextos com o famoso livro de poemas de Eliot (versos 60 e 207, p. 140) que, por sua vez, é confessadamente uma homenagem a outra obra que o antecedeu, From Ritual to Romance, conforme diz o próprio Eliot, em entrevista transcrita na sua obra Poesia Completa Vol.1 (2004, p. 68). A obra de Eliot é considerada uma verdadeira lição poética, arrojada e inovadora, uma das precursoras e afirmadoras da estética do fragmento. O longo poema The

waste land é fragmentado e seccionado em subtítulos enumerados, dos quais, dentre eles, vale

citar por afinidade de tema: I - O enterro dos mortos e IV - Morte por água. Dobal homenageia Eliot adotando um dos seus versos como título e tecendo sua composição poética em trechos enumerados conforme modelou Eliot. The waste land, o longo poema eliotiano é significativamente expressivo da Morte e, também neste aspecto, dialogando com ele, elegemos alguns trechos do poema de H. Dobal:

UNREAL CITY

“Passou o dia da felicidade individual” Adolf Hitler Dia a dia a cidade

convoca os seus mitos:

os heróis das classes trabalhadoras os heróis das classes gastadoras e a massa humilde

que alimenta os heróis. Dia a dia a cidade exibe o seu comércio. 1 OS SEGUROS DE VIDA [...]

1.2 Você tem medo da vida porque ela lhe faz pensar na morte faça um pacto com a morte. Compre a paz

de sua alma:

O seu seguro de vida.

41

Conforme relata Halan Silva, autor do livro As formas incompletas - apontamentos para uma biografia, na biblioteca particular de H. Dobal constavam obras de poetas como John Donne, Elizabeth Barret Browning, Jonh Milton, Emily Dickinson, William Blake, William Wordsworth, Samuel Taylor Coleridge, Percy Byshe Shelley, John Keats, William Butler Yeats, Thomas Stearns Eliot, Ezra Pound, somente para constar alguns dos poetas de grande expressão na língua inglesa (SILVA, H.,2005, p. 63).

[...]

5. OS DIVERTIMENTOS Você não se multiplica sozinho dia a dia a cidade

se expõe nos seus anúncios: Os incuráveis

O câncer é tudo o que ela tem na vida. [...]

As moças em flor

Pelo correio os testes de gravidez. Dia a dia nesta cidade

atravessada pela vida a morte individual

vai desfazendo os seus heróis (DOBAL, 2007, p. 139-140, grifos nossos). Uma epígrafe com frase de Adolf Hitler faz a abertura do poema: “Passou o dia da felicidade individual”. Esta frase, simulacro perfeito de um pensamento voltado para o social, apesar de concebida e contextualizada dentro de circunstâncias históricas, em que o ditador alemão concebeu uma sociedade complexamente estruturada em princípios preconceituosos e desumanos que marcaram a história da humanidade com atrocidades e morte, coube perfeitamente para dar início aos versos dobalinos recheados de ironia. Dentre todos os poemas do poeta piauiense, este é um dos que mais se esmeram no sarcasmo. E apesar de, ao mesmo tempo, lidar com a seriedade do tema, em contrapartida, com o mesmo brinca e demonstra tamanho escárnio, que ao leitor, não resta dúvida, de que se trata mesmo de uma forma de humor que objetiva levar à reflexão. Dele elegemos alguns trechos que, de alguma forma, são alusivos à temática investigada. Na primeira estrofe, a cidade alimenta seus mitos: uns são os heróis da classe trabalhadora, outros são heróis da “classe gastadora” e também a classe humilde, que, sem hipocrisias, o poema afirma, criticamente, ser aquela que alimenta os tais “heróis”. E logo começam as alusões ao mundo do capital: /dia a dia a cidade/, / exibe o seu comércio/. Sem máscaras, o mundo que se exibe nas cidades é o mundo do comércio, da produção e do capital. Na segunda estrofe, começa a enumeração dos comércios e no subtópico, a primeira alusão aos seguros de vida: o medo da vida, porque ela faz lembrar a morte e a sugestão de um pacto com a morte; depois, segue-se a proposição de se comprar a paz viver, por meio do seguro de vida. Adiante, noutro subitem, encontramos menção aos divertimentos: os versos ironizam acerca de que ninguém se multiplica sozinho e, portanto, remete ao sexo como outro bem de consumo, que pode ser comprado por meio dos anúncios; por outro lado, nova provocação lembra que “moças em flor” recebem seus testes de gravidez

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pelos Correios, certamente como consequência deste novo “item de consumo” disponível nos anúncios para comércio. A ironia da expressão “moças em flor” também sobrecarrega o poema com uma dose de sarcasmo, pois, afinal, como seriam “moças em flor” se já são experientes em sexualidade, inclusive estão aguardando os testes de gravidez? Outro verso anuncia a respeito “dos incuráveis” e esclarece que o câncer é tudo que eles têm na vida. Novamente ergue-se uma ironia quanto à situação de algumas pessoas no mundo, inclusive o preço das doenças e talvez, da cura difícil. Na última estrofe a Morte assume seu lugar de destaque na vida: /dia a dia nesta cidade/, /atravessada pela vida/, / a morte individual/, /vai desfazendo os seus heróis/. Assim, a Morte surge acintosa e é a única “força” em que o eu lírico faz restabelecer o tom de seriedade. Numa afiguração, a cidade é apenas “atravessada” pela vida, que se faz com brevidade, afinal, “atravessar”, como diz o verso, em geral, não demanda muito tempo. Desta forma, depreende-se que a Morte é algo de natureza permanente e que a vida é somente uma passagem do tempo que a “atravessa”. E o verso seguinte complementa, retomando a epígrafe de Hitler (e desfazendo a fala do ditador), que é a “morte individual” que desfaz os heróis. Ou seja, apesar dos atos heroicos promoverem a elevação do coletivo, é na individualidade da Morte que os heróis são desfeitos, afinal, “Ela” desbanca até mesmo os mais heroicos, em seus momentos solitários dos “trespasses”. Afinal, mesmo nos heróis a Morte é individual.

Como construção figurativa, a Morte é uma força permanente e de natureza ingovernável, acima de quaisquer defesas e ideologias. E nesse viés crítico e ideológico, porém em ritmo de “badaladas de sino” e tom elegíaco, segue-se em análise um poema ambientado em cenários evocativos de um passado de muitas mortes, configurando-se noutro quadro de “mortes coletivas”.