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MOVIMENTO SEM TERRA NO RS

No documento LivroPauloFreireeEducPop-10Mai (páginas 155-163)

Marli Zimermann de Moraes1

A LUTA PELA ESCOLARIZAÇÃO NOS ACAMPAMENTOS

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é um movimento de luta pela terra e pelo resgate da cidadania. A edu- cação é uma das trincheiras desta luta, pois entendemos que a conquista desse direito só acontece quando a luta se efetiva.

Nesse sentido, a luta pela Escola Itinerante nos acampamen- tos do Movimento Sem Terra no RS não foi diferente. Para ser aprovada pelo Conselho Estadual de Educação do RS, em no- vembro de 1996, teve que funcionar de fato, ainda que não de direito, por dez anos nos acampamentos, nos quais as crianças e adolescentes sofreram as conseqüências do direito à educação negado, durante este período. Foram as próprias crianças, nesse processo de conquista, que reivindicaram o direito à escolariza- ção, estando junto com a família na luta pela terra, e freqüentan- do as aulas realizadas com todo empenho dos educadores/as, embora sem as condições básicas de infra-estrutura e sem o reco- nhecimento do ano letivo.

Ao ocupar a terra, os Sem Terra2 ocupam também a escola,

construindo assim as condições para as crianças permanecerem no acampamento. A escola é entendida como um dos espaços no qual a criança adquire conhecimentos e constrói aprendizagens. Conquistar escola, terra e dignidade fazem parte das razões de lutar do Movimento. As crianças, para concretizar esse direito, organizam-se. Um exemplo disso são os Encontros de Sem Terri- nha3. As crianças e adolescentes, nesses encontros, discutem e

estudam os seus direitos. Fazem mobilizações, caminhadas, atos públicos e apresentações culturais, chamando a atenção da socie- dade, das autoridades, demonstrando, com organização, que es- tão fazendo a luta pelos seus direitos.

As atividades pedagógicas são desenvolvidas nos diversos es- paços dos acampamentos, nas marchas, nas ocupações de prédios públicos, etc; pois vivenciam a experiência de participar da con- quista pelo direito de viver e construir um futuro melhor nos assen- tamentos conquistados. Ao mesmo tempo, vão aprendendo, desde pequenos, que é necessário lutar para efetivar seus direitos.

A PRÁTICA PEDAGÓGICA E A FORMAÇÃO DE EDUCADORES NAS ESCOLAS ITINERANTES

A prática pedagógica desenvolvida nas Escolas Itinerantes  busca contemplar o processo de formação humana, envolvendo os sujeitos sociais na construção de sua história, no movimento da luta e no cotidiano vivenciado e construído coletivamente.

Organizar as Escolas Itinerantes significa pensar constantemen- te seu processo pedagógico, que, para os educadores/as e a comu- nidade acampada, tem sido um permanente desafio. Neste sentido, faz-se necessário que os educadores/as tenham um processo de formação voltado para essa realidade,

O currículo desenvolvido nas nove Escolas Itinerantes, atual- mente existente nos acampamentos, busca trabalhar a pedagogia a partir de cada realidade, relacionando a teoria com a prática, permi- tindo, desse modo, a construção de conhecimentos, através do pro- cesso vivenciado em cada faixa etária. Por isso, faz-se necessário um constante processo de acompanhamento político e pedagógico do Setor Estadual de Educação4, que tem a responsabilidade de garan-

tir que o processo vivido possa ser o mais viável possível para cada realidade que se encontra nos acampamentos, os quais possuem uma trajetória que é transitória de acampamento para assentamento.

O coletivo de educadores nos acampamentos é chamado “Se- tor de Educação”. Este tem funções específicas que envolvem es- cola e o acampamento. O Setor reúne-se para planejar as aulas se- manalmente, para avaliar o processo apontando as dificuldades en- contradas, para estudar e encaminhar questões discutidas coletiva- mente e para desenvolver o trabalho com crianças e adolescentes da escola. Como afirma Miguel Arroyo: “Não adianta querer formar o aluno como sujeito da história, se nós, professores, mostramos a eles que 

estamos de costas para a história”. (ARROYO, 1999:49). Os educado-

res/as sentem necessidade de estar constantemente se formando e, para isso, buscam informações, fazem pesquisas. Sentem a impor- tância do estudo diário, objetivando aperfeiçoar a prática em sala de aula, possibilitando entendimento maior sobre a mesma, buscando também uma compreensão política do processo como um todo.

Através da prática de se reunirem e de se apoiarem uns aos outros, o coletivo de educadores reflete sobre as experiências reali- zadas, buscando soluções para as dificuldades encontradas, melho- rando assim a sua atuação individual e o conjunto da escola.“...Vocês  têm que dominar as artes, os saberes que são próprios do ensino do apren- dizado da docência da educação de uma criança de um adolescente. Uma escola não pode só ser comprometida, os educadores não só militantes e  que escuta a realidade, isso não é suficiente, vocês tem que ter clareza que  competências precisam dominar para garantir o direito dos Sem Terra ao

conhecimento”. (ARROYO, palestra proferida no Encontro ). Por isso,

desde o início, o conjunto da organização teve a preocupação em formar educadores/as na perspectiva de suprir a demanda concre- ta de nossas escolas, formar educadores comprometidos com o pro-  jeto de sociedade a ser construída.

Nesta perspectiva, construímos espaços de formação perma- nente. Estamos na décima segunda turma de magistério e na quar- ta turma de graduação aqui no Estado, em Veranópolis no Instituto de Educação Josué de Castro e no ITERRA5.

As escolas Itinerantes são uma “possibilidade real de educa- ção popular no MST”, pois o acúmulo da prática na formação de sujeitos sociais participantes da organização e o estudo das teorias que condizem com o projeto de sociedade que queremos construir, concretizam a pedagogia em Movimento, que é desenvolvida em nossos espaços de educação formal ou não formal. Portanto, a cada acampamento novo que surge, os novos educadores/as são desafi- adas a vivenciar um processo educativo de forma coletiva, indo

além dos interesses pessoais de cada sujeito. Paulo Freire, quando fala da formação dos educadores, aponta uma questão fundamen- tal sobre “a responsabilidade ética, política e profissional do ensinante  que lhe coloca o dever de se preparar, de se capacitar de se formar antes 

mesmo de iniciar sua atividade docente”  (FREIRE, 1993:27).

Os educadores das Escolas Itinerantes buscam aprofundar e aper- feiçoar cada vez mais o seu processo de preparação e, por isso, rei- vindicam acompanhamento permanente do Setor Estadual de Edu- cação, melhorando a sua atuação de educador, desenvolvendo e tra- zendo presente no dia a dia o compromisso ético e político na tarefa de educar. Dedicam-se, assim, com afinco, ao cuidado e a educação das crianças, tornando-se referências junto ao acampamento. “Há questões que sempre estarão presentes, porque são elas que movem a própria tarefa de educar; mas as respostas e o processo de construí-las serão sempre  novos, porque o ser humano, e a compreensão que vai se tendo de si mesmo,

também se transforma a cada dia (CALDART, 2000b).

O constante pensar sobre a prática transmite a sensação de que a postura assumida por quem trabalha com crianças e adoles- centes deve ser uma mistura de muitas coisas, como sensibilidade, coerência, seriedade, carisma, ternura, firmeza, segurança.

Os educadores passam a ser um espelho nos quais os educan- dos se olham. A confiança é fundamental na relação educadores, educandos e comunidade. Estar preparado faz parte da dinâmica do ser educadora; com isso, um compromisso é assumido com a vontade e disponibilidade de educar e aprender no acampamento.

A ORGANIZAÇÃO CURRICULAR  NA ESCOLA ITINERANTE

A Escola Itinerante se estrutura por etapas, da Pré-escola à 6ª etapa. A diferença não é apenas na forma de como a escola seriada funciona, mas também na abertura à construção curricular da esco- la, de acordo com a realidade e definições tomadas pela comunida- de acampada, possibilitando um processo com intencionalidade pedagógica que cada coletivo6 propõe para o trabalho educativo.

A organização curricular, prevista para cada etapa, possibili- ta a compreensão e a sistematização de conhecimentos conforme o ritmo de cada educando/a. A permanência ou promoção em cada etapa é definida pelo desenvolvimento de cada educando/a. Sendo assim, a promoção de uma etapa para outra é feita de acor- do com critérios estabelecidos pela escola e durante as avaliações

que acontecem ao longo do período.

A Escola Itinerante possui autonomia para organizar o calen- dário escolar, que é construído e discutido com a comunidade acam- pada, iniciando as suas atividades escolares em qualquer época do ano. Dessa forma, o currículo escolar precisa estar constantemente sendo adequado ao processo educativo das crianças e adolescentes acampadas.

A Escola reconhece a realidade como base da construção de saberes novo e ao mesmo tempo trabalha os conhecimentos já sis- tematizados pela humanidade. O processo pedagógico está organi- zado em tempos educativos da seguinte forma: tempo aula/estu- do, tempo mística, tempo leitura, tempo oficina (violão artesanato, horta), tempo escrita, tempo cultura, tempo merenda, tempo la- zer/recreio, e outros que podem estar sendo incluídos no decorrer do processo.

Através do fazer pedagógico busca-se concretizar no dia-a-dia da escola uma pedagogia libertadora, que visa a participação dos educandos/as como sujeitos capazes de produzir conhecimentos novos, discutir a realidade e transformá-la.

O ponto de partida é a realidade específica, vivenciada em cada acampamento, com uma metodologia aberta para a definição dos temas e conhecimentos úteis para a vida dos educandos/as. Os estu- dantes permanecem na etapa o tempo necessário para adquirir hábi- tos de leitura e escrita, capacidade de reflexão e compreensão dos conhecimentos sistematizados pela escola, para cada etapa, atra- vés do planejamento e do regimento da Escola Itinerante.

RELAÇÃO ESCOLA E COMUNIDADE ACAMPADA A escola é uma extensão do acampamento, quer dizer: tudo que acontece no acampamento reflete na escola. Da mesma forma podemos dizer que, se o ambiente interno está bom, o espaço da escola se torna “mais produtivo”. Se há tensões que são difícil de resolver, as mesmas afetam o processo da escola. Por isso, a Escola Itinerante tem essa dinâmica, e o envolvimento se dá pelo conjun- to de fatos que acontecem. Com isso, as crianças acabam se tor- nando críticos, comunicativos e conseguem com facilidade expres- sar suas emoções e tensões. Canalizando isso para o processo ensi- no-aprendizado, o que acontece na realidade é intencionalmente relacionado aos conhecimentos que necessitam saber para melhor entender e atuar no seu contexto e no mundo.

As crianças possuem uma visão simples de ver a realidade e as “durezas” da vida cotidiana de um acampamento, nas ações e ocupações, pois elas, na sua ingenuidade ou simplicidade, fazem a sua interpretação a partir das suas necessidades, então se a sua fa- mília luta por terra, elas precisam estar junto na ocupação. Se não tem comida no acampamento, sabem que precisam se mobilizar para ter comida. Como afirma Miguel Arroyo “a educação básica tem que se propor a tratar o homem, a mulher, a criança, o jovem do campo de intervenção, de história e de luta, como alguém que constrói e 

que participa do projeto social” . (ARROYO,1999:23).

Observando as crianças nas conversas entre elas, nas reuniões que fazem, percebemos que, na maioria das vezes, elas se espe- lham nos adultos, repetem palavras ditas, recriam na sua infância as práticas coletivas da comunidade. Nas ações ou enfrentamentos com a polícia, os adultos “se armam” de ferramentas, pedaços de pau, lenços e buchas de carvão para se proteger do gás e das bom-  bas de efeito moral; as crianças também organizam suas defesas para se protegerem. E permanecem junto com os pais/mães ou em grupo, pois sabem que a sua maior garantia é o coletivo.

A ESCOLA NO MOVIMENTO SOCIAL.

As escolas Itinerantes são fruto de uma prática de educação popular, que historicamente vem sendo desenvolvida no Movimen- to e que se expandiu do Rio Grande do Sul para mais estados, nos quais o Movimento Sem Terra está organizado, como Santa Cata- rina, Paraná, Alagoas, Goiás e Espírito Santo e Pernambuco.

Movimento, exige muito mais dedicação, disciplina no estudo, pla- nejamento das ações. A escola passa a ser uma situação diferente e cheia de significações para as famílias, muito diferente do que fazer uma escola tradicional. Cada acampamento possui uma realidade e essa precisa ser estudada. O desafio de conhecê-la, num contex- to mais geral, parte do interesse individual e coletivo, o que permi- te projetar os objetivos a serem alcançados, que são a terra, a refor- ma agrária e a transformação social.

A educação por si só não faz a transformação social, precisa estar vinculada à realidade a ser transformada e trabalhar na pers- pectiva constante de educar e reeducar as pessoas, pois são elas que irão transformar a realidade que vivem, quando possuírem a clareza de fazer ações que possam influenciar as estruturas sociais.

“ A escola não muda o mundo. A escola muda as pessoas e as pessoas 

mudam o mundo”.(BRANDÃO,2001:42)

No modelo de sociedade capitalista, no qual vivemos, faz-se necessário construir a base para a mudança desse modelo. “Não é   possível pensar em transformar o mundo sem sonho, sem utopia ou sem

 projeto” (FREIRE, 2000:94). É tarefa da escola, atribuída aos edu-

cadores/as, forjar, através do processo pedagógico, a prática de valores e ações para viverem no presente as mudanças a serem feitas, lutar pela terra e acabar com o latifúndio, lutar contra as empresas transnacionais como as de celulose, e contra o modelo econômico vigente. Assim como os adultos, as crianças estão jun- tas e passam ter uma outra visão sobre a sociedade atual, são sujeitos desse processo a qual vivenciam, passam a ter opiniões sobre os assuntos debatidos. Por isso, vivem no presente as reali- dades e sabem que, se elas não lutarem com os pais/mães, o futu- ro delas está comprometido.

A luta traz a certeza de sonhar e acreditar que é possível tor- nar real os sonhos os quais se busca. Acreditar na educação como um pilar importante na transformação das formas de opressão, com um projeto político e social, que esteja vinculado aos interesses e as necessidades dos trabalhadores é um sonho que se realiza. “A eles  e elas, sem-terra, a seu inconformismo, à sua determinação de ajudar a democratização deste país devemos mais do que às vezes podemos pensar.” 

(FREIRE, 2001:21). A afirmação de Paulo Freire implica em luta para que os sonhos e projetos possam se tornar realidade. Ele diz também “Mudar é difícil, mas é possível”. Acreditando nessa possibi- lidade, parte da história que vai se construindo. Através das ações

concretas no cotidiano da luta, vai se viabilizando as condições e tornando-as possíveis. A luta pela reforma agrária traz esperança aos trabalhadores que acreditam na realização deste projeto de vida, que traz a inclusão e a dignidade.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFIAS:

ARROYO Miguel. Oficio de mestre : imagens e auto-imagens. Petró- polis: Vozes, 1999.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A história do menino que lia o mun- do SP: MST, 2001.

CALDART, Roseli Salete. Escola é mais que escola na pedagogia do

 Movimento Sem Terra. Petrópolis: Vozes, 2000a.

 ______. Acompanhamento às escolas . Reprogr. 2000b.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 8ª ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1980.

 _____. Pedagogia da autonomia. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997.  _____. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escri-

tos, São Paulo: Ed.UNESP,2000.

 _____. Pedagogia da esperança. 3ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Ter- ra,1994

 _____. Paulo Freire: um educador do povo. Ed. ITERRA 2001.

MST. Princípios da Educação Caderno de Educação. Caderno n.º 08.

São Paulo, 1996.

 _____ Escola Itinerante em Acampamentos do MST . Coleção Fazendo Escola nº 01,1997.

 _____ Escola Itinerante uma prática pedagógica em acampamentos . Co- leção Fazendo Escola nº 04, 2001.

1 Educadora e do Coletivo Estadual Setor de Educação MST/RS.

2 Segundo CALDART 2000 p. 17 “O MST historicamente acabou produzindo um nome próprio Sem Terra, que é também sinal de uma identidade construída com autonomia. O uso social do nome já alterou a norma referente a flexão de número, segundo hoje já consagrada a expressão os sem-terra, o Movimento que o transformou em nome próprio, e o projeta para além de si mesmo.

3 Encontros que começaram a acontecer no RS. Chamados de Congresso Infanto-Juvenil, hoje Encontro de Sem Terrinha por ser uma identidade construída na coletividade do MST, acontecem em quase todos os estados no qual o MST está organizado, na semana da criança, em outubro.

4 Formado por uma representação de pessoas, vinculadas a organicidade interna do Movi- mento, não é uma instancia de decisões, porem tem autonomia de encaminhar as questões que dizem respeito a educação, no conjunto da organização.

5 Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa na Reforma Agrária.

6 Entendido como representantes do acampamento, pais/mães, educadores/as, monitores que atuam na escola e representação de educandos/as.

ALFABETIZAÇÃO CARTOGRÁFICA

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