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A segunda metade do século XX foi marcada pela proliferação das organizações e mecanismos de cooperação internacional, conformando uma verdadeira estrutura institucional na qual as relações entre os Estados se organizaram, permitindo elaborar respostas coletivas distintas aos desafios da época. Já na entrada do século XXI, nota-se uma mudança significativa nos padrões de comportamento dos Estados em relação às organizações e entre si, apontando para uma crise do multilateralismo.

Na tentativa de identificar causas estruturais para tal mudança, algumas linhas de análise atribuem às mudanças no equilíbrio de poder entre os Estados e nas relações econômicas internacionais as razões para o esvaziamento das relações multilaterais por parte de Estados- chave, em detrimento de outros tipos de arranjos e relações. O comportamento dos Estados Unidos da América em relação às instâncias multilaterais também é posto como uma variável importante nesse cenário de crise e crises. Eventos como o 11 de Setembro de 2001, a crise econômica imobiliária de 2008 e, mais recentemente, as ações do Governo Trump de questionamento direto a instâncias multilaterais são referenciais recorrentes nas análises, que levam em consideração também seus efeitos sobre outros atores.

Nesse sentido, a proposição da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável também representa um desafio para as instituições internacionais e sua arquitetura, em especial para o Sistema ONU. Toda a ambição e especificidade da agenda apontam para a necessidade de mudanças na forma como os órgãos e agências das Nações Unidas trabalham em conjunto e entregam seus serviços nas diferentes regiões e países. O desafio ganha proporções maiores frente a esse cenário de crise e questionamento das instâncias multilaterais, das quais a ONU é o principal símbolo, o que prejudica inclusive suas capacidades materiais da realização do trabalho previsto.

Helgason (2016) aponta esses desafios a partir da análise da estrutura e do trabalho do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Criada em 1965, o PNUD tinha inicialmente a função de coordenar o financiamento dos projetos e dar maior sinergia ao trabalho de cooperação para o desenvolvimento entre as demais agências da ONU. A partir da década de 1990, sua função ganha outra natureza, e o programa passa a assumir características de uma organização mais substantiva, deixando de lado o financiamento e coordenação de projetos de outras agências, que passaram a ser geridos por grupos interagência (HELGASON, 2016).

Já na década de 2010, o papel da coordenação na área do desenvolvimento é mais do que nunca central para fomentar a cooperação para o desenvolvimento dentro das Nações Unidas. Sob o guarda-chuva da UN Development estão 34 fundos, programas e agências, que, frente à adoção da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, passam a ter que lidar com uma gama diferente de demandas e oportunidades. Contudo, como argumenta o autor, o arranjo de governança atual coloca constrangimentos significativos à habilidade da organização se integrar na medida em que exigem os ODS. Além de propor três desenhos possíveis de adaptação da governança para o desenvolvimento da ONU, Helgason afirma que todas passam fundamentalmente por um reforço do multilateralismo, que segundo ele estaria murchando mesmo frente às crescentes tendências de interconexão, complexidade e incerteza (HELGASON, 2016).

Em se tratando da arquitetura internacional para o meio ambiente, o diagnóstico é ainda mais crítico considerando seus avanços reais sobre os principais problemas enfrentados. Franchini, Viola e Barros-Platiau (2017) alertam para a insuficiência dos mecanismos internacionais do meio ambiente para lidar com os desafios colocados pelo Antropoceno e manter a ação humana dentro do espaço seguro de operação. Segundo os autores, mesmo tendo alcançado consensos globais, nem o sistema de conferências ambientais nem os regimes ambientais das áreas temáticas dão conta da urgência e da grandiosidade da tarefa, pois a pressão antrópica sobre o planeta se acelerou a ponto de abrir a possibilidade de disrupção do sistema caso ultrapassemos mais limites planetários (FRANCHINI, VIOLA e BARROS- PLATIAU, 2017).

Ao elencar os limites da política ambiental internacional, eles destacam três aspectos centrais: a marginalidade que a temática ambiental tem em relação a temas consagrados nas relações internacionais, como segurança, defesa e economia; o “estadocentrismo” da gestão dos bens comuns, seja em âmbito nacional ou internacional, e mesmo com o alcance das comunidades epistêmicas e da sociedade civil organizada dentro das discussões sobre meio

ambiente; e a limitação dos regimes internacionais ambientais a áreas temáticas isoladas, perdendo de vista a interconexão necessária para enfrentar os problemas do Antropoceno (FRANCHINI, VIOLA e BARROS-PLATIAU, 2017).

Para dar conta desses desafios e provocar as mudanças imprescindíveis para trazer a ação humana de volta a um espaço de ação seguro, Franchini, Viola e Barros-Platiau (2017) apontam caminhos necessários. Indicam a necessidade da criação de uma organização mundial do meio ambiente com status superior a de agência no sistema ONU, além da internalização do conceito de limites planetários por organizações internacionais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio e o Conselho de Segurança da ONU, acompanhado de uma reforma da estrutura da Assembleia Geral das Nações Unidas para que passe a refletir não apenas a representação dos Estados, mas das populações, em um formato de parlamento mundial. Os autores, contudo, fazem uma crítica ao conceito de desenvolvimento sustentável na forma como tem sido trabalhado no consenso político internacional, por ser vago e difuso e pretender uma síntese demasiado ambiciosa para não gerar oposições políticas por grupos de países (FRANCHINI, VIOLA e BARROS- PLATIAU, 2017).

Assim, pode-se depreender que os desafios atuais, sejam do Antropoceno ou da Segunda Modernidade (BECK, 1992), exigem uma redefinição das relações internacionais nos mais variados âmbitos e de forma extensa. Pressupõem uma nova forma de gerir as relações entre países, organizações, empresas, pessoas e entre os grupos humanos e o meio ambiente. Nesse cenário, a Agenda 2030, a depender da maneira como for implementada, pode funcionar como uma tentativa de redefinir tais relações, levando em consideração uma visão integrada dos desafios ambientais, sociais e econômicos. A depender de seu sucesso, pode significar uma mudança de paradigma na forma de cooperação a nível internacional, traçando caminhos para além da crise do multilateralismo interestatal.