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Mudanças Corporais: entre experiências veladas e o conhecimento

No documento CARLA MARIA LOBATO ALVES (páginas 108-114)

CAPÍTULO 4 – “SOCIEDADE MODERNA” E (EN)GENDRAMENTO DE

4.4 Mudanças Corporais: entre experiências veladas e o conhecimento

A socialização de homens e mulheres naturaliza traços da masculinidade e feminilidade em identidades opostas num sistema de relações heteronormativas. De acordo com Branca Moreira Alves et al. (1980), a identidade feminina foi caracterizada por alguns atributos, tais como timidez, docilidade, fragilidade, pureza enquanto que a identidade masculina foi caracterizada pela coragem, tenacidade e virilidade. Segundo as autoras, outros elementos que configuram a identidade feminina estão atrelados ao desconhecimento a respeito da sexualidade e das transformações corporais que acontecem com as mulheres. Nesse sentido, sentimentos como medo, vergonha e insegurança expressariam um pouco do que as mulheres pensariam a respeito, por exemplo, da primeira menstruação, das experiências erótico-sexuais vividas com namorados, maridos e/ou parceiros e da menopausa.

Tal como apontam aquelas autoras, os relatos de Joana, Rosário, Francisca e Rosa sobre o momento de sua primeira menstruação também são marcados tanto

pelo desconhecimento quanto pelas recriminações e ocultações que, em geral, as mães faziam sobre aquele momento.

Eu sempre tive assim...sempre fui muito retraída. É até um avanço eu sair com o Sr. Luís. Outra coisa que não se falava era sobre menstruação. Nessa época minha mãe foi muito calada. A não ser com alguma colega que a gente falava e eu com muita vergonha de perguntar. Eu não tinha coragem assim... e depois o pessoal podia falar: “Essa menina tão saliente. Quer saber das coisas antes do tempo”. Então, eu me reservava. Fiquei esperando. Menstruei com treze anos, aí falei pra mamãe e ela disse: “Não, isso é assim mesmo. A menina tem que ficar moça. Agora você é moça”. Aí tinha as recomendações: “não comer isso, não comer aquilo”. Não podia comer limão, não podia comer azedo. Era tanta coisa. Aí papai dizia: “As mulheres lá no Ceará, quando estão nesses dias, não passam nem debaixo de pé de Limoeiro” (risos). Depois que eu menstruei foi tudo bem. E depois mamãe me acompanhava nos meus partos (

Rosa

).

Acho que foi com 15 anos que eu menstruei. Não se conversava sobre isso não. Nada, nada. Nunca. Minha mãe não falava e meu pai, piorou. Eu fui criada assim, sem saber nada. Meu pai até reclamava quando minha irmã passava no corredor e dizia com raiva: “Essa é curiosa. Quer passar só pra olhar, pra ver o que a gente tá fazendo”. Assim que era....Lá em casa ninguém falava. Nunca vi minha mãe beijar meu pai, nem abraçar...tudo era escondido. Sentar no colo...Ave Maria! (risos). Nunca! No meu tempo, com meu pai, não! (...) Quando eu menstruei eu pensava que tinha me cortado. Eu pensava que era corte e perguntei pra uma prima minha, também naquele tempo, não sabia o que era. Ninguém respondia quando a gente perguntava, tinham vergonha de falar. (

Rosário

).

Eu acho....eu não tenho certeza, não tô lembrada, mas acho que foi na idade de 13 anos que eu menstruei. Foi nessa faixa. (...) A minha mãe sempre teve vergonha de contar as coisas. Conversar com a gente, se abrir com a gente. Ninguém contava, era assim como algo vergonhoso. Eu não sabia de nada. Eu lembro assim porque quando eu menstruei eu não sabia nem o que é que era. Quer dizer, não sabia entre aspas, porque eu já olhava minha mãe aqui e acolá, visto que elas usavam panos, não era absorvente. Eu olhava e criança sempre é curiosa e eu perguntava, mas elas não queriam nem responder o que é que era aquilo. Quando elas respondiam, respondiam errado. Era assim: “Ah, isso aí. Isso é meu. É que eu uso e tudo...”, mas não dizia o que era, qual era a finalidade. Aí quando eu menstruei eu me assustei. Eu não sabia o que é que era, mas tinha mais ou menos a idéia, já imaginava né? A gente conversava, eu e minhas primas. Às vezes as primas mais velhas, que menstruava primeiro, contava que nós iríamos

passar por isso. Porque do jeito que era minha mãe, eram minhas tias. Sobre sexo, nem falavam. Nem podia falar sobre sexo. Se falasse já era apanhando, era assim. Então aos poucos a gente ia descobrindo. Eu sabia que existia a menstruação, mas eu não explorava, eu gostava era de brincar, tomar banho em rio. E nos primeiros dias eu escondi. Eu fiquei escondida, toda sem jeito. Depois que eu falei pra minha mãe e ela ficava com vergonha. Ela não olhava nos meus olhos. Por isso que os pais tinham todos os cuidados pros filhos não namorarem. Os meus parentes anteriores eram todos analfabetos. Eles não iam pro colégio pra não saber fazer carta pra namorar. Tinha esses cuidados todos na época. (

Joana

).

Já operei três vezes, de Apendicite, Cesariana e Vesícula. Não sinto nadinha. Nunca senti nada de nada. Da cintura pra baixo sou uma pessoa que me cuido muito. Vou nesses médicos, faço meus preventivos, mas não tenho nada, nada. Eu nunca senti cólica ou outra dor. Tive quatro filhos e não senti nada. E dentro de 15 pra 16 anos que eu menstruei. Foi perto, um pouco depois que minha avó morreu. Todo mundo lá de casa falava pra minha avó pra ela me dar um remédio caseiro que eu com 15 anos não tinha vindo nada. E ela não me dava, dizia que na hora certa viria. E de lá pra cá nunca passou de três dias. Nunca, nunca, nunca. Não sei nem o que foi cólica (risos). Quando eu pensava que não, minha roupa já tava suja e eu me espantava: “Vixe, já?” (risos). Agora ninguém falava nada. Minha mãe mesmo não falou. Minha avó também, ela era uma cabocona do interior e não gostava de falar dessas coisas. A gente acabava aprendendo era com as colegas (

Francisca

).

As narrativas de Rosa, Joana, Francisca e Rosário demonstram que falar sobre menstruação, bem como manifestar alguma curiosidade sobre a sexualidade era um comportamento desaprovado às mulheres no contexto das décadas de 1940 e 1950. Estas mulheres contam que tinham medo de perguntar e contar que tinham menstruado, porém o desconhecimento sobre o assunto não era total, visto que as informações chegavam até elas observando, aqui e ali, que o mesmo acontecia com suas mães e tias. Tinham uma breve idéia do que poderia ser, mas sempre que perguntavam; as respostas geralmente eram evasivas. As reações das mães, avós e tias se aproximam das assertivas de Foucault (1980) sobre maneiras diferenciadas de falar sobre o sexo, ressaltadas anteriormente, segundo as quais “a sexualidade é falada através de próprio ocultamento ou da utilização de metáforas ou formas eufemísticas de abordagem” (Alves et al., 1980, p.259), por intermédio de elementos envoltos de mistérios e segredos. Tais elementos acabaram por

consolidar, na construção dos papéis de gênero, ideais de pureza e inocência ao comportamento socialmente esperado das mulheres, no que se refere às vivências da sexualidade, como “essências” ou “naturezas” biologicamente determinadas. Criticando esta perspectiva, Alves et al. (1980) argumentam que:

O desconhecimento, o silêncio sobre a sexualidade não é um vazio. É um silêncio simbólico, na medida em que transmite um modelo do “ser mulher”, um modelo de conformidade. O desconhecimento amplia o significado dessa sexualidade feminina, enquanto uma espécie de tabu, cercada de interdições, de regras de comportamento, de exigências, que definem não apenas a atuação da mulher como sua própria essência, a sua própria “natureza”. É visto como algo “natural”, próprio do comportamento adequado à condição feminina, e, conseqüentemente, atua como um dos elementos do poder exercido sobre a sexualidade feminina (ibidem, p.259).

A argumentação continua a questionar a naturalização dos papéis de gênero em:

Esse silêncio não é um silencio absoluto e nem apenas um silencio acionado de fora para dentro. Ele é também assumido pela própria mulher, como parte de um comportamento aprendido para a maximização de recursos se sobrevivência numa sociedade desigual. Toda essa aparente contradição se encaixa no jogo de sedução-recato- (...), assegurando, nesse sentido, à mulher que o exerce, a possibilidade de integração numa cultura que “naturaliza” a sua condição social (ibidem, p.260).

Essas informações também poderiam ser internalizadas pelo conteúdo de revistas destinadas às mulheres que circulavam nacionalmente na primeira metade do século XX. Essas publicações apresentavam, entre outros assuntos, que a sexualidade das moças solteiras e noivas era uma preocupação das famílias, aconselhando-as a não manter contato íntimo com os rapazes a fim de conservar a inocência sexual até o momento do matrimônio, pois estes geralmente buscavam como esposa as moças que fossem recatadas e com uma boa moral (Bassanezi, 2007). A revista O Cruzeiro recomendava:

Evite a todo custo ficar com seu noivo (...) a sós [quando] deixam-se levar pela onda dos instintos para lastimarem, mais tarde, pela vida toda [...] vocês cometem o crime de roubar ao casamento sensações que lhe pertencem correndo o risco de frustrar a vida matrimonial (O Cruzeiro, 07 de out de 1955 apud BASSANEZI, 2007, p.619)

A experiência aconselha, em benefício da moça que quer conviver com rapazes, que conquanto tenha confiança em si mesma, nunca tenha confiança em tal grau que a exponha a toda a prova. O amor é uma força

às vezes cega – é preciso andar sempre de olhos abertos para não cair (O Cruzeiro, 24 de mai de 1958 apud BASSANEZI, 2007, p. 612).

Também se percebe que essas mensagens não abordavam o assunto diretamente, o que encontra sintonia com as análises de Branca Moreira Alves et al. (1980). Os eufemismos eram muito utilizados naquelas revistas, destinadas às mulheres, para substituir palavras como sexo, relações sexuais, virgindade por “familiaridades, intimidades, liberdades, aventuras” (BASSANEZI, 2007, p. 620).

José Carlos Rodrigues (1975) ressalta que as atitudes diante do sangue variam culturalmente, podendo ser associado, pelos variados povos, à destruição ou à regeneração. O autor destaca que, em algumas sociedades, as mulheres menstruadas não poderiam tocar certos alimentos, que apodreceriam, nem praticar atos sexuais, exercícios físicos, lavar a cabeça, andar descalças ou tomar banho frio. Também poderiam ser segregadas, mantidas em um local separado, acreditando-se que o encontro casual com uma delas poderia ocasionar doenças. Entretanto, há outras sociedades em que o sangue menstrual não é evitado e nem representa ameaça ou perigo, podendo até curar enfermidades.

As narrativas de Joana e Rosário enfatizam algumas das interdições que foram atreladas ao sangue menstrual. Elas se referem, sobretudo, às frutas e comportamentos que deveriam ser evitados durante o ciclo menstrual. Além disso, o uso de ervas e chás no combate a cólicas menstruais e outras doenças ainda são relembrados.

E tinha muita coisa que falavam, na época, que podia fazer, não podia comer. Ah, mas era muita coisa! A gente não podia comer tanta coisa. A minha avó, ela era muito....assim, ela dizia que entendia de muita coisa. Ela era do tempo que tudo fazia mal. Até uma fruta, sem ser em período de menstruação ou não, tinha problema se misturasse com outra. Até hoje ainda tem....por exemplo, o Açaí. Quando eu tomo Açaí eu já tenho aquela coisa de não poder comer outra coisa. Isso ainda ficou, mas muita coisa já saiu. Já não faço mais. Algumas coisas saíram. A gente foi aprendendo que não fazia mal, mas o açaí ficou. Eu ainda lembro de Laranja, que era uma das frutas. Abacate, Buriti...é...Melancia, Goiaba. Eram inúmeras frutas. Manga. Lá onde a gente morava tinha muita Manga. Eu sempre fui louca por Manga, mas não podia. Manga fazia mal. Todo mundo dizia que principalmente Manga. Eu lembro que minha avó dizia assim: “Manga é pus. Não pode” (risos). E ela fazia muito remédio caseiro. Chá de hortelã, que era pra

acalmar, pra má digestão....toda erva ela sabia alguma coisa. Tanto que eu queria ficar na Fitoterapia [disciplina da UNITI], mas não deu por causa do horário pela manhã. Ela tinha muitas ervas. Ela tinha canteiros e mais canteiros de ervas. Todo mundo que precisava ela sabia o que dar. A gente morava num lugarzinho e lá era pequeno e tudo, não tinha médico, e tudo ela sabia. Ela sabia remédio pra dor de dente, pra dor de ouvido, pra febre, remédio pra tudo, pra tudo mesmo. O banho também. Era recomendado que a gente tomasse um banho rápido. Não podia banhar na parte da tarde. Não queriam que molhasse a cabeça. Tinha todos uns cuidados, assim. Eu tinha cólica e ela fazia um chá de uma folha que eu esqueci agora (

Joana

).

Eu sentia dor e tomava remédio mesmo, aquele Atroveran. Às vezes tomava Cibalena. Agora depois que eu casei acabou, não tive mais cólicas. O povo tomava muito era chá de Aroeira. Eu ouvia falar mais de Aroeira porque pra não engravidar. Eu nunca usei remédio assim, como hoje, pílula, que às vezes incha, às vezes faz mal. Pílula eu nunca usei, só a pílula contra [pílula do dia seguinte] e usei muito o limão. Limão em jejum, purinho, sem água, sem açúcar, sem nada. Assim que termina de ter relação, toma o limão. Isso eu tomei muito. Já tomava casada, pra evitar filho, que eu já tinha quatro. E ele queria ter quantos viesse. Eu que não queria porque não tinha condições financeiras pra ter muita criança e tá sofrendo depois. Não dar médico, um colégio adequado pra aprender. Eu dizia pra ele né: “Olha, eu não quero”. Aí foi quando ele pensou que eu já tinha cinco, morreu uma com 20 anos e hoje tem quatro filhos. (...) Antigamente as mães da gente não falavam dessas coisas não, parece que tinham vergonha. Eram vergonhosas. E tinha mais, se tava menstruada, não pegava sereno, não comia limão, nem comida gordurosa. Também não tomava banho com água fria, e eu, pelo menos, já vim tomar banho frio depois de muito tempo. Eu fiquei com aquilo dentro de mim e quando eu tinha menino eu só banhava com água morna. Só depois que eu fui me despertando, que a gente vai aprendendo e vê. Se eu não tivesse tirado essas coisas até hoje eu era uma pessoa que não tomava banho frio! Onde já se viu, menino? Hum, que coisa! (risos). Aí meus filhos iam crescendo e dava logo banho neles com água fria e pronto. Não andava descalço, naquela época. Faziam era amarrar tamanco no meu pé pra eu não sair descalça quando tava menstruada. Diziam também que não se passava em cima de fezes de cavalo, de boi... é, é isso tudo mesmo. Olha, eu me lembro que quando eu tive minha filha eu passei foi quarenta dias deitada na cama. E era só comendo pirão, pirão com frango. Não comia feijão pra não dar coceira na cirurgia, nos pontos. Menina, mas era tanta coisa que não podia! Meu marido ainda conseguiu uma mulher aqui pra cuidar de mim e ela era pior do que minha avó (risos). Não podia isso, não podia aquilo. E eu já tava era abusada daquele pirãozinho de galinha. Era temperado só na água, no sal e no tempero seco. (

Rosário

).

Neste trecho de narrativa, acima, Rosário nos conta que preferia tomar limão em jejum para evitar futuras gravidezes, uma vez que já tinha quatro filhos, a usar outro tipo de método contraceptivo, como a pílula anticoncepcional surgida na década de 1960, evidenciando que a vivência de sua sexualidade estava desatrelada da procriação, o que ampliava o controle sobre seu corpo e a possibilidade de gerar filhos.

No documento CARLA MARIA LOBATO ALVES (páginas 108-114)

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