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2- A Companhia Armour em Sant’Ana do Livramento

2.7 Mudanças na Fronteira

A vinda da Companhia Armour para a Fronteira Livramento-Rivera trouxe um considerável progresso para as duas cidades, além de gerar empregos diretos e indiretos para os moradores de ambas as cidades, ajudou enriquecer os pecuaristas da região e levantou o comércio dos dois municípios.

No ano de 1932, na “Síntese Geográfica das Regiões Naturais do Rio Grande do Sul” coordenada pela professor Tupi Caldas, Livramento ocupa o terceiro lugar como “parque industrial”, atrás de Porto Alegre e Rio Grande. Segundo Albornoz nos anos seguintes:22

“Em 1937 Sant’Ana possuía 50 industrias, com 2.757 operários trabalhando no setor secundário da economia. O capital investido nestas indústrias era de 44.645 contos de réis, sendo o valor da produção de 88.940 contos de réis. Só que ao Frigorífico Armour correspondia um capital de 40.000 contos de réis, 89,59% do total do munícipio. Quanto ao valor da produção, essa indústria produzia 73.865 contos de réis por ano, 83,05% do valor de toda a produção industrial do munícipio. Com 2.630 operário, trabalhavam no Armour 85,60% dos industriários da cidade.” (ALBORNOZ, 2000, p. 111).

22 ALBORNOZ, 2000, p. 111.

O frigorífico Armour possuía uma parcela importante na industrialização do munícipio sendo que detinha juntamente com o poder político de Livramento o controle da economia da cidade.

Em setembro de 1930, o então prefeito de Livramento Hugolino Andrade Farias conseguiu um empréstimo com a Companhia Armour de 157.894 dólares, que seriam pagos em 10 anos com juros anuais de 8%. O dinheiro do empréstimo seria usados para financiar os gastos com o calçamento das ruas do munícipio. A utilização de dinheiro estrangeiro era algo usual nesta região de fronteira, sendo que este costume era comum a população. Mas o problema em relação a este empréstimo, “como a perda de poder local frente a empresa multinacional”, foram as condições impostas ao munícipio que comprometeu-se em não aumentar e nem criar novos impostos. Lê-se na alínea 12ª:

“12ª. O Munícipio obriga-se, na vigência deste contrato, a não criar impostos municipais, seja qual for, que afete ou possa afetar a Companhia, bem como obriga- se a não alterar para mais os que atualmente paga, em algum caso.”

O governo executivo municipal se restringiu em seus direitos constitucionais de competência tributária, através de um acordo privado em que a Companhia Armour saiu beneficiada com vantagens especiais. Sob o ponto de vista ético a Prefeitura havia deixava de fiscalizar a empresa americana, já que está era sua credora. No mês seguinte ao contrato entre a Companhia Armour e a Prefeitura de Sant’Ana do Livramento, ocorre a Revolução de 1930, quando então o Presidente Getúlio Vargas decreta que estão proibidos os pagamentos em moedas estrangeiros e em ouro no Brasil, com aplicação retrocessiva. Baseado nesta lei, o intendente eleito rescindiu o 1º. contrato e sua protelação em agosto de 1937. O 3º. contrato estabelecia o pagamento em “moeda nacional” e rescindia a alínea 12º. No ano de 1939 ficou estabelecido que a Prefeitura pagaria a dívida anualmente despendendo 81.898$ 800, este valor deveria ser pago todos os anos durante duas décadas, valendo a partir do segundo contrato realizado em 1937.23

23 ALBORNOZ, 2000, p. 112.

Capítulo 3: A Organização Hierárquica do Frigorífico Armour

3.1 A Disposição do Espaço Físico do Bairro Industrial

O frigorífico Armour não representou para Sant’Ana do Livramento apenas uma indústria, mas ao seu redor originou-se uma comunidade que vivia em função do Armour. Em torno do frigorífico desenvolveu-se um complexo social que agregava além do frigorífico um complexo social que mudou definitivamente a estrutura urbana de Sant’Ana do Livramento.

O prédio que comportava o frigorífico Armour demorou três anos para ser construído, durante este período foi utilizado as instalações da Charqueada Livramento para a produção. Todas as máquinas ingressaram no Brasil como capital. Através da Planta Geral da Fábrica e Residências planejada pela companhia e centralizada na entrada do frigorífico, ficava na parte inferior a estrada que conduzia ao prédio, e à esquerda os currais e o frigorífico.

Como foi colocado anteriormente no livro caixa da Companhia Armour constam quatro construtoras: Sundstrom e Locam, Serralta, está última uma empresa local construíram todos os edifícios do complexo industrial além da casa dos superintendente, e dos funcionários do primeiro escalão da companhia, inteirando 32 residências, a Adams y Shaw empresa uruguaia de Montevidéu que projetou e fiscalizou os trabalhos da construção da Gerência, da casa dos solteiros e do clube.

O complexo industrial é uma reprodução do frigorífico Cerro de Montevidéu.24 A empresa possuía compartimentos internos de graxearia, cozimento de sangue, latoaria, rotulagem, salga de couros, conserva, moinho de ossos, matança, cozimento de carne, câmaras frigoríficas, picada, tanque de cozimento, resfriador e salmoura. Já na parte exterior encontravam-se as instalações de carpintaria, armazém e a balança para vagões e para o gado. Os escritórios da gerência, de compra e de

24 Idem, p. 118.

engenharia de operações achavam-se no conjunto da planta industrial. Abaixo uma nota do jornal “A Federação”, sobre as instalações do Armour.

Figura 13- Publicado no jornal A Federação 24 de maio de 1918.

Fonte: imagem do arquivo de Camila Viscardi.

na organização do espaço físico do complexo industrial do frigorífico Armour em Livramento, sendo que o edifício da administração era por inteiro afastado da fábrica. O taylorismo aconselhava a subdivisão do trabalho da gerência originando um grupo especializado executor do trabalho de escrita e organização. Na Planta da Empresa, o edifício da administração situa-se a direita da entrada do prédio, perto da rua onde ficava o prédio da administração à direita, fica uma rua que era conhecida como 1º Avenida onde residiam os funcionários do primeiro escalão do frigorífico como o gerente e seus assessores, sendo que a casa do gerente era a maior o que demonstrava que a posição na empresa fazia-se valer em todas as particularidades da hierarquia

social.25 Esta avenida dava para a casa dos solteiros e o clube campestre. Os prédios projetados pelo escritório uruguaio em Montevidéu, foram construídos para

serem fortes e sólidos e contavam com dois andares, sótão e porão, eram em três e foram arquitetados no estilo Georgiano, do começo do século XVIII, característico da Inglaterra, sendo utilizado nos Estados Unidos como uma implicação da aristocracia rural. Os arquitetos ingleses da Adam y Shaw que viviam no país vizinho, em Montevidéu pretendiam com seu projeto trazer para a Companhia Armour apresentar edifícios que mostrassem elegância e opulência. Segundo Albornoz “era muito comum a referência a estilos de outras épocas, conjugada aos avanços técnico-científicos e aos novos conceitos de sanitarismo: iluminação e aeração das peças, na Arquitetura Eclética ou Historicista.” (Albornoz, 2000, p.120).

Na disposição do Bairro Industrial do Armour a edificação de casas construídas pela Companhia somente para os altos funcionários sendo que estas ficavam dentro dos limites do complexo industrial. A residência do gerente destacava-se por ser maior que as demais casas, o que demonstrava que a hierarquia fazia-se valer em todos os lados da organização do sistema industrial. A casa do gerente possuía mais cômodos com quatro quartos, dois banheiros e dois quartos de empregadas. Mas em relação ao material era usado o mesmo tipo em todas as residências como os telhados e janelas. Marta Andrade Pinheiro, filha de um médico que trabalhou para a Companhia Armour, relatou em depoimento a professora Vera Albornoz, as diferenças entre as moradias construídas

25 ALBORNOZ, 2000, p. 122

pelo Armour e as residências de Sant’Ana do Livramento:26

“As do Armour tinham conforto, (...) tinham um living, tinham um ambiente acolhedor, coisa que nas casas de Sant’Ana não tinha. (...) Tinham salas de visita fechadas, as pessoas se reuniam na sala de jantar. Ficavam depois do jantar, em torno da mesa conversando. Ninguém tinha lareira. As únicas casas que tinham lareira eram as do Armour.” (ALBORNOZ, 2000, p.123)

Já a casa dos solteiros apresentava um estilo mais simples mas austero, contava com cerca de quarenta e nove cômodos com armários e pias. Os espaços privados como os quartos e coletivos como os banheiros e corredores eram ventilados e possuíam boa iluminação.

Figura 14-Alojamento para os solteiros construído pelo frigorífico Armour.

Autoria: Michele Nunes da Silva, 28 de janeiro de 2014.

Figura 15- Escadaria do original do alojamento dos solteiros.

26 ALBORNOZ, 2000, p. 122.

Autoria: Michele Nunes da Silva, 28 de janeiro de 2014.

Para os operários a companhia cedia terrenos para a construção de casas, “nunca houve financiamentos para a compra de casa para os operários.” (Gornatti, pág3) Os próprios operários construíam suas casas de madeira e as revestiam com folhas de aço estanhado, feitas com latas de conserva, pois quando a chapa apresentava algum problema, o material era vendido aos operários registrados. As “casas de lata” até hoje são características do Bairro do Armour, sendo que foram construídas em torno do frigorífico, outra característica destas residências são as cores fortes e marcantes, pois as casas tinham que ser pintadas todos os anos para que as latas fossem danificadas. 27

Segundo um estudo feito pela professora Neiva Shaffer, da UFRGS, as “casas de lata medem entre 30 e 50 metros quadrados (...) enquanto as casas dos funcionários mais graduados, os ‘capotes brancos’, medem entre 150 e 200 metros, confrome se vê no orçamento do engenheiro Serralta, datado de quase sessenta anos atrás.”(ALBORNOZ, 2000, p.123)

27 ALBORNOZ, 2000, p. 123.

Figura 16- Casa de lata do Bairro Armour.

Autoria: Michele Nunes da Silva, 28 de janeiro de 2014.

As casas dos operários não possuíam sistema de esgoto, luz elétrica ou água encanada, diferente dos funcionários especializados que tinham suas residências nos arredores do frigorífico.

Os operários do frigorífico Armour eram contratados apenas em época de safra, nos períodos de ‘safra seca’ a maioria dos operários era dispensada pela empresa. Chegavam a ficar cerca de quatro meses sem emprego. Para poder manter-se nesses períodos recebiam horas extras, sendo que nos tempos de safra procuravam trabalhara mais. Segundo Heber Dachi operário do frigorífico: “A gente deixava até a família de lado, trabalhava mesmo. Teve gente, na época, que disse que aqui nós não trabalhávamos nós matávamos.” (ALBORNOZ, 2000, p. 108.)

A clara distinção entre os operários e os empregados mensalistas estabelecia as relações de trabalho dentro do frigorífico através do controle social. Os empregados mensalistas que ocupavam uma posição intermediária na hierarquia da empresa. Os funcionários que se destacavam recebiam prêmios altos em dinheiro, além de continuarem contratados pela empresa, recebiam moradia e mais leite, água e luz praticamente gratuitos. A empresa seguia as concepções do taylorismo, que em prática

gerava a diferenciação entre os funcionários com o reconhecimento dos cargos superiores. Isso criava uma rivalidade entre as chefias da empresa.

Na empresa existiam normas de conduta que determinavam que os funcionários deveriam ter os cabelos e barbas sempre feitos. A respeito da disciplina da empresa em relação a aparência dos funcionários, um antigo funcionário do frigorífico concedeu o seguinte relato:28

“O corte de cabelo era uma exigência, a barba feita todo o dia também era uma exigência. Conhecia gente que não prosperou na carreira funcional porque oferecia resistência a hábitos exigidos pela direção, como a barba feita diariamente.”

Dentro do complexo industrial existiam duas cadeiras de barbeiro, o barbeiro aparecia na fábrica pela parte da manhã e ia à tarde no escritório por exemplo, ou o inverso. O barbeiro não possuía vínculo empregatício com a empresa e cobrava todos os funcionários pelos serviços prestados.

Através do serviço de ponto era exercido o controle em relação a todos os empregos do frigorífico, cada funcionário possuía uma plaqueta com um número específico. “Tinham três controles para cada funcionário, desde o operário até a direção.” (ALBORNOZ, 2000, p..105) No momento em que o empregado tirava a chapa, era apontada a hora que ele retirava da chapa, posteriormente o desempenho do serviço possuía o apontador. Dois funcionários realizavam o ponto, e “apontador departamental, que era o departamento, checava a presença do operário na totalidade das horas que eram anotadas no Livro do Ponto.” ( ALBORNOZ, 2000, p.106).

Uma das histórias mais curiosas relacionada a Companhia Armour e sua estrutura hierárquica, foi em relação as invenções de seus funcionários e de como a empresa se apropriava das patentes. Um desses funcionários o senhor Manuel Rico recebeu apenas um bônus em dinheiro por sua invenção, sendo que está foi patenteada com o nome da Companhia Armour. A história do senhor Manuel Rico, foi contada em depoimento a Vera Albornoz, pela filha de Pedro Irigoyen, fundador da Charqueada

28 ALBORNOZ, 2000, p. 106.

Livramento. Mercedes Irigoyen, casada com um antigo funcionário do frigorífico Armour, relatou:29

“Gostaria de destacar o fato do aproveitamento pelas multinacionais (...) da capacidade (...) intelectual de seus empregados latino-americanos. Um exemplo disso é a invenção da máquina etiquetadora para as latas de “corned-beef” de uma libra de peso. Pelo seu formato, exigem uma etiqueta de forma quase trapezoidal, que deve ser aderida à lata com grande cuidado para encaixar perfeitamente na saliência, que servirá para abrir a lata. (...) Manuel Rico, conhecido como Manolo, inventou aqui em Livramento, a máquina que podia fazer o trabalho com perfeição. A diretoria do Armour de Chicago, interessadíssima, pediu os planos da mesma. Mas Manolo não sabia fazer planos. O problema foi solucionado, colocando-se uma máquina fotográfica com o obturador aberto, enquanto durava o movimento da máquina inventada, controlada por um bom fotógrafo. Nas fotos assim obtidas, se podia ver detalhadamente as diferentes fases do movimento mecânico.

Eu sei disto, porque meu marido era empregado do Armour, além de muito bom fotógrafo, sendo quem conseguiu a prova fotográfica. Manolo recebeu um bônus de compensação, mas a máquina foi patenteada pela Companhia Armour.”

( ALBORNOZ, 2000, p. 109).

O senhor Heber Dachi, confirmou o depoimento de Mercedes Irigoyen e ainda acrescentou afirmando que “se não levasse cera de abelha não rotulava direito”. Dachi ainda relata que existiram outras invenções como “um tipo de martelete para desprender o couro da rês, “o matambreiro e a desossa aérea, método que compreendia “pendurar os bois em um trilho em cima e matar o boi andando, (...) enquanto passava para lá, outro já ia tirando o couro.” Este método, segundo antigos funcionários era muito mais eficaz e higiênico do que desossar o animal sobre a mesa. Todas as invenções citadas, foram criadas por Manuel Rico, de acordo com antigos funcionários do Armour que confirmam esses fatos. Elba Cepada, nora de Manuel Rico declarou que:30

“Naquela época ele ganhou um prêmio de cinco mil cruzeiros, foi o que ele ganhou. Era um prêmio. Mas ele inventou e a patente saiu no nome da companhia.” (ALBORNOZ, 2000, p. 110)

Elba Cepada, relata que o sogro não se incomodava, com a apropriação de suas invenções pela Companhia Armour. Manuel Rico era um eletricista bobinador e teria feito um curso por correspondência de mecânica, assim tornou-se o criador de vários

29 ALBORNOZ, 2000, p. 109. 30 Idem, p. 110.

inventos. Segundo Mercedes Irigoyen, a empresa de Chicago “vestia-se de plumas aleias” em uma referência ao aproveitamento da aptidão criativa de seus empregados. Além disso havia a perspectiva de “neocolonialismo cultural”31 de que somente

europeus e americanos seriam capazes de grandes realizações, ou seja, quem nascia abaixo da linha do Equador não possuía a capacidade de criar algo ou de ocupar um grande cargo, exercendo somente funções subalternas. Manuel Rico, mostrou-se capaz se ser um grande inventor, mas não levantou a voz para exigir os seus direitos pelas suas criações. Manuel Rico, representa muito bem os muitos santanenses trabalhadores do Armour, que importavam-se apenas em manter o emprego. 32

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