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Muitos privilégios e distintas honras: os trabalhadores e os corpos de ofícios no

No documento fabianogomesdasilva (páginas 88-102)

CAPÍTULO 02 – O MUNDO DO TRABALHO NO ANTIGO REGIME PORTUGUÊS: OS

2.2 Muitos privilégios e distintas honras: os trabalhadores e os corpos de ofícios no

Um teólogo ibérico quinhentista repreendia o pobre sem enfermidade ou aleijão a servir ou a trabalhar para não viver no vício e no pecado.171 Ele nos presta de alerta para não confundirmos o servir a outrem com toda forma de trabalho no Antigo Regime, pois havia grupos que viviam nas cidades, nas vilas e fora delas com patrimônio acima de 500 libras ou que faziam uso de ofícios em utilidade da res publica com o direito reconhecido de trabalhar para si sem a obrigação de se sujeitar a mestre ou senhor.172 Eram os mercadores e os oficiais

168 http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=71&id_obra=67&pagina=73 e

http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=71&id_obra=67&pagina=74.

169 A noção do trabalho como função econômica pode ser encontrada na análise marxista e nos manuais de

economia contemporâneos.

170 Os homens da Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa referiam-se da seguinte forma à memória fundadora da

organização: “Tomou a Casa dos vinte e quatro o nome de vinte e quatro, Homens, de que foi Instituida pelo Snr. Rei D. João o primº de Gloriosa Memoria no ano de 1422 concedendo Logo aos Individuais dela muitos Privilegios, e, distintas Honras”. Ver: LANGHANS, Franz-Paul. A Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa: subsídios para a sua história. Lisboa: Imprensa Nacional, 1948, p. 257.

171 Trata-se do teólogo espanhol Alejo de Venegas, natural de Toledo, em citação da sua obra Agonía del trânsito

de la muerte (1537) por BENNASSAR, Bartolomé. La España del siglo de oro. 2. ed. Barcelona: Editorial Crítica, 2009, p. 206.

172 ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL DE COIMBRA. Pergaminhos avulsos: Lei das Sesmarias de 1375, n.

que se dedicavam aos ofícios manuais que podiam dispor livremente do seu tempo em proveito de uma ocupação pública.

O trabalhador com domínio de alguma arte atuava tanto no seio da unidade familiar quanto na sua própria oficina com ferramentas, matérias-primas, oficial a jornal e aprendizes – que podiam ser filhos, parentes ou vizinhos tomados a serviço. Assim, a produção artesanal podia acorrer tanto na morada do mestre quanto nas tendas e lojas abertas no mercado local.

Eles, entretanto, não trabalhavam de forma livre nas vilas e nas cidades portuguesas como produtores independentes de mercadorias e serviços e deveriam se sujeitar às comunidades. O poder concelhio era o lócus privilegiado desse governo das gentes e dos seus problemas mais imediatos, pois, precocemente, tinha incorporado o direito da almotaçaria. Isso conferia aos senhores da Câmara funções e prerrogativas administrativas mais ativas em questões tipicamente citadinas, como abastecimento, insalubridade, usos e apropriações do espaço urbano e outras relativas à regularidade do mercado local, como, por exemplo, os preços de serviços e os salários dos trabalhadores manuais do seu termo.173

As modernas instituições de controle e regulação do mercado de trabalho, como os corpos de ofícios e os regulamentos dentro dos conselhos, podem, em parte, ter se originado da, nem sempre amigável, relação dos trabalhadores com os vereadores e demais oficiais das câmaras na regulamentação dos mercados locais. Segundo Marcelo Caetano, o controle camarário do mercado por meio da almotaçaria e das posturas sem a anuência dos mestres de ofícios teria alimentado a pugna dos oficiais de Lisboa pelo privilégio régio em participarem do governo municipal, o que, paulatinamente, viabilizou a institucionalização da organização

173 A almotaçaria e a figura do almotacé fazem parte da herança muçulmana no governo das comunidades

medievais elevadas à condição de vilas ou cidades em Portugal. O almotacé foi, inicialmente, um oficial de nomeação régia com atribuições básicas centradas em temas como mercado (abastecimento), sanitário e construtivo/urbanismo, mas, no século XIII, ele já estava incorporado no universo de atribuições das câmaras. Sobre a instituição, ver: PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Almuthasib: considerações sobre o direito de almotaçaria nas cidades de Portugal e suas colônias. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 42, p. 370-381, 2001. Entretanto, deve-se anotar que o escrivão da almotaçaria de algumas vilas mineiras era provido pelo governador da Capitania de Minas Gerais no século XVIII.

corporativa dos ofícios e a regulamentação do acesso a essas ocupações no Império português.174

Por outro lado, pode-se também, segundo Jean Delumeau, ter as instituições corpos de ofícios como atos dos monarcas europeus, que pretendiam diminuir a participação política dos mestres e oficiais mecânicos na vida urbana com a inserção deles nos conselhos municipais, particularmente, após as revoltas e as insurreições levantadas e insufladas pelas gentes dos mestres no século XIV. Liége, Paris, Florença, Ypes, Bruges, Rouen e Lyon foram algumas das cidades em que o mundo do trabalho levantou no período, aparecendo em umas delas o pleito pela participação da arraia miúda no governo local (“ter a primeira voz no conselho e nas assembleias de Estado”), o conflito com os oficiais da almotaçaria (almotacéis) e a crítica aos privilégios das nobrezas (“dar a lei àqueles que antes eram grandes na raça, nos bens e na qualidade”).175

Assim, a paulatina institucionalização dos corpos de ofícios nas câmaras e, consequentemente, a participação dos mecânicos na gestão do governo econômico das urbes decorreram dos seguintes fatores: a) da luta por participação do povo dos ofícios no governo municipal no fim do medievo; b) da luta por garantias diante do poder exclusivo dos senhores do senado e da almotaçaria na regulação de toda atividade laboral e produtiva nos mercados e feiras da vila ou cidade; e c) da concessão de vários privilégios régios para a gente dos ofícios.

No Antigo Regime português, o exemplo mais completo de organização corporativa possível aos trabalhadores manuais pode ser encontrado no corpo de oficiais manuais de Lisboa. A famosa Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa foi um paradigma para os demais mestres e trabalhadores manuais do Império, pois atingiu uma série de privilégios régios concedidos entre os séculos XIV e XV, como: a) 1384: a presença e a participação de “dois

174 CAETANO, Marcello. A história da organização dos mesteres na cidade de Lisboa, Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), v. 318, p. 290, jan.-mar. 1978.

homens bons de cada mester” nas decisões da Câmara; b) 1391: a anuência para a Câmara deliberar sobre o arruamento dos mestres; c) 1434: a confirmação de direitos de 1384, a instituição de quatro procuradores dos mestres nas reuniões do conselho e a eleição de um juiz dos vinte e quatro ofícios para presidir o “Colégio dos vinte e quatro” (juiz do povo só no século XVII); d) 1466: a definição de mandatos anuais para os procuradores dos mestres; e) 1487: a instituição dos tabelamentos “sobre oficiais de ofícios e artes mecânicas e outras coisas” por três homens bons de cada cidade, vila e lugar, mas com a participação e anuência de dois juízes de cada ofício.176

Os privilégios e honrarias concedidos aos mestres lisboetas cresceram ao longo dos anos: a eleição deles se dava juntamente com o corpo de oficiais das câmaras, os chamados homens bons; eles tinham o direito de participar das cerimônias e das festividades convocadas pela Corte régia, pela Câmara e pela Inquisição – muitas vezes ocupando a função de familiares do Santo Ofício (leigos que auxiliavam os comissários dessa instituição);177 e, no século XVII, os filhos dos membros da Casa dos Vinte e Quatro podiam cursar artes por um ano na Universidade de Coimbra e se candidatarem a cargos na burocracia real, como magistrados em tribunais ultramarinos.178 Mas, para tudo isso, os representantes dos mestres de ofícios mecânicos lisboetas deveriam ser alfabetizados, examinados pelos juízes de seus ofícios, embandeirados e ter oficina ou loja própria, sendo excluída a participação de estrangeiros e limitado o acesso dos cristãos-novos.179

Nas matérias de suas especialidades, os corpos de ofício assentados nos conselhos usufruíram do monopólio da oferta de mercadorias e de serviços para a comunidade. Só os

176 CAETANO, Marcello. A história da organização dos mesteres na cidade de Lisboa, Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), v. 318, p. 286-291, jan.-mar. 1978.

177 RIOS, Wilson de Oliveira. A lei e o estilo... p. 79.

178 Ver: HANSON, Carl A. Economia e sociedade no Portugal barroco (1668-1703). Lisboa: D. Quixote, 1986,

p. 69. O historiador Stuart B. Schwartz, pesquisando a formação da magistratura no Brasil colonial, identificou quatro magistrados do Tribunal da Relação da Bahia que eram filhos de membros da Casa dos Vinte e Quatro (SCHWARTZ, Stuart B. Magistratura e sociedade no Brasil colonial. In:______. Da América portuguesa ao Brasil: estudos históricos. Algés (PT): Difel, 2003. p. 82, nota 20).

examinados podiam exercitar as habilidades para as quais foram testados por seus pares no mercado local. Por isso, os mestres elaboravam regimentos confirmados pelas autoridades régias, no caso de Lisboa, e municipais, para o restante do Império, que orientavam o acesso ao mercado (emissão das cartas de exame para novos oficiais), o processo formativo de novos membros (aprendizes: o número que podia ser tomado e o tempo de permanência mínima por mestre), a jornada de trabalho, os preços e a qualidade (bondade) dos produtos e obras servidos – particularmente daqueles que possuíam oficina ou tenda aberta.180 Eles buscavam legitimar uma disciplina interna definindo preceitos comportamentais e profissionais a serem seguidos por mestres examinados, aprendizes e oficiais.181

A dimensão política e pública dos corpos de ofícios dentro da administração das vilas e cidades, outorgada pela justiça régia, diferiu das suas antecessoras confrarias associativas e hospitais medievais de mestres sob a batuta de santo protetor – essas instituições buscavam, primordialmente, a caridade cristã com a ajuda mútua em caso de doenças, mortes e dificuldades materiais e espirituais entre seus membros.182

Os corpos diretivos183 de cada ofício manual dentro das câmaras significaram novos agentes e interesses dentro do oligárquico governo local, já que eles tinham acesso a discussões de interesse do bem comum (como rendas, impostos e serviços públicos), a assento

180 Em avaliação sobre os corpos de ofícios na monarquia portuguesa, António Manoel Hespanha afirma que “o

resultado mais importante da organização corporativa foi o de conseguir transformar a regulamentação externa (real e concelhia) da atividade artesanal – quanto a preços, qualidade, contingentes a produzir, distribuição de matérias-primas – em uma auto-regulamentação feita pelos próprios artífices e, portanto, mais favorável para seus interesses” (HESPANHA, António Manoel. História das instituições: Época Medieval e Moderna. Coimbra: Livraria Almeida, 1982. p. 196).

181 Segundo Helga Schultz, as normas corporativas dos ofícios manuais serviam à proteção “de los sócios de la

competência exterior y mantener el monopólio colectivo” (SCHULTZ, Helga. Historia económica de Europa, 1500-1800: artesanos, mercaderes y banqueros. Madrid: Siglo XXI de España Editores, 2001. p. 108). Essa é parte da tese de Marx Weber sobre a função das corporações como regulamentação para o seus membros (interior) e monopolização do mercado (exterior).

182 SANTOS, Georgina Silva dos. Ofício e sangue: a Irmandade de São Jorge e a Inquisição na Lisboa moderna.

Lisboa: Edições Colibri, 2005. p. 106; CAETANO, Marcello. A história da organização dos mesteres na cidade de Lisboa. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), v. 318, p. 291, jan.-mar. 1978.

183 O uso do termo corpos diretivos dentro do ambiente camarário se refere aos ofícios manuais com algum tipo

de presença no Conselho, o que podia se dar pela simples eleição anual dos juízes e escrivães dos ofícios ou pela organização deles por meio de uma bandeira (aglutinação de vários ofícios em um mesmo estandarte de identificação).

nas vereações (procuradores e juiz do povo), a privilégios e à presença nas solenidades públicas.

A participação do povo dos ofícios na gestão política do governo da cidade não era tema pacificado nem no direito nem entre as nobrezas do Antigo Regime, mesmo em se tratando de uma fração dos trabalhadores, uma elite laboral, para dizer a bem da verdade. As investiduras dos mecânicos e seus descendentes em funções na governança municipal podiam desencadear acirrados confrontos sobre precedências, hierarquias e status social, particularmente, se estivessem em disputa cargos que costumassem conferir algum nível de enobrecimento aos ocupantes.

Tudo decorria de uma preocupação nada acessória nessa sociedade de corpos: a natureza das ocupações e dos modos de viver. Aplicando a velha roupagem aristotélica, o estamento nobre sustentava que era “notório que allguu modo de viver nom pode ser chamado de virtuoso”. Os homens de ofícios e demais plebeus não possuíam viver virtuoso nem o tempo para o cultivo das coisas morais e políticas. Não governavam a si mesmos e não conheciam “que cousa he honra nem quamdo deve a homra preceder o proveito nem podem distinguir amtre as virtudes moraees”. Suas ações se resumiam a “tumultos e vozes vãas [que] dam clamores de ora escolherem e ora imgeitarem”. Quando assentes na governança local, os oficiais e mestres de ofícios tomavam “as cousas de seus oficios” para colocarem “em taees preços peque tiram todo o regimento e ordenãça”. Por isso, os mestres de ofícios deveriam ser afastados da governança das câmaras no Reino, e restituída aos nobres e bons a elaboração dos regimentos municipais, pois gentes do povo “nom devem ser regedores omde há nobres e sabedores”, exceto ao custo de muito escândalo e injúria por parte da nobreza.184

184 Os fragmentos de capítulo proposto pela nobreza contra a presença dos mestres no governo das câmaras nas

Cortes de Évora (1481-1482), o qual não foi avaliado pelo rei por considerar que a situação se referia apenas a Lisboa. Ver: http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=125&id_obra=77&pagina=263. Na mesma Corte, a nobreza solicitou que todos os filhos de lavradores e “dos ofeciaees macanicos e de sua sorte apremdam e husem dos oficios dos pais e se quiserem apremder amtes outro seia em sua liberdade e todavia seia oficio per que viva porque se aparte de husar mal de si”. Filho de camponês deveria ser camponês, ou filho de

Não era somente a montagem de um simples inventário das qualidades e virtudes necessárias aos gestores do bem comum que estava em jogo, mas o pretenso direito de determinados grupos no usufruto privilegiado das escassas mercês advindas das graças régias e seu serviço, bem como isenções de toda sorte. No século XVII, os legisladores portugueses pretenderam reafirmar que não fossem

admitidos na governança (...) mecânicos, nem peão algum (...) se não Nobres das partes, e qualidades para isso, e filhos de nobres’, embora os juristas discutissem se tais normas se aplicavam à gente da “governança” (juízes ordinários, vereadores, procuradores e almotacés) de todas as oito centenas de câmaras do país, ou apenas aos das “cidades e vilas notáveis”.185

Por isso, a realização dessa exclusão variou enormemente dentro do Império português, de modo que não prosperava sempre e, quando foi sustentada pelas oligarquias locais, não se estendeu a todos os cargos e funções. O conflito sempre aparecia quando se definia quem tinha precedência na ocupação de cargos de vereadores, almotacéis e tesoureiros;186 quando os representantes dos oficiais manuais lutavam pelo reconhecimento de privilégios, como o direito a voto em matéria de interesse comum ou dos ofícios;187 quando o peso do voto dos representantes do povo (mestres, procuradores e juízes) era diferente dos

mecânico sempre mecânico. O rei negou a interdição para os filhos de camponeses se dedicarem aos ofícios manuais. Avaliando as pautas e os deferimentos das Cortes convocadas no governo de D. João II, Maria Helena da Cruz Coelho sustenta que esse monarca teria se inclinado para os interesses do Terceiro Estado. Ver: COELHO, Maria Helena da Cruz. O final da Idade Média. In: TENGARRINHA, José (Org.). História de Portugal. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: UNESP, Portugal: Instituto Camões, 2000, p. 28, 38.

185 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O ‘Ethos’ Nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico, império

e imaginário social. Almanack braziliense, n. 02, p. 15, nov. 2005.

186 Em 1640, os vereadores do Rio de Janeiro obtiveram provisão para “que nomeem para almocateis senão

pessoas das mais nobres da terra e do governo della e que não fossem nem eles nem seus pais oficiais mecânicos” (Citado por FRAGOSO, João. A nobreza da República, Topoi, n. 1, p. 83, 2000).

187 Em Ponta Delgada (1641), os procuradores dos mestres solicitaram que os vereadores e o juiz de fora

observassem o direito de os representantes dos mestres votarem nas decisões da Câmara como os vereadores.

demais membros do Conselho;188 ou quando as eleições e os certames das rendas municipais eram realizados somente com a presença dos mestres e seus representantes.189

Na governança municipal, o costume da localidade imperava na definição se determinado cargo conferia enobrecimento, ou não, aos seus ocupantes. Os ofícios de almotacéis, procuradores e escrivães da Câmara não conferiam grau nenhum de nobreza a seus oficiais, segundo tratadista do Setecentos.190 Entretanto, em uma passada por vilas e cidades importantes do Império, pode-se verificar que, por exemplo, as funções de almotacés e escrivães foram insistentemente ocupadas por gente tratada como nobre nas comunidades, como vereadores, juízes ordinários e militares.191

O conflito latente entre os representantes dos ofícios manuais e as nobrezas ocasionava o debate sobre qualidades morais necessárias aos eleitos para governança municipal, mas também trazia a disputa sobre quais grupos conduziriam politicamente as matérias de ampla repercussão em setores populares, como aquelas de natureza fiscal. Em Salvador, por exemplo, uma espécie de Casa dos Doze teve existência pioneira em uma praça colonial de grande importância mercantil. Criada em 1641, a instituição tinha 12 mestres do corpo de oficiais mecânicos examinados da cidade, que deveriam eleger um juiz do povo e um escrivão “como nas mais cidades de Portugal e vilas notáveis se costuma em proveito dos povos”.192

Em 1710, as discussões sobre gastos públicos e despesas com a defesa de Salvador levaram o juiz do povo a enfrentar as autoridades locais e metropolitanas, particularmente, pela oposição ao acréscimo de $320 réis no alqueire de sal vendido à população para custear o

188 Em Setúbal, os mestres e o juiz do povo pediam que o voto deles tivesse peso igual aos dos demais oficiais da

Câmara, pois a prática corrente era o deles ser tomado como meio voto em fins do século XVII. Ver:

http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=103&id_obra=63&pagina=689.

189 Provisão de 1621 para não se realizarem eleições e arrendamento das rendas sem a assistência dos mestres.

Ver: http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=96&id_obra=63&pagina=226.

190 SAMPAIO, Antônio de Vilas Boas. Nobiliarquia portuguesa: tratado da nobreza hereditária, e política.

Lisboa: Oficina de Felippe de Souza Villela, 1708. p. 145.

191Para o caso de Évora, ver: FONSECA, Teresa. Absolutismo e municipalismo: Évora, 1750-1820. Lisboa:

Edições Colibri, 2002, p. 217-228.

192 O juiz do povo e os representantes dos mestres da Bahia solicitaram a equiparação dos seus direitos aos

conquistados pela matriz lisboeta em 1674. Ver: FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na América portuguesa... p. 88, nota 69.

soldo e a ração dos soldados, sendo que as despesas militares deveriam ser da fazenda régia. O saldo foi a amotinação da população contra o imposto na famosa Revolta dos Manetas. Os vereadores responsabilizaram o juiz do povo pela promoção do motim e aproveitaram a oportunidade para solicitar a extinção do cargo a Dom João V. Por decisão régia, os privilégios e a experiência política dos trabalhadores baianos chegavam ao fim em 1713.193 Assim, os senhores do senado de Salvador não tinham mais com quem disputar a legitimidade da fala pública engendrada sob a bandeira do bem comum.

A nossa narrativa parece reduzir-se ao dualismo nobre e não nobre, sendo o nobre aquele que “viver à lei da nobreza” e o mecânico o que vive no interesse, pois espera o jornal ou a soldada. E, pelo exposto até o momento, têm-se distintas e contrapostas concepções sobre aqueles que viviam do trabalho manual.194

Por um lado, a leitura corporativa da nobreza via a tópica aristotélica contra a presença daqueles que viviam do suor das próprias mãos no debate da coisa pública, pois não tinham virtudes morais e civis necessárias para isso. Negava-se ao corpo de homens do mundo do trabalho a validação das suas origens e experiências na disputa pelas mercês reais, já que as ocupações e os modos de viver dos homens de ofício não lhes conferiam virtude e honra.

No documento fabianogomesdasilva (páginas 88-102)