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Ofícios do calçado e do couro: sapateiros, tamanqueiros e seleiros

No documento fabianogomesdasilva (páginas 142-148)

CAPÍTULO 03 – “DE VADIOS SE FARÃO JORNALEIROS”: OS TRABALHADORES E

3.2 Ofícios do calçado e do couro: sapateiros, tamanqueiros e seleiros

Os sapateiros e os tamanqueiros eram os oficiais das várias castas de calçados, botas e chinelas de couro, de solas e de pau. Os sapateiros formaram o segundo maior conjunto de

314 No mundo do barroco seiscentista, as perucas estavam na condição de assumirem o posto de símbolo típico

do artificialismo aristocrático, segundo Johan Huizinga. Ver: HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 205.

315 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino. v. 2, fl. 47. A expressão guinguetas provavelmente

artífices com 162 oficiais licenciados e examinados, sendo que mais de 90% trabalharam sob a bandeira das autorizações temporárias da Câmara.316

O comportamento volátil observado na maioria dos alfaiates se repetiu entre os sapateiros. Foram 368 autorizações para um rol de 151 oficiais licenciados, sendo mais de uma centena de trabalhadores eventuais, como os oficiais Jose Borges da Silva (Furquim, 1739) e o pardo forro Domingos Ferreira Coutinho (Inficionado, 1744), que registraram licença para um semestre. No topo da ocupação encontrava-se um grupo de 43 sapateiros com permanência no mercado e o controle de dois terços das licenças mercantis, como os oficiais Manoel de Souza Ribeiro (Bacalhau, São Sebastião e São Caetano, 1738-1745) e Pantalião Coelho (Bento Rodrigues, 1736-1746).

Muito dessa postura volátil dos sapateiros podia decorrer de três condições recorrentemente impostas às gentes que viviam como jornaleiros. A precariedade material era uma fonte de incentivo às rápidas mudanças de ocupações e paragens para esses jornaleiros, mesmo sob o risco de serem classificados como vagabundos.317 A participação em mercados restritos ou controlados por grupos de negociantes e oficiais manuais representou outro fator que jogou centenas de trabalhadores para longe de uma vida longeva no labor de um único ofício na comunidade de adoção. E, não menos importante, a capacidade desigual dos sapateiros e alfaiates em ofertar e tomar crédito para financiarem o consumo das suas clientelas. Quase tudo se vendia a prazo na Sede ou nos arraiais. Podia mais quem financiava mais. O sapateiro João da Ponte Tavares, que tirou licença mercantil para Mariana, Furquim e São Caetano (1738 a 1746), financiava suas vendas por meio de bilhetes de crédito ao prazo

316 Foram localizados apenas 15 sapateiros examinados pelos juízes de ofício no período, sendo que três

trabalharam antes via licença mercantil: Alexandre de Abreu Pereira (licença em 1741 e carta em 1749) e Matias Nunes (licença em 1741 e carta em 1743).

317 Sobre a desclassificação social pela ausência de uma ocupação certa e constante, ver: SOUZA, Laura de

de seis meses para obras do seu ofício.318 Nem todos os sapateiros tinham estoque e crédito para suportarem diretamente uma clientela.

O comportamento volátil, caracterizado pela descontinuidade do ofício, bloqueava a especialização e o reconhecimento público no ofício? Nem sempre. O sapateiro Antônio dos Reis Lisboa tinha como estratégia de negócio a circulação pelo termo e a descontinuidade do ofício. Ele requereu, de forma descontínua, licenças mercantis para exercer o ofício de sapateiro em Sumidouro, Piranga, Cachoeira do Brumado e Mariana entre 1738 e 1750. Havia ano que ele passava um semestre em Sumidouro e outro em Piranga. Pouco depois, desaparecia dos registros e voltava ano seguinte para a Sede. Sempre intercalava o ofício na cidade com saídas do mundo laboral local, seja para negócios diversos, seja para atender demandas em vilas e em arraiais próximos. Nada disso parecia prejudicar o seu prestígio profissional perante os camaradas de ofício, pois as bancas de exame convocadas pelo juiz dos sapateiros de Mariana tiveram Lisboa como examinador em cinco processos em 1750 e 1751, apesar de ele não ter carta de exame (formalidade que buscou corrigir em 1755). Nesse caso, a migração e a descontinuidade foram respostas às condições conjunturais que se apresentavam para o agente e não bloquearam a formação e o reconhecimento do especialista.

A produção de calçados também contava com a confecção de mercadorias, como os tamancos. O tamanco levava madeira com salto no lugar da sola e tinha correias de couro para segurar os pés. Usualmente os sapateiros faziam esse tipo de mercadoria, pois o chamado calçado de pau era item comum no ofício deles. O surgimento de profissionais somente para tamancos pode sinalizar ampliação da clientela e maior distinção e requinte nos calçados. Em Mariana, tiveram dois oficiais registrados como tamanqueiros nas licenças até 1750. O

318 Tem-se uma ação de cobrança contra Caetano Furtado de Mendonça. Nela se extrai o recibo, que diz: “Devo

que pagarey a João da Potes de Tavares vinte e tres oytavas e catorze vintenis de ouro em po lipos capas de reçeber procedidas de obras q’ me fes do seo oficio de sapateyro a meu contento tanto em presso como em bondade a coal coantia pagarey a he dito ou a p..ra este me mostrar de fatura deste a seis mezes sem a isso por duvida alguma e pª a dª satisfassão obrigo a minha pessoa e mais bens parado q’ possuo e por asim ser verdade lhe passey este por mim feyto asinão hoje lavras vellas 4 de dezembro de 1748 Caetano Furtado de Mendonça” (AHCSM. Ação cível, 2º ofício, cód. 469, auto 15259, fl. 5).

tamanqueiro Thomé Antônio tinha boa clientela, pois se manteve atuante, apesar de algumas interrupções, na fabricação e comércio de tamancos nos arraiais de Passagem, Guarapiranga e Camargos, de 1735 a 1745. Outro foi Francisco Pimentel, que apenas passou o primeiro semestre de 1750 em São Caetano.

Os sapateiros estavam na fronteira dos ofícios, pois tanto pertenciam ao universo do vestuário quanto dos oficiais da sola, a exemplo dos seleiros. Os sapateiros e seleiros fabricavam e consertavam toda uma miríade de mercadorias em couro, como chinelos, sapatos, botas, selas, bruacas, cangalhas cabrestos, barriqueiras, rédeas, mantas, bainhas, cintas, laços, chicotes, cadeiras e bancos. Inclusive, muitas dessas peças envolviam outras matérias-primas e também outros ofícios. A esse exemplo, a equipagem básica de uma sela para montagem ou uma bruaca para transporte de cargas continha partes em couro, madeira e metal, o que quase sempre envolvia os oficiais curtidores, seleiros, marceneiros/carpinteiros, ferreiros e ourives (quando se tratava de peças feitas de prata ou ouro).319

O couro mais usado por tais oficiais era o de origem bovina e, em menor escala, os de caprinos – com os quais se produziam os calçados marroquins – e de animais silvestres como veados e lontras. Eles podiam ser curtidos (macio) ou crus (mais duro). O couro curtido, conhecido como sola, passava por processos de beneficiamento em solução com cascas (angico, açoita-cavalo, cajueiro, jurema e arbustos de mangues) ou cal em cochos nos curtumes, o que requeria copiosa água corrente. O couro cru demandava menos recursos, pois, grosso modo, bastava lavar, retirar os restos de carne (descarne), despelar (com cinzas ou navalha) e secar após o abate da rés.

A produção do couro era assunto dos trabalhadores curtidores. A ausência desse oficial nos registros de licenças e de exames de ofícios do termo de Mariana (1735-1800)

319 As esporas de prata já podiam ser contratadas no mercado da Vila do Carmo muito tempo antes da década de

1730. Em 1716, o ourives Tomaz Henriques do Reis vendeu uma espora de prata ao licenciado Manoel de Noronha por seis oitavas de ouro. Ver: TRINDADE, Cônego Raimundo. Ourives de Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX. Revista do IPHAN, n. 12, p. 143, 1955.

indica que o fornecimento do couro beneficiado advinha do comércio (longa distância e regional) ou estava cada vez mais internalizado como atividade meio nas oficinas dos sapateiros e seleiros locais.

Sabe-se que grande parte do couro comercializado nas Minas das primeiras décadas advinha de negócios com outros mercados coloniais (Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e Capitanias do Sul) e que foi crescente a participação do produto saído das fazendas e currais da própria Capitania de Minas Gerais. Os couros de boi, veado e lontra vinham para as zonas mineiras junto com as chamadas fazendas sertanejas, que incluíam sabão, sebo, carne-seca, sola, peixe seco e sal das salinas das margens do Rio São Francisco.320 Não era coisa de pouca mota, pois uma parte da extração do ouro (lavagem) precisava de enormes volumes de “couros peludos de boi”.321 Isso sempre pressionava os preços, quando não causava escassez de couro.322

Para as oficinas dos sapateiros e seleiros a situação era concorrer com a mineração ou passar a ter fabricação direta da sola e do couro cru, o que poderia ser feita pela aquisição de peles frescas dos açougueiros e de peças descartadas e sem pelagem após o uso dos mineiros.323 Entretanto, as relações e trocas não eram tranquilas como se depreende de velho adágio luso que diz: “Vão à Missa os Sapateiros, rogão a Deos que morrão os Carniceiros”.324

Os seleiros atendiam por diversos tipos de equipagens e acessórios destinados ao mundo da montaria e do transporte tanto para a economia urbana quanto para os setores vinculados à produção agromineral em Minas Gerais. Em Mariana, os seleiros estavam bem distribuídos

320 CARRARA, Angelo Alves. Minas e currais... p. 87.

321 ESCHWEGE, Wilhelm Lundwing von. Pluto brasiliensis. São Paulo/Belo Horizonte: Edusp/Itatiaia, 1979. v.

1, p. 167.

322 Os couros eram também alvos de atravessadores, sendo consumidos não só pelos mineiros mais bem

estabelecidos, mas também por negros faiscadores. Ver registro em: SILVA, Flávio Marcus. Subsistência e poder... p. 182.

323 Salvador Lucas Valadão aparece furtivamente como fiador do seleiro Manoel dos Anjos Araújo para Piranga

(1750). Acontece que esse Valadão e seus parentes assumiram forte participação direta e indireta nos negócios de gados para abastecimento da cidade e seu termo entre 1740 e 1780. O próprio Salvador Lucas Valadão aparece com cortes de carnes na Sede e no Sumidouro já em 1738. Esse pode ter sido um dos caminhos do couro para os sapateiros e seleiros de Mariana.

entre a Sede e os arraiais do termo, sendo 108 licenças para 37 oficiais entre 1737 e 1750. Pouca diferença ocorreu entre os dois espaços econômicos em termos de licenças e oficiais.

As licenças mercantis dos seleiros revelam de maneira acentuada a conformação de dois comportamentos distintos entre os oficiais mecânicos em Mariana. Um grupo com 60% dos oficiais (22) se caracterizou por uma participação efêmera e passageira na selaria, não permanecendo, em sua maioria, mais que um semestre no mercado. Era o caso de Manoel de Souza Teixeira, que administrava venda de molhados na Sede (1738, 1740, 1744) e tirou licença para seleiro no distrito de Antônio Pereira (1743). A se acreditar que ele era seleiro com domínio das artes, tem-se alguém que não se preocupava em retirar licença de seleiro, seja pela função de vendeiro, seja por ajustar serviços de selaria, em momentos vagos, com particulares. Já outro grupo, formado por 15% dos oficiais (6), teve presença acima de oito semestres e respondeu por quase 50% das licenças (52) emitidas no período. Ele era formado pelos seleiros Antônio Fernandes de Aguiar, João de Araújo Mota, Antônio Simões Alves, João Ferreira Faria, João de Oliveira da Silva, Antônio Gonçalves Pinheiro, sendo os três primeiros licenciados essencialmente para os arraiais e os últimos, para a Sede. Assim, a selaria em Mariana tinha uma base ampla e volátil e um topo restrito e mais resiliente às conjunturas dos negócios.

A participação esporádica de muitos e o grosso da demanda restrita a poucos oficiais licenciados não estimularam a criação da figura do juiz de ofício no caso dos seleiros de Mariana. As licenças mercantis atendiam bem às necessidades organizativas e fiscais. Pode-se contra-argumentar que, na documentação de cartas de exame da Câmara de Mariana (1737- 1806), encontra-se o registro da solitária carta de exame do seleiro Caetano Ribeiro da Silva, morador em São Sebastião, em 1750. Não foi propriamente um processo de exame de suas capacidades por juiz local, mas apenas o registro de carta emitida pelo Conselho de Vila Nova da Rainha do Caeté. Antes de registrar a carta, ele atuou com licença mercantil em São

Sebastião (1741), o que pode configurar um retorno à clientela inicial após incursões em outras paragens. Por sua vez, não se sabe, ainda, o motivo da grande ausência dos seleiros no rol de oficiais examinados em Mariana. Talvez fosse costume local não se terem juízes e escrivães para o ofício de seleiro. O seleiro Caetano foi a exceção que pode confirmar a regra, pois seu exame foi fruto de outra conjuntura.

No documento fabianogomesdasilva (páginas 142-148)