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O gomil de Saint-Hilaire: jornaleiros coloniais e artesãos provinciais

No documento fabianogomesdasilva (páginas 169-173)

CAPÍTULO 03 – “DE VADIOS SE FARÃO JORNALEIROS”: OS TRABALHADORES E

3.5 O gomil de Saint-Hilaire: jornaleiros coloniais e artesãos provinciais

O viajante francês Auguste de Saint-Hilaire se notabilizou pelo olhar apurado e seletivo das paisagens, pessoas, costumes e cotidiano da Província de Minas Gerais do século XIX. Ele também deixou várias notas sobre as habilidades dos artesãos mineiros, e merece destaque uma sobre os prateiros mineiros. Isso foi nas proximidades de Santa Bárbara, quando Saint-Hilaire buscou acomodação na fazenda do coronel Antônio Thomaz de Figueiredo Neves, parente do seu companheiro de viagem. À beira de ribeirão e cercada por

391 O valor da oitava nesse contrato era de 1$400 réis (AHCSM. Ação cível, 2º ofício, cód. 315, auto 7535, fls. 6

e 8). O oficial de pedreiro Alexandre e o empreiteiro Antônio Carlos Cardoso não possuem registro de licenças ou cartas de exames na documentação levantada.

392 AHCSM. Ação cível, 2º ofício, cód. 384, auto 10428, fl. 3.

393 Caso citado por CARRARA, Ângelo Alves. Paisagens rurais do termo de Mariana... op. cit., p. 34. O autor

terras outrora lavradas, a fazenda ficava em pequena elevação e seus cômodos não tinham pintura de destaque, mas “os apainelados, os portais e as próprias portas são pintadas à imitação de mármore; os tetos, feitos de tábuas, são igualmente pintados, mas de modo grosseiro, e representam grandes figuras e arabescos”. No mobiliário da morada do coronel, o viajante destacou os “vasos de prata admiravelmente trabalhada, e, entre outras peças, gomis de forma muito elegante”, que tinham sido “lavradas, já há muitos anos, na

povoação de Catas Altas”.394

O olhar afiado do viajante para as peças de prata já tinha ocorrido na passagem no próprio distrito de Catas Altas. Ele conta que foi servido em baixelas de prata em uma hospedaria da localidade, o que também ocorria em outras estalagens mineiras.395 Entretanto, seus elogios foram apenas para a prataria, pois, segundo Saint-Hilaire, os habitantes do distrito “não se entregam à agricultura; e quando um trabalho de algumas horas lhes rendeu

três ou quatro vinténs de ouro, vão descansar”.396 Assim, o belo gomil de Catas Altas

identificado pelo viajante francês mereceu registro para a posteridade, mas sem nota dos seus produtores.

Acontece que Saint-Hilaire mirou o que viu e acertou o que muitos ainda hoje desconsideram quando tratam das atividades artesanais no Oitocentos, pois Catas Altas e Mariana eram herdeiras de comunidades de mestres ourives e prateiros atuantes desde a década de 1730. Suas peças circulavam na Sede do Bispado e, também, em muitas regiões da Capitania. Por justiça, devemos destacar que as notas do viajante sobre as habilidades dos artesãos mineiros pululam em outras passagens do seu relato sobre a região no século XIX. Elas trazem fragmentos de memória ou elementos materiais de uma realidade que se conecta

394 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. São Paulo:

Companhia Editora Nacional, 1938. t. 1, p. 191.

395 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, p. 170. 396 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, p. 169-170.

com a experiência das primeiras gerações de oficiais manuais que atuaram nos arraiais e nas vilas de Minas Gerais.

No termo de Mariana (1710-1750), como tem-se reiterado, os oficiais mecânicos da época do ouro desempenharam importante função na identificação das variações e sutilezas de consumo em uma sociedade escravista e de antigo regime em expansão populacional e diversificação produtiva. Isso se tornou mais evidente com o papel na adaptação ou recriação de técnicas, materiais e bens acabados e semiacabados no mercado local. Nem tudo se remediou com os carregamentos dos tropeiros para as Minas, e muita coisa que chegava precisava ser modificada para satisfazer o consumidor final pelo braço qualificado local.397

Os vadios passaram a jornaleiros e ocuparam papéis em segmentos produtivos imprescindíveis ao viver e produzir no período colonial mineiro. Levando em consideração o crescimento no número de trabalhadores e as especialidades disponíveis no mercado, a diversificação da economia de Mariana caminhava em bom-tom desde 1730. Não precisou da decadência da atividade aurífera para se começar a produzir alguns bens e serviços outrora importados. Como bem lembrou Carla Almeida, “o que houve em Minas foi um processo de fortalecimento de um tipo de estrutura produtiva peculiar já existente desde os primórdios da colonização”.398

Ao se avançar nos estudos sobre o universo dos trabalhadores manuais livres e cativos em outros espaços econômicos nas Minas Setecentistas, pode-se, paulatinamente, compreender melhor tanto a internalização de capacidades técnicas nas unidades produtivas

397 Wilson Cano afirmou que as regiões mineiras receberam tudo de fora e absorveram pouco estímulo

econômico. A economia mineira não teria gerado internamente segmentos produtivos, particularmente por suprir suas necessidades de mercancias e meios produtivos pela importação. A noção de baixo nível de renda e a ausência de funções produtivas para homens e mulheres livres tiveram eco na leitura da desclassificação social interpretada por Laura de Melo e Souza (CANO, Wilson. A economia do ouro em Minas Gerais (século XVIII). Contexto, n. 3, São Paulo, p. 91, 95-96, 102, 105, 1977).

mineiras quanto o alvorecer de uma província artesã.399 Ademais, essa experiência dos homens de ofícios da primeira metade do século XVIII pode ser uma ponte necessária para a realização de parte da paisagem mineira do século XIX, como descrita por Douglas Libby.400

399 Sobre a expressiva participação dos ofícios manuais no século XIX, ver GODOY, Marcelo Magalhães. Uma

província artesã: O universo social, econômico e demográfico dos artífices da Minas do oitocentos. Disponível em: http://www.abep.nepo.unicamp.br/docs/anais/pdf/2000/Todos/hist13_5.pdf.

400 Segundo Douglas Libby, “a paisagem mineira era repleta de lares voltados para a produção doméstica de fios

e panos, de oficinas artesanais de todo o tipo, de pequenas e médias manufaturas e até de verdadeiras fábricas de ouro e tecidos. São os componentes da indústria mineira do século XIX, indústria essa entendida na sua acepção mais ampla, isto é, como um conjunto de atividades produtivas visando à transformação de matérias-primas em artigos acabados” (LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma Economia Escravista... p. 14).

CAPÍTULO04–ASGARANTIASEOSNEGÓCIOSNAECONOMIACOLONIAL:

No documento fabianogomesdasilva (páginas 169-173)