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Rendeiros das rendas camarárias: ofício, impostos e informação

No documento fabianogomesdasilva (páginas 74-80)

CAPÍTULO 01 – O MERCADO DE MARIANA (1711-1750)

1.4 Rendeiros das rendas camarárias: ofício, impostos e informação

As rendas da Câmara de Mariana evidenciam uma configuração mais complexa do regulado mercado da municipalidade. Primeiro, uma crescente capacidade de participar indiretamente da colheita do tributo do ouro e da agropecuária por meio da regulação e fiscalização do comércio e dos ofícios manuais do termo. Segundo, as contínuas arrematações das rendas camarárias para os chamados rendeiros colocaram a operacionalização cotidiana de parte significativa da gestão camarária sobre lojistas, vendeiros, marchantes, mascates, oficiais manuais, negras de tabuleiro nas mãos e interesses de agentes privados.138

135 Os atravessadores especulavam com o preço e com o desvio de mercadorias para mercados e clientes menos

fiscalizados. Ver: CHAVES, Cláudia M. Graças; ANDRADE, Pablo de Oliveira. O comércio em Mariana: um estudo das posturas da Câmara no século XVIII. In: CHAVES, Cláudia M. Graças; PIRES, Maria do Carmo; MAGALHÃES, Sônia Maria de. Casa de Vereança de Mariana: 300 anos de história da Câmara Municipal. Ouro Preto: Editora da UFOP, 2008, p. 82.

136 Sobre os altos percentuais de abandono da atividade mercantil já no primeiro ano de exercício de lojistas,

vendeiros e negras de tabuleiro em Mariana entre 1733-1755, ver PUFF, Flávio. Os pequenos agentes mercantis... p. 81-90.

137 BOSCHI, Caio C. Apontamentos para o estudo da economia, da sociedade e do trabalho na Minas colonial.

Análise & Conjuntura, Belo Horizonte, v. 4, n. 2 e 3, p. 57, maio/dez. 1989. Para o caso de Mariana, vamos analisar essa situação com mais vagar adiante.

138 A própria Coroa via esses contratos com desconfiança quando se tratava daqueles relacionados ao

abastecimento como a renda das meias patacas. Esses rendeiros eram acusados de causarem prejuízos ao povo e agirem no interesse particular. Ver carta de Dom João V ao governador D. Lourenço de Almeida em

O aumento no universo de comerciantes, mercadores e oficiais mecânicos portadores de licenças conferiu uma base tributária disputada pelos rendeiros por meio das outorgas anuais dos contratos das rendas. Apesar dos riscos legais e financeiros presentes nas rendas, os rendeiros não faltavam nos melhores contratos. Mas, afinal de contas, que função cumpre a figura do rendeiro nas rendas e no mercado?

Em papel que servia de fonte de prestígio diante do corpo político local, o rendeiro era, primeiramente, servidor corresponsável pela fiscalização e pelo controle do pequeno comércio juntamente com os demais oficiais e funcionários da Câmara.139 Para arrematar os contratos e pagá-los, os rendeiros tiveram que viabilizar associações mercantis com outros membros do corpo de homens de negócios (mineiros e governança), com lojistas, vendeiros, marchantes e oficiais manuais mais destacados na comunidade.

Nessa direção, os rendeiros e associados disputavam o acesso a uma porção dos recursos extraídos por meio da regulação camarária e das informações sobre negócios e pessoas que atuavam no mercado. Se lembrarmos que impostos e taxas se ajustavam preferencialmente com dinheiro contado (à vista), as rendas drenavam faixa do ouro e da moeda disponível localmente. Caso fosse acertado a prazo, realizava-se operações de crédito com promessa de pagamento futuro em favor dos rendeiros e seus sócios. Além disso, as rendas forneciam a situação anual de boa parte com lojistas, vendeiros e açougueiros do mercado. Saber quais os autorizados a cortarem carne na vila podia ser útil para o rendeiro das meias patacas, seja pela fiscalização, seja com vista a acerto em outros negócios envolvendo gados recebidos como pagamentos dos condutores de gado.140

FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócios... p. 215; Outras situações, ver: SILVA, Flávio Marcus. Subsistência e poder... p. 119-121.

139 SILVA, Flávio Marcus. Subsistência e poder... p. 174. O autor só relaciona rendeiros/contratadores das

aferições e do ver/inspeção. Na estrutura de fiscalização, tem-se o almotacé, escrivão e meirinho da almotaçaria, alcaide e juízes ordinários, que julgavam os casos de infrações inicialmente.

140 Para Vila Rica, Flávio Marcus Silva toma o almotacé como o agente da informação na rede governativa para

responder às necessidades da política de abastecimento regular da vila (SILVA, Flávio Marcus. Subsistência e poder... p. 213). Podem-se acrescentar os rendeiros e seus associados para o caso da Vila do Carmo.

A Câmara de Mariana se tornou assim fonte de prestígio, recursos e negócios mais próxima para homens do comércio e dos ofícios mecânicos assentados na comunidade. Os cargos de rendeiros das rendas e outros ofícios, como escrivão da câmara, tesoureiro, porteiros, almotacés (oficiais e escrivães), alcaides e tabeliões públicos, podiam ser ocupados por gente vinda desse universo. Por exemplo, em 1716, o comerciante Manoel do Rego Tinoco, natural de São João, Bispado de Lamego, negociava aguardentes do reino e de cana, vinhos, sal e vinagre na Vila. A venda foi passada para a administração de sua escrava Mariana do Rosário em 1718, pois Tinoco desempenhou os cargos de alcaide e porteiro na Câmara.141 Não era bom procedimento dividir o tempo das coisas da república com as mercancias. Assim o fez. As vendas ficaram com as escravas, e ele se dedicou aos negócios maiores como ser porteiro, alcaide, solicitador de causas, fiador (licenças mercantis, rendas camarárias) e arrematante de obras públicas nos 30 anos seguintes.142

A gente mercadora, inicialmente forasteira, não tardou a firmar laços mais duradouros entre os seus ou com os primeiros moradores. O próprio Manoel do Rego Tinoco se casou com Tereza Maria de Jesus, filha de Felix Dias de Oliveira, na Sede, em 1734. O seu sogro era figura notória nos assuntos da Câmara e do comércio, pois, na década de 1720, tinha desempenhado as funções de: rendeiro das aferições dos pesos e medidas (1721), licenciado e mestre de capela (1721-1724) e tabelião público (1724-1725). Assim, o casamento parece coroar a trajetória de Tinoco e, provavelmente, viabilizar a continuidade dos negócios familiares.

141 AHCMM. Acórdãos (1711-1715), Livro 664 [DVD 105], imagem 84. Ele provavelmente era parente de João

do Rego Tinoco, alcaide da Câmara. O porteiro era servidor remunerado encarregado de: apregoar as deliberações camarárias; leiloar as rendas, obras, serviços e bens da municipalidade; executar as cartas de sentenças; cobrar os foros atrasados dos moradores; realizar diligências menores e ocasionais.

142 No pagamento dos Reais Quintos de 1725, tem uma venda lançada no nome dele, mas sem inferência se era

sob a responsabilidade de seus cativos (AHCMM. Livro dos Quintos (1725), cód. 150 [DVD 16]). Na década de 1730, Manoel do Rego Tinoco participou quase sempre como fiador nas rendas da Câmara, arrematações de obras e licenças mercantis. A operação com vendas não parou. A forra Luzia do Rego Tinoco administrava venda de molhados com fianças de Manoel do Rego Tinoco, seu antigo senhor, e de José de Almeida Barreto entre 1737 e 1740. Ele pode ter continuado como sócio de Luzia. Entre 1740 e 1746, a cativa Antônia Rego administrava para ele vendas em Antônio Pereira e Passagem.

As estratégias de arrematar impostos e assumir cargos na governança não figuraram como originalidade dos rendeiros de Mariana. Guardadas as devidas proporções, os certames das rendas reais (contratos e monopólios régios) também tinham grande importância para o mundo dos homens de negócios de grosso trato, pois serviram de fonte de capital, enriquecimento e diferenciação do corpo mercantil mais bem estabelecido nas grandes praças do Império português. Os arrematantes privados dessas rendas reais eram os chamados contratadores, que advinham dos membros da primeira ordem entre os negociantes.143 Sabe- se, atualmente, que, assentados em praça colonial ou metropolitana, os contratadores constituíram sociedades mercantis temporárias durante a vigência das licitações, estendidas no tempo e espaço e a outros negócios por meio das ligações de parentesco, compadrio e clientela.144

Também os cargos e ofícios locais e no oficialato régio serviram aos interesses dos grandes negociantes reinóis e coloniais. A historiadora mineira Júnia Furtado relacionou os cargos de governança às estratégias das casas comerciais metropolitanas na economia mineira da primeira metade do século XVIII. Os cargos arrematados para os representantes de importante negociante lisboeta serviam como fonte de prestígio e de recurso inicial para a montagem do negócio principal: a exportação de mercancias para as vilas do ouro. A preocupação de Furtado era com a interiorização dos interesses metropolitanos nos mercados

143 Segundo Jorge Pedreira, as arrematações dos contratos régios funcionaram como a principal fonte de

acumulação de capital e diferenciação para o corpo de negociante da Praça de Lisboa no século XVIII. Os lucros eram copiosos, mas poucos tinham cabedal para participar de certames envolvendo valores de dezenas a centenas de contos de réis. Isso provocou “certa discriminação no interior do grupo, e se desenvolvem certas tendências para formação de oligarquias de contratadores” (PEDREIRA, Jorge Miguel Viana. Os homens de negócio da praça de Lisboa de Pombal ao vintismo (1755-1822). p. 464).

144 Além do estudo pioneiro de Jorge Pedreira sobre os contratadores citado anteriormente, têm-se produzido

estudos monográficos sobre essas personagens na América portuguesa. Ver: OSÓRIO, Helen. As elites econômicas e a arrematação dos contratos reais: o exemplo do Rio Grande do Sul..., p. 107-138; ARAÚJO, Luís Antônio Silva. Negociantes portugueses: as redes nas arrematações de direitos e tributos régios. In: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; OLIVEIRA, Mônica R. Nomes e números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006, p. 153-170.

de Minas Gerais, sendo o controle do endividamento um dos elementos nesse enraizamento do poder régio e, também, das redes mercantis reinóis.145

As garantias e as redes mercantis locais. O fato de as rendas municipais trazerem valores muito inferiores aos das rendas reais não diz muito sobre a importância delas na sedimentação de arranjos produtores de garantias e crédito.146 Em Mariana, por exemplo, os arrematantes (rendeiros e associados) das rendas da Câmara cumpriram papel importante no enraizamento do circuito mercantil, pois ofertavam garantias, créditos e informações aos negócios, bem como o financiamento do consumo para parcela da sociedade de Mariana.

Assim, acredita-se que o rendeiro seria um agente local com capacidade de movimentar capitais e garantias para montagem de empresas para arrematações de rendas públicas de monta na sua comunidade mercantil. Ele pareceu ter posição estratégica na captura de parte da coleta de impostos, taxas e, como se verá mais adiante, também no financiamento do consumo, na oferta de crédito e na segurança das garantias pessoais fartamente manuseadas pelo mercado em Mariana. A se confirmar essa impressão dos rendeiros e seus sócios, teremos o registro de um ilustre desconhecido dos estudos sobre comércio, crédito e contratadores na economia colonial mineira.

145 “A Coroa utilizou do mecanismo de endividamento em seu favor. Os créditos que os comerciantes

acumulavam permitiam que grande parte do ouro extraído nas Minas Gerais se transferisse para as mãos dos comerciantes, sendo mais facilmente tributada. Em 1730, a crença na eficácia desse sistema fez com que a Coroa proibisse a entrada de moedas de ouro nas Minas, fazendo com que os comerciantes recebessem seus créditos em ouro. Uma vez nos registros de saída da Capitania eram obrigados a trocar o ouro por moeda” (FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócios... p. 216). Isso implica aceitar que: a) o ouro em pó era moeda corrente nas trocas locais e também nos pagamentos das compras realizadas com as praças de fora da Capitania; b) a tributação era via de acesso à parte da colheita do ouro; c) o endividamento não se relaciona, necessariamente, com escassez ou abundância de numerário, mas com a organização e hierarquização do mercado de crédito, sendo a moeda/ouro drenado primeiramente para pagamento de impostos e taxas e, depois, para saldar contas com agentes externos à comunidade.

146 As receitas da Câmara de Mariana chegaram a 460 contos de réis (1712 a 1800) com rendimento anual

variando na faixa de 4 a 6 contos de réis. Esse foi o montante pago para exercer os contratos, e não o valor arrecadado ou financiado pelo rendeiro aos mercadores e oficiais manuais da comunidade. Os contratos régios variavam significativamente em função da importância econômica de cada base tributária envolvida. A arrematação do contrato das “Passagens para Goiás” (1753-1756) se fez por 1:095$000 e das “Passagens do Rio das Mortes” (1754-1756) por 17:400$000. Nas Minas, os contratos mais volumosos podiam chegar a 691:200$000 réis como as “Entradas das Minas” (1745-1748), o que supera em muito o valor envolvido em quase 100 anos de rendas camarárias. Ver: ARAÚJO, Luís Antônio Silva. Negociantes portugueses: as redes nas arrematações de direitos e tributos régios. In: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; OLIVEIRA, Mônica Ribeiro. Nomes e números... p. 161, 164.

Nos próximos capítulos, vamos avançar sobre o mundo dos rendeiros, lojistas e dos ofícios manuais livres. O propósito é compreender esses personagens em papéis decisivos para a realização do mercado local e da própria rede mercantil que conectava a Vila aos mercados colonial e atlântico, pois, em muitos contextos, foram eles que cumpriam inicialmente as funções de: a) identificar as variações e as sutilezas nas necessidades de uma sociedade escravista e de Antigo Regime em expansão populacional e diversificação produtiva; b) adaptar ou recriar técnicas, materiais e bens acabados e semiacabados (ferro, tecido, sola); c) oferecer garantias, crédito e financiamento para consumidores e prestadores de serviço locais. A nossa primeira aba será aquela que diz respeito aos homens livres de ofícios numa sociedade escravista.

CAPÍTULO02–OMUNDODOTRABALHONOANTIGOREGIMEPORTUGUÊS:

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