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3. O PAPEL DAS MULHERES NA SOCIEDADE EGÍPCIA

3.2 MULHERES DA REALEZA

Com relação às consortes reais, de acordo com Barbara Lesko, as tumbas de rainhas da primeira dinastia indicam que as mulheres da família real gozavam de considerável poder e respeito.72 Porém, o status da mulher da realeza era definido no início da história egípcia em referência ao rei através de títulos como “mãe do rei” e “esposa do rei”, por exemplo. Ainda segundo Lesko73, a importância da mulher da realeza estaria no fato de que três deusas foram vitais nos dois principais mitos cosmogônicos existentes no Egito, já que Ísis e Háthor foram mães (em cosmogonias diferentes) de Hórus – deus pelo qual o faraó era representado em vida – e Nut sua avó. Assim, ao longo do tempo as três deusas foram honradas como um antepassado materno do rei divino.

Patricia Springboarg, indo ao encontro dessas ideias, acredita que o chamado ‘princípio feminino’ foi usado para validar a monarquia, como, por exemplo, na figura de Ísis no mito do assassinato do deus Osíris e na posterior ascensão de seu filho Hórus como faraó.74 Esse seria um dos exemplos que identificaria o poder gerador e regenerador da mulher.75

Essa conexão das mulheres da realeza com o âmbito divino também é aceita por Gay Robins que, ao descrever os vários tipos de insígnias utilizadas pelas rainhas, estabelece uma ligação entre o enfeite de cabeça na forma de Uraeus (cobra real) com várias divindades, como a deusa cobra Wadjyt, o deus solar Rá e com a deusa Hathor identificada como olho de Rá (que protegeria o rei e os deuses dos inimigos). Sendo o Uraeus uma marca característica dos faraós, a sua utilização como paramento das consortes estabeleceria uma conexão das mesmas com os reis e com a realeza.76

71Ibid., p. 208

72 LESKO, Barbara. The Remarkable women of Ancient Egypt. Providence: Scribe Publications, 1987, p.1. 73 Ibid., p. 2.

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Mito no qual a deusa Ísis, após conceber o deus Hórus, o protegeu, mantendo-o escondido até que ele pudesse lutar contra o deus Seth para vingar o assassinato do pai, deus Osíris, e retomar o trono do Egito que era seu por herança, mas que havia sido usurpado por Seth.

75 SPRINGBORG, P. Royal Persons Patriarchal Monarchy and the Feminine Principle. London: Unwin Hyman,1990, 342 p.p. 142.

A noção de realeza feminina era complementar a desempenhada pelo rei e não restam dúvidas que a rainha era extremamente importante em alguns rituais, atuando como contraponto do faraó. Um exemplo é cargo sacerdotal hemet-netjer ou “Esposa do deus” que durante a XVIII dinastia ganhou proeminência dentre os títulos portados pelas rainhas.77 O título sugere que sua portadora estaria a serviço do deus Amon atuando como sua esposa, sem, portanto, se casar com um “marido humano”. Porém, ao levarmos em conta que as portadoras eram rainhas sabemos que esta suposta regra era irrelevante na atuação cerimonial no templo. O título “Mão do deus” usado algumas vezes em conjunto com o de “Esposa do deus” enfatizava o conteúdo sexual de ambos, já que o primeiro seria uma referência a mão do deus criador que se masturbou, formando o primeiro casal divino, Shu e Tefnut. Porém, não sabemos a implicação deste conteúdo no ritual templário. O que pode ser dito é que “Esposa do deus” constituía um exercício efetivo do culto de Amon e que a rainha que o portava encarnava o princípio feminino, próprio a manter os ardores criativos do deus.78

Outro aspecto que talvez explicasse o papel de destaque das mulheres da realeza seria a importância maior que parece ter tido o casamento com uma princesa real para um homem que aspirasse ao trono do que o seu próprio nascimento. Muitos estudiosos defendem que as mulheres, além de abonarem o direito ao trono, também garantiriam a característica divina atribuída aos faraós.79 A ideia de que o direito ao trono seria transmitido por uma linhagem feminina da família real, a chamada “teoria da herdeira”, é refutada por Gay Robins.80 De acordo com Robins se essa teoria estivesse correta, seria possível traçar uma linha de descendência de mulheres reais, o que, segundo ela, é inviável. A utilização pelas mulheres de nascimento real do título “filha do rei” não constitui uma prova para a XVIIIª dinastia, já que se atestam casos de mulheres de sangue não-real a quem era concedido esse título com o intuito de aumentar-lhes o status. Também não deve ser ignorado o fato de as esposas principais de Thutmés III (1479-1425 a.C.), Amenhotep II (1427-1400 a.C.) e Amenhotep III (1390-1352 a.C.) serem de origem não real.

Alguns casamentos da XVIII e XIX dinastias parecem ter sido feitos para estabelecer alianças diplomáticas. Em contrapartida, um documento do reinado de Amenhotep III mostra que princesas egípcias não eram dadas em casamento a outros governantes. Apesar da grande importância desses casamentos, as mulheres tinham pouco acesso às negociações

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A importância do título e sua utilização pelas rainhas da XVIII dinastia, incluindo Hatshepsut, serão tratadas com maior profundidade no próximo capítulo.

78 Id., 1996, p. 161-8

79 TEETER, E. Hatshepsut. KMT: A Modern Journal of Ancient Egypt. San Francisco, KMT Communications, v. 1, n. 1, p. 2-63, Spring 1990, p.6

diplomáticas e só eram importantes na medida em que, através da união com seus parceiros, proporcionavam alianças internacionais.

Apesar do importante papel desempenhado pela rainha em algumas esferas, os exemplos apresentados demonstram que a realeza em si não era um ofício aberto às mulheres. O papel das mulheres do âmbito real era completar o aspecto divino da realeza masculina. Tradicionalmente, a rainha representava o princípio feminino do universo através da qual o rei varão podia renovar a si mesmo, ou seja, elas proporcionavam herdeiros do trono em potencial. Esses aspectos retornarão nos próximos capítulos quando analisaremos o aumento da importância das consortes reais no início da XVIII dinastia.