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PODER E CENTRALIZAÇÃO: O INÍCIO DE UMA DINASTIA E A EMERGÊNCIA DO REINADO DA MULHER-FARAÓ

3. O PAPEL DAS RAINHAS NA XVIII DINASTIA

3.1 O TÍTULO DE ESPOSA DO DEUS AMON E AS RAINHAS NA XVIII DINASTIA

Um dos exemplos mais significativos do aumento de status das rainhas pode ser encontrado no título sacerdotal “Esposa do deus”. As menções mais antigas a ele são provenientes do Reino Médio, em que o mesmo aparece seguido por nomes de mulheres não- reais. Contudo, nessas inscrições o título não era acompanhado do nome do deus a que fazia referência, o que torna incerta a afirmação de que fosse originalmente uma referência ao deus Amon.

Outros títulos relacionados ao de “Esposa do deus” podem ser encontrados ainda mais cedo. No Primeiro Período Intermediário (2150-2040 a.C.), a esposa do deus Min é conhecida e do Reino Antigo em diante um título relacionado a uma adoradora divina do deus, aparece no culto a outros deuses.

Na XVIII dinastia o título de “Esposa do deus” passa a ser usado por mulheres da família real, fazendo referência ao deus Amon, ou seja, a designação estabelecia uma estreita ligação entre suas portadoras e o deus Amon, conseqüentemente também com a cidade de Tebas. Na maioria das inscrições o que aparece é somente o termo hemet –netjer, ou seja, “Esposa do deus”. Diversas cenas mostram a “Esposa do deus” como uma sacerdotisa dentro do contexto do ritual templário e ao lado de sacerdotes masculinos. As vestimentas presentes nas cenas aludem àquelas usadas por sacerdotisas no Reino Médio e não têm relação com

106 TYLDESLEY, op. cit., p. 47 107ROBINS, op. cit., 1996, p. 46.

insígnias usadas por rainhas ou filhas reais, demonstrando que estas eram, antes de tudo, oficiantes do culto.108

Para Patricia Springboard, o título tinha referências complexas, pois além da inovação desenvolvida pela família tebana no poder, através da qual a esposa principal teria sido divinamente “fertilizada” pelo deus criador Amon, a “Esposa do deus” estava ligada a uma antiga doutrina que considerava a esposa do chefe real como a única capaz de dar a luz a uma criança de uma linhagem de sangue real (casamento consanguíneos).109

Apesar das imagens demonstrarem uma ênfase no aspecto cultual, as fontes em que consta o título, provenientes dos primeiros cem anos da XVIII dinastia, pouco esclarecem sobre a função precisa a ser desempenhada pelas portadoras. Sabe-se que economicamente a “Esposa do deus” tinha um domínio próprio formado por terras e administradores, o que dava a esta função um poder efetivo.

A primeira “Esposa do deus” da realeza foi Ahmes-Nefertari, esposa do faraó Ahmés I, que sobreviveu, inclusive, ao reinado de seu filho. Textos indicam que Ahmes-Nefertari participou de alguns assuntos de Estado, ajudando nos projetos de construção de seu marido e sendo muito ativa religiosamente. Não pode ser afirmado que ela atuou como regente durante a menoridade de seu filho, o faraó Amenhotep I (1525-1504 a.C.), mas sabe-se que tanto durante o reinado deste governante como o do faraó seguinte, Thutmés I (1504-1492 a.C.), a ela eram concedidas grandes honras. Após sua morte foi deificada junto com seu filho e seu culto durou todo o Reino Novo, principalmente na região de Deir el-Medinah.

O documento conhecido como Estela da doação (figura 7), presente no templo de Amon em Karnak, confere pela primeira vez o título de Esposa do deus a Ahmes-Nefertari e suas herdeiras. Na imagem que acompanha as inscrições temos a representação do faraó fazendo uma oferenda de pão branco a Amon que retribui oferecendo às narinas do rei os símbolos da vida e da estabilidade. Ao lado do soberano o herdeiro é representado em tamanho menor. A rainha é representada com a uma coroa típica da deusa Tefnut, divindade identificada com a umidade, e apoia a mão esquerda sobre o ombro do marido. A inscrição principal relacionada às representações refere-se a rainha:

A filha real, irmã real, esposa do deus, grande esposa real – todas as coisas ordenadas (lit. ditas) [por ela] (é) aquilo que é executado (it. aquilo feito)

108

ibid., p. 7

para ela no (lit. sobre o) Alto e no Baixo Egito, Ahmes-Nefertari (=O deus da Lua a gerou; [É] belo o relativo a ela), que ela viva! 110

Outras inscrições presentes na estela mostram que a cena insere-se no contexto em que a rainha renuncia ao cargo de Segundo Profeta de Amon, título sacerdotal importante, em troca de bens. O rei teria oferecido por sua renúncia os meios necessários para implantar o ofício de “Esposa do deus”, que seria garantido a ela e suas herdeiras. Portanto, ser sua herdeira garantia legitimidade e poder, o que talvez explique a utilização dos títulos de “Herdeira” e “Esposa do deus” pelas rainhas na XVIII dinastia. Em resumo, “o matrimônio

da sacerdotisa com o deus perpetuava a ideia do mito cósmico, mantinha relações com a monarquia divina e legitimava o faraó”.111

Outras fontes do período mostram que nos momentos em que Ahmes-Nefertari era representada como “Esposa do deus” nenhum outro título real aparecia. Em contrapartida, ao ser representada com os títulos e as insígnias de rainha, o termo hemet-nejter estava presente, como no caso da inscrição mostrada. Gay Robins salienta que normalmente o título que antecede o nome é o mais importante e no caso das rainhas, o comum era o uso dos títulos de “mãe do rei” ou “esposa principal do rei”. Com exceção de Hatshepsut, nenhuma outra consorte usou somente “Esposa do deus”, indicando talvez que, para Ahmes-Nefertari, este título era tão importante quanto o de rainha.112

A portadora seguinte do título foi Meritamon, filha de Ahmes-Nefertari, esposa e irmã do faraó Amenhotep I. Sabe-se pouco sobre ela, apenas que não deixou herdeiros para o faraó, que acabou sucedido por um general de meia idade – Thutmés I.

A mãe de Thutmés foi uma mulher de sangue não real e, por não ter sido rainha, só aparecia em inscrições com o título de “Mãe do rei”. Thumés casou-se com Ahmés, cuja origem gera discordância por parte dos especialistas. Embora Ahmés apareça com o título de “Irmã do rei” (sent nesu), não há inscrições com o título de filha do rei (Sat nesu), o que indicaria que esta fosse irmã ou meia-irmã de Thutmés I.113

Após Ahmes-Nefertari, a portadora mais importante da designação “Esposa do deus” foi Hatshepsut que, como veremos posteriormente, através de sua utilização reiterou não apenas sua posição como rainha, como também garantiu a proeminência de sua filha, Neferura, anos depois.

110 ALDRED, Cyril. Akhenaten: King of Egypt. London: Thames and Hudson, 1988, p. 137. Tradução: Ciro Flamarion Cardoso

111

SOUZA, op.cit., p. 32

112 ROBINS, Gay. op.cit., 1993, p. 73. 113

Figura 7

Estela da doação do título “Esposa do deus” para Ahmés-Nefertari

Referência:

ALDRED, Cyril. Akhenaten: King of Egypt. London: Thames and Hudson, 1988, p. 137.