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PODER E CENTRALIZAÇÃO: O INÍCIO DE UMA DINASTIA E A EMERGÊNCIA DO REINADO DA MULHER-FARAÓ

3. O PAPEL DAS RAINHAS NA XVIII DINASTIA

3.2 RAINHAS REGENTES

De acordo com as estruturas religiosas, a realeza feminina era complementar a realeza masculina e a interconexão entre elas demonstra que uma não existiria sem a outra, já que em um dos mitos no qual estava assentada a monarquia divina observamos o forte papel desempenhado pelo deus Osíris, primeiro faraó, e por sua consorte, a deusa Ísis.114 Dessa forma, o aumento da importância das consortes reais na primeira metade da XVIII dinastia, teoricamente poderia abrir a possibilidade de alguma rainha almejar vôos maiores, como o trono do Reino das Duas Terras. Sem dúvida, o horror egípcio à mudança, vista como sinônimo de caos, e a crença em maat, que incluía o dever divino de um faraó no trono, personificação do deus Hórus, e os interesses envolvidos nos processos de sucessão dificultariam a questão. Tendo em vistas esses aspectos, qual seria a real possibilidade de uma mulher alcançar o poder como líder do Egito?

114 ROBINS, op. cit., 1996, p. 45

Rotineiramente a mulher egípcia tinha um papel secundário na sociedade em relação ao homem, mas em momentos decisivos era aceitável e até encorajado que ela agisse para garantir os direitos do marido ou do filho. Dentro dessa lógica, uma regência feminina era aceita, ou seja, vários são os casos na história do Egito faraônico em que rainhas comandaramo país como regentes, por períodos curtos, para salvaguardar a posição de seus familiares. Para Betsy M. Bryan a possibilidade, mesmo que infreqüente e ideologicamente inconsistente, de uma mulher assumir o trono era uma clara e significativa distinção da sociedade egípcia.115

A explicação mais coerente para a rainha, e não um homem da família, assumir a regência em períodos delicados de sucessão seria a de que tal ato preservaria o trono do legítimo herdeiro, já que afastaria do trono outras figuras masculinas da família rel. Para Joyce Tyldesley, o fato dos príncipes aparecerem com menor freqüência que as princesas e do título “Filho do Rei” ser atestado na XVIII dinastia enquanto o mesmo não ocorre com o de “Irmão do Rei”, poderia indicar que, quando um novo rei ascendia, seus irmãos, apesar de respeitados, perdiam o direito à realeza, mesmo eventual. Caso essa restrição seja verdadeira, para a autora, essa poderia ser uma forma de reduzir o número de indivíduos com potencial para reivindicar o trono.116

Religiosamente havia um precedente para a escolha da rainha como regente do herdeiro e como garantidora de seus direitos: o mito de Osíris, Ísis e Hórus. A deusa Ísis, após o assassinato de seu marido (o deus Osíris) pelo irmão (o deus Seth), que almejava o trono do Egito, conseguiu, através da magia, trazer seu consorte de volta e engravidar dele. Assim, com o nascimento de seu filho, o deus Hórus, Ísis o escondeu até que o mesmo crescesse e pudesse resgatar o trono que era seu por direito, vingando o assassinato de seu pai.

Embora a regência fosse um papel aceitável para as consortes reais em determinadas circunstâncias, o mesmo não pode ser afirmado da possibilidade de uma mulher prolongar seu poder ou se autoproclamar faraó, pois alguns casos indicam que as ocupantes do trono não tinham ligação direta com herdeiros. Além de Hatshepsut, outros exemplos de mulheres que governaram o Egito extrapolando suas posições como regente podem ser atestados. Segundo Bryan, a análise dessas exceções sugere que a emergência de mulheres como governantes era,

115

BRYAN, Betsy M. In women good and bad fortune are on earth. In: CAPEL, Anne K. & MARKOE, Glenn E. (ed). Mistress of the House, Mistress of Heaven. Women in Ancient Egypt. New York, Hudson Hills Press, 1996, 237 p. p. 25.

116 TYLDESLEY, op. cit., p. 56. Cf. ROTH, Ann Macy. Models of authority: Hatshepsut’s predecessors in power. In: ROEHRIG, C. (ed.). Hatshepsut from queen to pharaoh. The Metropolitan Museum of Art. New York: Yale University Press, 2005, 340 p.p. 10.

na verdade, uma última tentativa de linhas dinásticas decadentes de se manterem no poder. Assim, situações extremas superavam as restrições ao gênero feminino.117

Um exemplo significativo, que em muitos aspectos estabelece um paralelo com o reinado de Hatshepsut, pode ser encontrado em fins da XII dinastia. Como dito anteriormente, Sebekneferu ocupou o trono do Egito após a morte de seu irmão e esposo Amenemhat IV. Ela foi a primeira mulher a utilizar todos os títulos de rei e alguns estudiosos chegam a defender que a mesma foi co-regente do faraó anterior. Sabe-se que ela construiu monumentos em seu nome na margem oriental do Nilo. Na estatuária, a utilização em sua representação do toucado nemes, um paramento real, parece não ter tido precedentes até então (figura 8).

As poucas fontes do período não parecem indicar uma oposição ao seu reinado, mas é preciso ter em mente que mesmo se um embate tivesse acontecido, dificilmente seria explicitado nas produções que almejavam, antes de tudo, a reprodução da ordem do mundo.118

A brevidade do reinado de Sebekneferu traz à tona a possibilidade de uma pessoa ter tirado vantagem da circunstância não usual na qual ela emergiu. Contudo, vários autores apontam que a presença de seu nome em listas de reis, como a de Turin e a de Manethon, diferentemente do que aconteceu com Hatshepsut, demonstra o reconhecimento do governo de uma mulher.

Figura 8

Fragmento de estátua de Sebekneferu usando o toucado nemes (Louvre E27135)

Referência: www.wikipedia.orgwikisobekneferu.org (acesso em 03 de julho de 2009)

117

BRYAN, op.cit., p. 27 118 TYLDESLEY, op. cit., p. 18

Além de Sebekneferu e Hatshepsut, poucos casos mal documentados podem ser atestados, como o da rainha Tausret (1198-1196), que em fins da XIX dinastia substituiu seu consorte, o faraó Seti II. A falta de herdeiro com a rainha fez com que, após sua morte, o trono passasse para Merenptah Siptah, filho do rei com uma esposa secundária de origem síria. Devido à menoridade do novo rei, Tausret atuou como regente e gradualmente assumiu todos os instrumentos de controle, passando de rainha para co-regente. Com a morte prematura de Siptah e com a ausência de um sucessor para retirar sua autoridade, a rainha continuou seu papel como co-regente, reforçando sua posição ao utilizar, assim como Sebekneferu e Hatshepsut, todos os títulos destinados a um monarca varão. Seu reinado solitário durou apenas dois anos e ela desapareceu das fontes, sendo substituída pelo faraó Setnakht, fundador da XX dinastia.119

Embora não existisse, pelo menos em teoria, nenhum artifício concreto para impedir uma mulher de governar o Egito, a tradição, imbuída de valores religiosos e políticos, tornava tal acontecimento estranho aos paradigmas estabelecidos. Sem dúvida, o faraó era um homem, personificação do deus Hórus e herdeiro do cosmo completo.

4. O FARAÓ HATSHEPSUT SURGE PARA GOVERNAR O REINO DAS DUAS