• Nenhum resultado encontrado

1. Cidadania e relação Estado-cidadão

1.1. Pré-história da cidadania ou história da pré-cidadania

1.1.3. Mundo greco-romano: gênese do conceito ocidental de

Francesa e, particularmente, pós década de 1950) tenha pouca identidade com uma eventual “cidadania antiga / clássica”, vigente no mundo greco-romano de dois mil e quinhentos a dois anos mil atrás, este ainda constitui fonte na qual vários autores buscam subsídios para formação de uma imagem, possivelmente distorcida e/ou limitada, relativa às idéias de democracia (de participação e soberania populares) e de liberdade (GUARINELLO, 2003).

Covre (1995), por exemplo, entende que a efetiva origem da cidadania estaria na polis (cidade) grega, em função da prática de democracia (por homens livres, ou homens políticos), mesmo reconhecendo que, por ser escravista, esta sociedade (a exemplo da romana) só poderia promover um exercício parcial de cidadania.

O início das cidades-estado está ligado geograficamente às margens do mar Mediterrâneo, logo diz respeito a uma história regional. A intensificação do comércio e

aumento populacional entre os séculos IX e VIII a.C. (face ao uso crescente do ferro com objetivos bélicos por impérios do Oriente médio) naquela área, levaram à fundação de colônias por gregos e fenícios (estes oriundos do atual Líbano), com uma forma de organização social característica, na qual pode-se destacar o desenvolvimento da propriedade privada (pequenos lotes de propriedade de famílias camponesas).

Assim, cidades-estado eram, originalmente, associações de proprietários privados de terra. Havia, no entanto, uma restrição: apenas membros da comunidade podiam ter acesso. A exclusão de “estrangeiros” e a defesa coletiva do território, estruturaram tais comunidades. Havia relação sinérgica entre indivíduo e coletividade. Conflitos entre proprietários individuais demandavam soluções comunitárias transparentes (públicas), o que caracteriza uma forma “primitiva” de política. O crescimento territorial e desenvolvimento de cada cidade-estado se davam em um contexto de mundo já competitivo / expansionista, fragmentado e repleto de tensões beligerantes (GUARINELLO, 2003).

Então, tomar as cidades-estado dentro de uma perspectiva de inclusão, não corresponde, necessariamente, à verdade, pois mesmo no âmbito interno havia três grupos representativos de excluídos, configurando uma expressiva população não- cidadã, particularmente nas comunidades maiores e com maior poder econômico e bélico:

a. estrangeiros domiciliados – menos “incômodos”, uma vez que, de alguma forma, integravam-se à vida sócio-econômica local (presentes em cidades portuárias e de vocação comercial como, por exemplo, em Atenas);

b. grupos submetidos coletivamente ao domínio dos cidadãos, em geral como resultado de vitórias militares, ou subalternos – como havia o anseio por independência e resgate de autonomia, esta era fonte perene de instabilidade (é o caso de hilotas e periecos, em Esparta); e

c. escravos, que, a exemplo dos escravos “modernos” dos séculos XVI a XIX, eram considerados propriedade privada e, por isto, regidos como tal – chegaram a representar mais de um terço da população total de algumas cidades e eram submetidos a toda sorte de desmandos dos seus senhores, logo também constituíam fonte freqüente de revoltas, desde as mais domésticas, até aquelas de maior abrangência, como a liderada por Espártaco, entre 73 e 71 a.C., iniciada em Cápua, região da Sicília, e que chegou a contar com quase cem mil homens em seu exército.

Tal cenário era complementado por diferenciação, e eventuais conflitos, cuja natureza estava associada a gênero (mulheres eram membros da comunidade, porém de

nível inferior, destinadas ao universo doméstico do lar), faixa etária (domínio dos mais velhos sobre os jovens, em função, fundamentalmente, da tradição e via instrumentos como conselhos de anciãos) e propriedade da terra, aí também contemplados aqueles que envolviam relações de trabalho no seio de cada comunidade (como havia pequenos, médios e grandes proprietários, camponeses sem terra e não camponeses, que habitavam áreas mais urbanas, o poder econômico e o reconhecimento social não era uniforme) (GUARINELLO, 2003).

No âmbito externo, os de fora de uma determinada cidade-estado, eram vistos muito mais como inimigos (ou, eventualmente, aliados circunstanciais contra inimigos comuns). Para aqueles que estivessem fora de qualquer cidade, Aristóteles (1985, p. 15) já registrava que “[...] um homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade [...]”. Ele ainda complementa: “[...] um homem incapaz de integrar-se numa comunidade, ou que seja auto-suficiente a ponto de não ter necessidade de fazê-lo, não é parte de uma cidade, por ser um animal selvagem ou um deus” (p.16).

Pensando em termos de uma cidadania clássica ou helênica, esse filósofo propõe que “[...] a cidade tem precedência sobre a família e sobre cada um de nós individualmente, pois o todo deve necessariamente ter precedência sobre as partes [...]” (p. 15). Textualmente, o conceito de Aristóteles (1985) para cidadão diz que

[...] aquele que tem o direito de participar da função deliberativa e da função judicial é um cidadão da comunidade na qual ele tem este direito, e esta comunidade – uma cidade – é uma multidão de pessoas suficientemente numerosa para assegurar uma vida independente na mesma (p. 79).

Assim, fica evidenciado que a amplitude do conceito e dos direitos de cidadania era bastante limitada e que harmonia interna e externa também não era propriamente uma característica típica das cidades-estado.

A primeira formulação de um conceito ocidental do que poderia vir a ser entendido posteriormente como cidadania deve-se ao ateniense Péricles, quando em 431 a.C., ao pronunciar discurso (ou oração fúnebre) em homenagem aos primeiros mortos de Atenas na guerra do Peloponeso (Liga de Delos, liderada por Atenas, contra a Liga do Peloponeso, liderada por Esparta, de 431 a 404 a.C.), segundo relato de Tucídides (1982), pontuou três virtudes que colocariam aquela cidade em uma situação diferenciada e um modelo a ser seguido: a forma de governo levava em conta os interesses e opinião da maioria dos habitantes, logo seria uma democracia (“Seu nome, como tudo depende não de poucos mas da maioria, é democracia”, p. 98); todos eram

iguais perante a lei e a escolha dos governantes baseava-se na meritocracia (“[...] não é o fato de pertencer a uma classe, mas o mérito, que dá acesso aos postos mais honrosos”, p. 98) e havia possibilidade de mobilidade social (“[...] a pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua situação”, p. 98). Disse ainda que os atenienses olhavam “o homem alheio às atividades públicas não como alguém que cuida apenas de seus próprios interesses, mas como um inútil” (p. 99).

No caso específico de Roma, que se tornou um império praticamente hegemônico a partir de meados do século II a.C., há uma peculiaridade que diz respeito à maior liberalidade para concessão de cidadania, pois desde sua origem congregou diversidade de povos e seus costumes. A influência dos etruscos (oriundos da Etrúria, norte da Península Itálica, aproximadamente região da atual Toscana, também formada por cidades-estado) fez-se sentir em vários aspectos, com destaque para o papel desempenhado pelas mulheres na sociedade, que era bem menos limitado do que nas cidades gregas, por exemplo. Contrariamente à concepção grega, na qual a cidade precedia o cidadão (polites), para os romanos cidade (urbs) e cidadania (civitas) se confundem, e só fazem sentido quando precedidas pelo cidadão (civis, que é o ser humano livre) (FUNARI, 2003).

O conjunto de cidadãos romanos fragmentou-se, basicamente, em duas classes: ricos (ou patrícios), minoria, e pobres (plebeus), a grande maioria. Havia também clientes, devotos a um patrício, dentro de uma relação de troca de favores / dependência, e escravos, com funções predominantemente domésticas. A mobilidade possível constituía na promoção de clientes a plebeus (incomum) ou de plebeus para clientes ou mesmo escravos, como decorrência da deterioração de sua situação econômica e contração de dívidas. Como parte da plebe (de origem urbana) conseguiu ter certo acúmulo de riqueza e não tinha acesso à igualdade de direitos políticos e sociais, era inevitável o surgimento de conflitos para conquista de tais direitos. Na outra “ponta”, escravos resultantes de mudança de classe (de origem rural), também se organizavam pelo fim da escravidão por dívida.

À medida que, em decorrência do poderio militar, havia expansão dos domínios do Império, as tensões sociais tornavam-se mais manifestas (uma vez que a partilha dos frutos das conquistas não era minimamente equilibrada). Fruto de alianças com alguns setores do patriciado, houve conquistas expressivas para os plebeus (que vieram a beneficiar direta e diferentemente os “plebeus superiores”, que passaram a

constituir uma elite) ao longo dos séculos III e II a.C. (primeira metade): acesso a todos os cargos políticos e religiosos, abolição da escravidão por dívida, ex-escravos direcionados / encaminhados para áreas rurais (tentativa de acesso à terra, para integração mais rápida à vida sociopolítica) e plebiscitos com força de lei (FUNARI, 2003).

A denominada Guerra dos Sócios, promovida por cidades-estado incorporadas ao domínio romano, resultou na concessão e reconhecimento de dupla cidadania para seus habitantes: ganho da romana e manutenção daquela de origem (isto em 89 a.C.). Este foi um grande diferencial, pois tornava a cidadania uma representação menos endógena e elitista (GUARINELLO, 2003). Por outro lado, a presença de escravos era cada vez maior e, conseqüentemente, mais ameaçadora.

Outro avanço deu-se ao final do período de República, quando foi instituído o voto secreto, com lista de candidatos afixada em local de fácil visibilidade. A configuração do Principado (de Otávio Augusto, em 27 a.C., até a Anarquia Militar ou Crise do Império, em 284 d.C.) e do Império (de Diocleciano a Rômulo Augusto, no ano de 476 d.C.) se não reverteu os princípios mais abrangentes de concessão de cidadania (na verdade houve intensificação do processo, pois em 212 d.C. a cidadania romana foi estendida a todos os homens livres do território romano), trouxe, porém, redução significativa do espaço político público presente na então República Romana (de 509 a 27 a.C.), uma vez que vontade e interesses (ou o que se julgava ser) do príncipe do Senado (imperator) passaram a ter peso decisivo nas deliberações, ou mesmo eram entendidos dentro do espírito de “força de lei”.

Naquele contexto, e como já mencionado no item 1.1.3., o cristianismo, com sua proposta distinta de organização comunitária e de sentido de pertencimento, expande-se com velocidade até certo ponto surpreendente, apesar das perseguições de vários imperadores (sintomaticamente, paroikoi, origem de paróquia, era o termo atribuído aos sem terra, cidadania e posição social reconhecida da época, como esclarece Hoornaert, 2003).

O amplo corpo de regras jurídicas e leis que constituíram o direito romano (até a queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C.) foi compilado e reorganizado sob o governo de Justiniano I (em 530 d.C.) e passaram para a posteridade como Código de Justiniano, cuja influência sobre a constituição contemporânea do Direito praticado em países europeus foi marcante (FUNARI, 2003).

Uma lição (com tendência a definição) inspirada na experiência histórica vivenciada no mundo greco-romano da Antigüidade, nas palavras de Guarinello (2003), seria assim sintetizada:

[...] cidadania implica sentimento comunitário, processos de inclusão de uma população, um conjunto de direitos civis, políticos e econômicos e significa também, inevitavelmente, a exclusão do outro. Todo cidadão é membro de uma comunidade, como quer que esta se organize, e esse pertencimento, que é fonte de obrigações, permite-lhe também reivindicar direitos, buscar alterar as relações no interior da comunidade, tentar redefinir seus princípios, sua identidade simbólica, redistribuir os bens comunitários. A essência da cidadania, se pudéssemos defini-la, residiria precisamente nesse caráter público, impessoal, nesse meio neutro no qual se confrontam, nos limites de uma comunidade, situações sociais, aspirações, desejos e interesses conflitantes (p. 46).