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2.4. D O DIÁLOGO ENTRE C IÊNCIA E A RTE

2.5.2. E XEMPLOS MARCANTES

2.5.2.2. Os Mundos Visíveis

O acto de observação é a actividade fundamental para os dois domínios do conhecimento em diálogo neste estudo. Do ponto de vista da metodologia científica, esta actividade reporta à fase de investigação na qual os fenómenos são objecto de análise atenta, tanto quanto possível, sem interferência do observador sobre o observado. Embora para os positivistas a observação pretenda apenas, ver e não interpretar, no sentido de ser relatada como é observada, sem interpretações por parte do observador, no entanto, enquanto prática, todo o acto de observação constitui-se na verdade como um acto de interpretação activa: “somente vemos aquilo que olhamos. Ver é um acto voluntário” (Berger, 2005, p.10). No quotidiano diário, os territórios visuais que vamos assimilando vão-se construindo sucessivamente, sem que nós como observadores interpretantes encontremos particulares dificuldades em os organizar.

Uma das áreas de apresentação dos mundos visíveis deste diálogo Ciência e Arte foi, desde sempre, a ilustração científica, que se define através de diferentes técnicas de expressão visual que, no entanto, se colocam ao serviço do rigor científico de modo a transmitir conhecimento de forma exacta e rigorosa. “Uma ilustração científica é um componente visual, resultado de uma observação minuciosa e idónea de um objecto em estudo, que permite complementar um texto, eliminando as barreiras linguísticas. A ilustração científica tem o seu lugar em todos os campos da Ciência e resolve as suas particularidades, adaptando-se aos recursos científicos, artísticos e tecnológicas de cada época.” (Estivariz et al., 2006, p.9).

A transmissão dos conhecimentos e informação da natureza através da expressão visual acompanha desde sempre o Homem, com evidências de representação que reportam até ao período paleolítico. É, assim, uma arte especializada que serve, sobretudo, as ciências naturais. Até ao aparecimento da imprensa, as ilustrações eram reproduzidas pelos monges copistas mas sem grande procura de fidelidade à natureza. Exemplo deste período anterior ao século XV são os Bestiários, objectos literários medievais que, apesar de serem obras científicas, serviam mais como instrumentos intencionais de divulgação teológica, uma vez que os diferentes animais representados

eram sempre explicados a partir da sua relação “divina”, em que o mundo real era o reflexo do mundo divino. “Os Bestiários atraem magneticamente qualquer amante da pintura e da literatura, pois (…) estão carregados de símbolos, disposições e cores, e contêm mensagens que estão submersas profundamente no oceano da moralidade, sendo este conceito de moral a sua raiz inspiradora essencial” (Estivariz et al., 2007, p.19).

Figura 3 Detalhes do “Bestiário de Aberdeen” – Século XIII

Figura 4 Alexandre Rodrigues, “Macaco”

Figura 5 Maria Sibylla Merian, “ Erythrina fusca”

É na transição para o século XVI que surge a ilustração científica como a concebemos hoje, com os trabalhos de Leonardo da Vinci, passando a representação visual a ser uma ferramenta de apoio basilar da investigação. “Com a descoberta de novos mundos e novas gentes, novas espécies de plantas e animais foram descritas e desenhadas por ilustradores que integravam os grupos de exploradores” (Salgado, 2003, p.3). Neste período da História, em que novos mundos se descobrem através da expansão marítima e da conquista de novos territórios, a capacidade de representação de novos mundos visíveis deu à ilustração em Ciência um papel de destaque na descrição da diversidade da vida. O desenho científico, ao permitir uma caracterização visual detalhada, era parte integrante das grandes expedições nas novas regiões com vista à descrição das novas espécies descobertas e de que exemplos marcantes são, por exemplo, os desenhos feitos quando da viagem de Charles Darwin no “Beagle” ou na expedição de Maria Sibylla Merian ao Suriname em 1699 para documentar as metamorfoses das borboletas locais (Kemp, 2000, p.46). No caso português, por

exemplo, é reconhecido o trabalho de Alexandre Rodrigues, através das suas “viagens philosophicas” que realizou na baía do rio Amazonas a mais longa viagem de um naturalista português (1783-1792), descrevendo a diversidade do mundo vivo que ali encontrara, e a colecção de artefactos das culturas indígenas com que contactou é

mundialmente conhecida8.

Este estudo abordado no Renascimento potenciou o interesse pelo mundo natural, tomado como objecto de estudo através da razão, cada vez mais “científica”. A ilustração científica associa, então, a Arte com a Ciência, sendo por isso dotada da capacidade de comunicar uma informação. Ainda neste período é importante referir o trabalho anatómico desenvolvido por Andreas Vesalius (1514-1564), médico belga considerado um dos “pais” da anatomia moderna, que recortou o corpo humano como nunca havia sido feito e colaborou directamente com artistas que tratavam de ilustrar essas diferentes partes. Publicado em 1543, “De Humani corporis fabrica” continha ilustrações devidamente legendadas e com referências cruzadas com o texto, inaugurando um género de comunicação em livro de uma ciência descritiva. Esta obra de grande volume encontrou, já no século XIX, a sua “massificação” com a “Gray’s Anatomy, descriptive and Cirurgical” (1858), de Henry Gray, “afirmou-se como a "bíblia" anatómica para gerações de estudantes a quem era exigido que "nomeassem as partes (anatómicas)" (Kemp, 2000, p.71).

Figura 6 Andreas Vesalius, dupla página de “De Humani Corporis Fabrica”

Figura 7 Robert Hooke, dupla página de “Micrographia”

8

O registo e as ilustrações da “viagem philosófica” de Alexandre Rodrigues foram adaptados no livro: ANTUNES, Miguel Telles (2007). Alexandre Rodrigues Ferreira e a sua obra no contexto português e universal, Lisboa: Alêtheia, FMR e Fundação Champalimaud.

As novidades visuais que estimulam o observador formam um campo de exploração de Ciência e Arte, nomeadamente na apropriação que cada uma das esferas cognitivas faz dos métodos e descobertas da outra. Um desses exemplos tem a ver com a “expansão” da observação, a partir do momento que o mundo visível, natural, é ampliado graças ao recurso a aparatos tecnológicos. Um destes objectos, que contribuiu para o diálogo Ciência e Arte, foi o microscópio.

A arte de observação microscópica apresentou, e continua a apresentar, desafios contínuos à capacidade perceptiva do observador. A primeira grande obra de apresentação da observação microscópica é o trabalho “Micrographia” de Robert Hooke, um dos grandes cientistas experimentais do século XVII, e publicado em 1665.

Articulando os conhecimentos de Ciência com a representação da Arte, publica aqui descrições das observações microscópicas que realiza, com a sua máxima de “uma mão sincera e um olho fiel” (Estivariz et al, 2008, p.12). Dedicou-se sobretudo à observação e posterior registo, mas não deixou nunca de reconhecer a complexidade que lhe era apresentada. O argumento fundamental de Hooke foi a sua capacidade científica e artística para representar a natureza “aumentada” em imagens coerentes e com referentes às formas “naturais” já conhecidas. “Ao longo do Micrographia, a mais bela mecânica e geometria dos mais pequenos microcosmos menores é repetidamente feita como manifesto, cortesia do olhar inteligente e mão elegante de Hooke. Aos primeiros leitores do seu livro foi dado o privilégio de entrar num mundo de formas e espaço previamente inimagináveis.” (Kemp, 2000, p.43).

Esta nova via de representação do imaginário científico teve continuação quer pelo desenvolvimento histórico da Ciência e da Arte quer também pelo desenvolvimento tecnológico. Actualmente, através de cada vez mais objectos com mais capacidades, novos “mundos visíveis” se apresentam. Este imaginário que a Ciência permitiu abrir, cada vez mais ampliado, aproxima a observação científica da actividade artística, uma vez que a procura e decisão de, por exemplo, determinado enquadramento para uma imagem, está a implicar uma decisão subjectiva do ponto de vista da composição da

imagem9.

Um exemplo actual onde podemos continuar a descobrir novos mundos visíveis no campo da imagem microscópica é o concurso “Art of Science” (disponível on-line em 9

Enquanto a denotação se refere à significação óbvia, de senso comum, a conotação refere-se à interacção que ocorre com os sentimentos e emoções do observador. Assim, a denotação é a reprodução mecânica do objecto para o qual se aponta a câmara, enquanto a conotação é a parte humana do processo, ou seja, a selecção daquilo a incluir na imagem, a focagem, o ângulo, etc. Daí que possamos afirmar que a actividade de observação científica lida como uma grande componente de subjectividade.

http://www.princeton.edu/artofscience) realizado pela Princeton University, U.S.A., que propõe como linha de orientação a “celebração da estética da investigação e os caminhos nos quais a Ciência e a Engenharia informam a Arte e vice-versa”. Este é um local de experimentação, entre outros que ganham cada vez maior divulgação através da comunicação on-line, onde se verifica uma capacidade de divulgação de conhecimentos sem precedentes. As imagens que este meio permite alcançar aproximam-se do papel desafiador da Arte no sentido de se transformarem em expressões visuais e abstractas, mais do que meros registos de observação decorrentes do processo de investigação científica. De forma descomprometida, a galeria de imagens possível é apresentada da seguinte forma: “eles variam desde a imagem que valida anos de pesquisa, para uma epifania de beleza no "lixo" após um longo dia no laboratório, para a meditação de um pintor acerca do significado da vida biológica.” Apresenta-se nesta via de trabalho a Ciência como produtora de imagens contempláveis, realizadas mediante a criatividade do artista/investigador.

Figura 8 Jennifer Rea, “Mitosis”, 2006. Projecto vencedor do 1º Prémio do concurso “Art of Science 2006”.