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Não adesão à cooperação básica

No documento Pragmática e Não Cooperação (páginas 75-79)

2. Um modelo Griceano para a não-cooperação

2.3. Sobre a natureza da não cooperação

2.3.1. Não adesão à cooperação básica

Conforme apontado anteriormente, esse nível parece ser conditio sine qua non para que haja comunicação. Não aderir à disposição inicial para as trocas verbais seria, assim, solapar qualquer possibilidade de intercâmbio comunicativo. Esses casos extremos seriam situações em que o falante deliberadamente se recusa a se engajar numa conversa, sendo não cooperativos sem a menor sombra de dúvidas. Alguns exemplos desse tipo de comportamento incluiriam:

a) declarar abertamente que não deseja dialogar;

b) tapar os ouvidos e cantarolar em alto e bom som;

c) simplesmente virar as costas e ir embora;

d) fingir não falar a mesma língua que o interlocutor;

e) fingir não ouvir o que o falante diz;

Todos esses casos seriam casos de não cooperação completa: parece claro que não há

55 Attardo aponta para essa questão também em seu artigo de 2009, sem, contudo, fazer referência à sua distinção entre cooperação locucionária e perlocucionária. O ponto citado pelo autor é o grau de aceitação comum dos objetivos ou subobjetivos dos falantes (não há distinção entre objetivos comunicativos e extralinguísticos, contudo).

condições de seguir em frente com um diálogo após qualquer uma dessas opções (exceto, talvez, se, por insistência do interlocutor, o agente for levado a reconsiderar sua posição). Os casos a), b) e c) seriam casos de NC aberta – o agente deixa claro que não deseja se engajar no esforço comunicativo. Os demais casos seriam casos de NC velada, e teriam basicamente o mesmo efeito, exceto que seriam mais vantajosos do ponto de vista da preservação da face positiva (caso o interlocutor não perceba a intenção de abortar a comunicação, é claro – do contrário o tiro poderia sair pela culatra e ser ainda mais custoso à face).56 Esses casos também possuem algumas semelhanças com as tentativas de induzir o interlocutor ao erro, no sentido de que procuram ocultar suas intenções não cooperativas, mascarando-as a fim de manter ares de cooperatividade (cf. item 2.4.1, adiante).

No que diz respeito à geração de inferências por parte do interlocutor, os casos de NC completa velada claramente não geram nenhuma inferência, exceto se descobertos. Nesse caso, a inferência gerada provavelmente será a de que o interlocutor não é cooperativo, seguida do estabelecimento de hipóteses que expliquem sua opção por não cooperar. Descobrir esse movimento também implicaria, é claro, reconhecê-lo como intencional (como um plano intencional para ocultar a intenção comunicativa), mas não m-intencional (m-intending – i.e. comunicativamente intencional, o que em termos griceanos significaria que o sujeito produz seu gesto com a intenção de que sua intenção comunicativa seja reconhecida). Essas inferências claramente não são pretendidas pelo falante, sendo, de fato, indesejadas. Já os casos do tipo a), por outro lado, disparam inferências m-intencionais, enquanto a situação não é tão clara em relação aos casos do tipo b) e c).

É certo que virar as costas ou tapar os ouvidos são gestos ostensivos, que muito provavelmente provocam o reconhecimento de sua intenção. Não é tão simples, no entanto, determinar se se pretende que essa intenção seja reconhecida ou se esses são simplesmente atos que têm por fim encerrar o intercâmbio comunicativo, sendo indiferentes à existência de uma intenção comunicativa ou não.57 De modo similar, é igualmente incerto se esses gestos de fato comunicam algo, e a escolha de uma resposta é algo arbitrária. De uma perspectiva intencionalista, haveria duas possibilidades de interpretação para um gesto como esse: ou bem o gesto, a despeito de ser intencional, não é m-intencional e, assim, não gera implicaturas e não comunica nenhuma mensagem, ou bem o é e, desse modo, põe em funcionamento o maquinário griceano completo, da mesma forma que a). Se escolhemos a primeira opção, então as inferências geradas não são pragmáticas, nem comunicativas, sendo mais semelhantes às inferências feitas sobre as razões de alguém coçar a

56 Tecerei algumas considerações sobre a relação entre a NC e a teoria da polidez de modo ainda assistemático, adiando para um momento posterior uma discussão mais elaborada do tema.

57 Esse é uma das fragilidades dos modelos intencionalistas. Se entendermos que as implicaturas são intencionalmente transmitidas através do reconhecimento da intenção comunicativa, poderíamos ter virtualmente o mesmo gesto

cabeça, por exemplo. Se escolhemos a segunda opção, então devemos parear esse tipo de caso com os do tipo a). Não enxergo nenhuma razão que possa compelir a uma escolha ou outra e, portanto, evitarei fazê-la, deixando esses casos em aberto. Focarei, contudo, nos casos em a), que apresentam maior clareza em seu funcionamento (e problemas consideráveis, deve-se dizer) e, caso o leitor se sinta inclinado a categorizar os exemplos do tipo b) e c) nessa situação, os comentários feitos poderão ser aplicados também a eles.

Essas situações, em que o falante declara abertamente sua intenção em não participar do esforço comunicativo, são bastante curiosas, apresentando um exemplo do chamado paradoxo da cooperatividade, mencionado acima no item (2.2.2). Embora talvez não se trate de um paradoxo de fato, esses casos constituem um exemplo peculiar, uma vez que, ao passo que informam o interlocutor da intenção de não cooperar, o fazem utilizando-se plenamente do instrumental cooperativo, explorando as máximas conversacionais e gerando implicaturas como nos casos tipicamente cooperativos. Em um certo sentido, portanto, sentenças como 15) ou 16), abaixo, seriam cooperativas, na medida em que não constituem violações propriamente ditas das máximas, apenas violações aparentes.

15) Recuso-me a cooperar.

16) Não posso dizer mais nada, meus lábios estão selados.

Em face de uma suposta violação como essas sentenças implicam, um ouvinte poria em prática o raciocínio típico responsável pela geração de implicaturas, procurando uma interpretação que pudesse conciliar sua aparente irrelevância com o contexto de proferimento e a assunção de racionalidade do interlocutor. Assim, a violação no nível do que é dito seria conciliada com as máximas no nível do que é implicado, como em outros casos típicos de flouting.

Por outro lado, 15) e 16) parecem estar em descordo com o PC, já que não respondem do modo esperado à demanda conversacional. Conforme apontado anteriormente (cf. nota 13, p. 13, acima), embora essas sentenças sejam claramente relevantes no contexto em questão, o falante, ao proferi-las, recusa-se a prover o que é requerido por seu interlocutor, claramente recusando de modo unilateral a adoção de seus objetivos comunicativos. Nesse caso, nem o falante informa o que é requerido, nem haveria propósito comum ou mutuamente aceito, um dos pré-requisitos do PC. A interpretação, assim, pode ser facilmente derivada fazendo-se uso do maquinário griceano – o único problema é que isso não deveria ser possível em tais circunstâncias, dada a suposta relação entre o PC e as máximas. Se é a premissa de cooperação entre os falantes que possibilita a geração de implicaturas, então não deveria, a princípio, ser possível gerá-las nesses contextos.

A questão poderia ser resolvida se fosse possível conciliar esses casos com o PC, considerando-os como situações cooperativas. Desse modo, poderíamos entender, ao proferir uma sentença como 16), o sujeito se comporta de modo cooperativo, no sentido de que contribui para o andamento da conversa (ao invés de permanecer em silêncio ou virar as costas, encerrando-a imediatamente, por exemplo), faz uso das máximas, fala de modo relevante, ordenado, verdadeiro, etc. Esse momento capital implode a conversação, causando seu fim – após essa participação, o falante abertamente se retira da comunicação –, ou ao menos de seu curso atual.58 Uma possibilidade de saída seria procurar alargar a noção de o que é requerido para passar a englobar também contribuições que manifestam a intenção do falante em mudar o curso da conversa ou terminá-la por completo.

De fato, interpretar o que é requerido somente como o fornecimento da contribuição esperada pelo interlocutor é obviamente muito restritivo, mesmo se tivermos situações plenamente cooperativas em mente. Isso excluiria, por exemplo, a possibilidade de comentar uma pergunta ao invés de respondê-la, pedir por clarificação, etc. (cf. as relações de coerência comentadas por Asher

& Lascarides, 2013). Uma maneira simples de contornar o problema seria assumir que é esperado que um falante possa fazer uso desses recursos e, assim, essas contribuições seriam contabilizadas como aquilo que é requerido em um sentido mais amplo.

Podemos reformular essas assunções de um ponto de vista algo mais rigoroso: seguindo Dascal (1977), poderíamos entender um diálogo como um sequência de demandas conversacionais e respostas a essas demandas (p. 315-316). Conforme aponta Dascal,

it seems natural to assume that the conversational demand set up by A's utterance at t is topically relevant for B at t+1, whereas B's perception of the other elements of the context is merely marginally relevant for him. It seems also natural to suppose that what is topically relevant is what primarily commands a subject's conscious reactions. Certainly an utterance is a conscious reaction. Therefore, B's utterance can be described (primarily) as a reaction to the demand set up by A's utterance. (p.

316, itálico do autor).

O que é topicamente relevante se opõe, para Dascal, ao que é marginalmente relevante. O

58 Grice também reconhecia a dificuldade em se tratar das mudanças de curso de uma conversa: ao tratar da máxima da relevância, ele escreve “Though the maxim itself is terse, its formulation conceals a number of problems that exercise me a good deal: questions about different kinds and focuses of relevance there may be, how these shift in the course of a talk exchange, how to allow for the fact that subjects of conversation are legitimately changed, and so on. I find the treatment of such questions exceeding difficult, and I hope to revert to them in a later work” (p. 27).

No limite, a questão parece ser justamente a recusa em seguir um determinado rumo da conversa, seja procurando

primeiro termo diria respeito ao que está no centro da atenção do sujeito, enquanto que o segundo ao que estaria no “horizonte” ou na “periferia” de sua atenção. Dessa forma, uma sentença S impõe uma determinada demanda conversacional (na medida em que se torna topicamente relevante), e uma sentença S+1 tipicamente responde (ou reage) a essa demanda. Nesse sentido, um pedido de clarificação ou um comentário é perfeitamente uma resposta (no sentido de uma reação válida) a uma determinada demanda conversacional.

Assim, uma sentença como “me recuso a responder” (dita, talvez, por um suspeito durante um interrogatório) é cooperativa em pelo menos três sentidos: contribui para a manutenção (imediata) da conversação; exibe cooperação básica (utiliza a mesma língua, fala de modo inteligível); e, em um sentido possível, responde à demanda conversacional (e, numa interpretação favorecida, ao PC). Como resultado, a sentença acaba, ao contrário do que poderia inicialmente aparentar, apresentando não só cooperação básica, como também cooperação locucionária (mas não perlocucionária). Essa solução, é claro, é problemática, já que estaríamos deixando de considerar o propósito mutuamente aceito ou direção da conversa (que claramente não existiria), além da intuição de que, se alguém me requisita uma dada informação, por exemplo, e eu me nego a fornecê-la, eu estaria desempenhando uma ação não cooperativa. Voltaremos a considerar a questão após a apresentação da proposta de tratamento (item 2.4.3), embora os problemas ainda persistam.

No documento Pragmática e Não Cooperação (páginas 75-79)