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Não cooperação parcial velada (manipulação)

No documento Pragmática e Não Cooperação (páginas 94-98)

2. Um modelo Griceano para a não-cooperação

2.4. Uma proposta de sistematização

2.4.1. Não cooperação parcial velada (manipulação)

Em um artigo intitulado A Web of Deceit: A Neo-Gricean View on Types of Verbal Deception (2011), Marta Dynel procura caracterizar os diferentes tipos de manipulação em termos de violações de máximas específicas.63 Há uma certa simetria, bastante interessante, na forma como cada violação de máxima resulta em um tipo diferente de estratégia de não cooperação – embora combinações de violações de diferentes máximas não sejam, contudo, tão claras. Assim, violar quantidade daria origem a manipulação sem mentira (deception without lying), ao passo que mentiras resultariam da violação de qualidade (p. 147), etc.

Como aponta Oswald (2011), a manipulação (manipulation) depende tanto do seu aspecto não cooperativo quanto do seu caráter necessariamente velado, o que o leva a concluir que “covert perlocutionary non-cooperation is manipulation” (p. 123). De modo similar, Dynel, citando Castelfranchi & Poggi (1994) e Vincent & Castelfranchi (1981),64 aponta que a manipulação (deception)65 emerge da divergência entre a intenção comunicativa comunicada (communicated communicative intention) e os superobjetivos ocultos (concealed supergoals) – (p. 145).

63 Em uma primeira leitura, talvez algo enviesada, me pareceu claro que Dynel tratava de violações reais, e não aparentes – o que agora já não me é tão claro. A autora parece estar de acordo com a afirmação de que mentiras não poderiam ser acomodadas no modelo griceano (p.143), mas que, a despeito disso, “are commonplace in interpersonal interactions and deserve to be discussed in the light of the Gricean levels of meaning” (p. 143).

Contudo, sua discussão em Dynel (2008), em que a autora procura refutar a perspectiva de Raskin (1985), Attardo (1993) e Attardo & Raskin (1994) de que piadas envolveriam a violação do PC parecem indicar que a autora não está disposta a admitir violações do PC em um sistema griceano.

64 Ambos apud Dynel (2011).

65 Oswald se refere a manipulation, enquanto Dynel a deception. Usarei indistintamente o termo manipulação para

Essa parece ser a questão central envolvida na caracterização desse tipo de fenômeno: há um descompasso entre a intenção comunicativa imediata do falante e seus objetivos extralinguísticos profundos. É crucial para o sucesso de qualquer tentativa de manipulação que o falante seja capaz de transmitir a primeira de modo claro, ao passo que mantém a segunda oculta.

No caso Bronston, por exemplo, é evidente que o falante deseja transmitir, m-intencionalmente, uma implicatura, mas que pretende manter seus objetivos extralinguísticos (evitar uma resposta mais comprometedora, ao passo que aparenta ter respondido a questão de modo satisfatório) ignorados. Esse é também o caso das mentiras e das omissões de informações, em que o falante procura fingir dizer a verdade e fazer crer que a informação veiculada é a melhor de que ele dispõe, respectivamente, enquanto suas verdadeiras intenções permanecem ocultas.

Há dois resultados possíveis para esse tipo de manobra: ou ela é bem sucedida e o interlocutor interpreta-a normalmente como se fosse cooperativa, gerando assim, todas as implicaturas m-pretendidas pelo falante; ou a tentativa é frustrada e o interlocutor percebe seu caráter não cooperativo, recusando adicionar a implicatura pretendida ao fundo conversacional compartilhado e procedendo a um processo inferencial que procure estabelecer as razões por que o sujeito tentou enganá-lo. Em ambos os casos, o ouvinte estará plenamente ciente daquilo que o falante pretendia que fosse entendido por seu interlocutor e, portanto, o intérprete deverá colocar em funcionamento quaisquer mecanismos de interpretação cooperativa que estejam envolvidos numa situação “normal” – o que, no nosso caso, significa por em funcionamento o maquinário griceano de geração de implicaturas. Esse é o caso também nos modelos de Franke, Jäger & van Rooij (2009) e de Asher & Lascarides (2013): a fim de computar as inferências relevantes, o ouvinte deve considerar outras alternativas que o falante poderia ter usado e deixou de usar (i.e. o que os autores chamam de extensão do jogo). Essas alternativas, incluem, é claro, opções cooperativas (e.g. opções mais relevantes ou informativas), e os próprios Asher & Lascarides se referem a esse raciocínio como contrafactual (p. 47).66

Desse modo, podemos enunciar da seguinte maneira a hipótese contrafactual:

Hipótese Contrafactual: o significado pretendido pelo falante é derivado tanto em casos cooperativos quanto não cooperativos. As implicaturas são calculadas normalmente, fazendo uso dos mesmos mecanismos. Caso uma tentativa de engano seja detectada, a implicatura, contudo, não é adicionada ao fundo

66 Essa passagem é uma das razões mais fortes por que considero a crítica dos autores à hipótese contrafactual como mais retórica do que qualquer outra coisa. Independente do modelo adotado, parece claro que, em um caso de tentantiva frustrada de engano, tanto a interpretação pretendida pelo falante quanto a interpretação não cooperativa estarão presentes.

conversacional compartilhado.

No contexto de uma proposta de teoria da indiretividade, Pinker et alii (2008) e Lee &

Pinker (2010) defendem, de modo similar, que implicaturas em situações de conflito parcial de interesses também não são adicionadas ao background comunicativo.67 Por hora, gostaria de apontar apenas que, uma vez que se chegou a essas conclusões de modo independente, quer me parecer que (de modo bastante popperiano) elas ajudam a fortalecer o modelo. A título de ilustração, tomemos novamente o exemplo do caso Bronston, repetido aqui por conveniência:

10) a) P(romotor): Do you have any bank accounts in Swiss banks, Mr. Bronston?

b) B(ronston): No, sir.

c) P: Have you ever?

d) B: The company had an account there for about six months, in Zurich.

Deve ficar claro que a interpretação m-pretendida por Bronston em d) é a de que a sentença em questão é relevante e, portanto, responde de forma negativa (i.e. não, nunca tive uma conta na Suíça). No caso em questão, em que a tentativa de manipulação do interrogado foi bem sucedida, é justamente essa a interpretação derivada, que é então adicionada ao fundo conversacional. Fosse o promotor mais cauteloso, tendo suspeitado de uma possível tentativa de evitar a questão, ele relutaria em adicionar a implicatura relevante ao background conversacional, provavelmente pressionando Bronston por uma resposta direta (cf. Você não respondeu a pergunta). A despeito disso, a implicatura pretendida por este último claramente seria compreendida pelo primeiro.

A mesma análise pode ser feita para casos de mentiras e omissões. Uma mentira que passe por verdade desencadeará o mesmo raciocínio que uma verdadeira, e o mesmo é verdadeiro caso ela seja descoberta – a interpretação m-pretendida pelo falante ainda será reconhecida como tal, etc. Por sua vez, se pergunto a alguém “onde C mora?” e ele me responde “em algum lugar no sul da França”, ele transmitirá a implicatura de que não sabe exatamente onde C mora, seja isso o caso ou não. Mesmo se eu estiver certo de que meu interlocutor sabe a localização exata onde C vive (digamos, porque D me contou isso e não tenho razões para duvidar dele), serei plenamente capaz de reconhecer a intenção de que a sentença signifique que meu interlocutor não sabe a localização exata de C. Em todos os exemplos, contudo, a implicatura não será adicionada ao fundo conversacional compartilhado. A despeito disso, um outro tipo de inferência entrará em cena,

67 Analisaremos brevemente esses trabalhos adiante (item 3.1), quando tratarmos da indiretividade e de considerações

nomeadamente, inferências sobre o comportamento verbal do sujeito, suas motivações extralinguísticas e estratégias em curso.

Como vimos, para Franke, Jäger & van Rooij, não há necessidade de traçar uma distinção entre as implicaturas tradicionais e esse tipo de inferência. De acordo com eles,

Whether this inference should be called an “implicature” depends on the definitional stance one takes; if implicatures are part of what the speaker intends or wants to convey, then this isn’t an implicature. We are not concerned with the definitional question: these are inferences, beyond the semantic meaning of a message, that a hearer may draw based on considerations of strategic language use, which places them squarely in the pragmatic camp. (2009, p. 20)

Dynel, por outro lado, assume a primeira opção dada pelos autores no trecho citado, a de que uma implicatura, para ser considerada como tal, deve ser intencional (ou, mais especificamente, m-intencional) – (p. 151). Essa alternativa também parece-me mais interessante, uma vez que misturar os conceitos apenas geraria confusão desnecessária. Embora esse tipo de inferência

“baseada em considerações do uso estratégico da linguagem” possam ser interpretadas como da alçada da pragmática (ainda que não fique claro se essa formulação é suficiente para excluir de seu âmbito aquilo que normalmente não consideraríamos como pertencente a esse domínio),68 é razoável assumir que há diferenças significativas entre aquilo que o falante procura transmitir intencionalmente e aquilo que inferimos à sua revelia. De fato, como aponta Dynel, fossem as duas coisas a mesma, então não haveria distinção entre, e.g. perjúrio intencional e engano não-intencional, no caso de um interrogatório em juízo (p. 151). De modo similar, dificilmente diríamos que Bronston implica que ele está mentindo, muito embora essa seja uma inferência possível a partir do que ele diz. Assim, reservaremos o termo implicatura para o conteúdo transmitido m-intencionalmente, deixando o termo mais genérico inferência para os casos mais gerais.

De fato, essa distinção já havia aparecido, na medida em que diferenciamos as implicaturas transmitidas dos objetivos extralinguísticos inferidos. Há uma relação bastante próxima entre a inferência dos superobjetivos e a detecção de um comportamento não cooperativo, cuja orientação nem sempre é clara.

Assim, parece não só possível, mas também extremamente simples e direto, dar conta dos casos de manipulação comunicativa, dentro de um paradigma griceano. Esses casos incluiriam

68 Não fica claro, por exemplo, se compreensão mais ampla das implicaturas/inferências é capaz de separar casos de significado natural e não natural. Se um palestrante gagueja, posso inferir que ele está nervoso por estar falando em público, mas dificilmente direi que ele implica isso, ou que essa inferência deve ser explicada por uma teoria pragmática, embora essa também seja uma “inferência além do sentido semântico”.

estratégias de engano com a verdade (deceiving with the truth) e mentiras apresentados por Franke, Jäger & van Rooij, que são também a maior parte dos casos apresentados por Asher & Lascarides.

Faltam ainda os casos de inferências de relutância em dizer (unwilling to tell) e de inferências indesejadas como no caso da sentença most Israelis voted for peace, bem como considerações sobre detecção.

No documento Pragmática e Não Cooperação (páginas 94-98)