• Nenhum resultado encontrado

A não-inclusão do Lagamar

CAPÍTULO 4. A TRAJETÓRIA DO MOVIMENTO SOCIAL DO LAGAMAR

4.2 A Zona Especial de Interesse Social do Lagamar

4.2.2. A não-inclusão do Lagamar

Mesmo não estando presentes na Audiência Pública em que foi anunciada a não-inclusão do Lagamar, algumas senhoras afirmam que foi um grande baque descobrir que a comunidade não teria essa conquista. Acredito que durante o

51 O Plano foi votado e aprovado em 2008, mas somente foi publicado em fevereiro de 2009, quando

trabalho de mobilização liderado pela Fundação Marcos de Brüin durante 2009 e, após isso, muitas pessoas foram percebendo a importância do instrumento e houve um processo de decepção relativamente geral envolvendo a não-inclusão.

Um ponto a ser destacado é a dualidade de discursos e a tensão existente sobre o reconhecimento ou não da grande participação do Lagamar durante o Plano Diretor. Não me cabe afirmar quem está certo ou errado, mas sim apresentar as estratégias discursivas observadas para que se compreendam os embates relatados. A esse respeito, um técnico entrevistado – arquiteto que participou das discussões do PDPFor e que acompanhou, como representante da Habitafor, a criação da ZEIS do Lagamar - afirmou que moradores do Lagamar participavam das discussões sobre ZEIS, porém não de forma massiva. Segundo ele, outras comunidades tiveram uma participação muito maior, sendo que entre os moradores do Lagamar somente se destacaram como participantes Vitória (ex-moradora e participante das CEBs) e Marlene, esta última representando a Fundação Marcos de Brüin.

Algumas senhoras do Fórum da ZEIS contestam essa afirmação, tendo relatado que participaram de diversas audiências públicas àquela época. Por sua vez, Francisco (morador e também membro do Fórum), em entrevista, apresentou um ponto de vista alternativo tanto à visão do técnico, quanto à visão das moradoras entrevistadas:

Ninguém sabia bem desse processo nem entendia bem o que era ZEIS, mas a gente que teve acesso no início sabia que desde o início a Fundação lutou por isso, participou das reuniões e que isso ia beneficiar o Lagamar.

Mesmo que não tivesse todo mundo indo lá pra Câmara, a gente sabia que a Fundação estava lá por nós. Só que em algum momento, por algum motivo o Lagamar ficou de fora e a gente começou a saber, pô, essa ZEIS é importante, o Lagamar tá de fora, então, e a Vitória

começou a alertar a gente: “Olha, pessoal isso vocês vão atrás porque é importante pra vocês, o Lagamar vai se beneficiar muito no futuro com essa ZEIS” e a gente começou a ter papel de multiplicadores dessa informação. (Francisco, morador, entrevista em 20/01/2013, grifos meus)

Quanto a essa questão, parece haver um único consenso entre os entrevistados: o Lagamar estava representado em quase todos os momentos por Marlene, que compunha a equipe da Fundação, e em algumas audiências ela estava acompanhada de senhoras que hoje compõem o Fórum. Se a participação foi ou não massiva, se houve ou não envolvimento comunitário mais geral, não é possível

afirmar com certeza – o que, de resto, não chega a ser um problema relevante para esta pesquisa.

Um ponto de concordância entre as falas do técnico da Habitafor e de Francisco, o morador já citado, diz respeito à menor mobilização do Lagamar, em comparação com outras comunidades:

Do Lagamar quem participava era sempre a Marlene. Houve momentos em que a Vitória também esteve presente, como uma liderança antiga, e também o Sílvio. O Sílvio participava também, na época ele morava no Lagamar e ele participava, mas como poder público, pois trabalhava na prefeitura também. Mas logo depois ele se mudou de lá. No Núcleo Gestor do Plano [comissão formada por técnicos da prefeitura e sociedade civil, que discutia tecnicamente os artigos do plano antes de apresentá-los em audiências públicas], a Fundação tinha assento e era a Marlene quem respondia. Então, não ia ninguém além dela, a não ser em um ou outro momento. Fizemos [Habitafor] umas capacitações nos bairros pra explicar o que era o Plano Diretor, e sempre teve outras comunidades que participava muito mais gente, se não me falha a memória foi no Serviluz e também no Bom Jardim onde veio mais. No Bom Jardim deu muita gente, por causa do pessoal da rede, que hoje é a Rede DLIS (Rede de desenvolvimento local integrado e sustentável), que na época não existia ainda, CDVHS (Centro de Defesa da Vida Herbert De Souza). No Bom Jardim deu muita gente, também. E essa participação deles nas capacitações refletia na participação durante as audiências públicas, claro... (Leandro, arquiteto da Habitafor, em entrevista realizada em 22/11/2012)

Segundo o mesmo entrevistado, a mobilização pelas ZEIS foi particularmente intensa em alguns lugares, como Bom Jardim, Serviluz e Pirambu, localidades que ele fez questão de destacar em diversos momentos da entrevista, talvez também para enfatizar sua versão de que o Lagamar teria participado pouco.

O pessoal do Serviluz [...] sempre que íamos lá [sempre que os técnicos da prefeitura iam lá], entre 2006 e 2007, eles tinham as faixas já preparadas: “Queremos a ZEIS do Serviluz” com a faixa lá pendurada no dia da escolha dos Delegados [para o Núcleo Gestor do PDPFor]. Então, isso foi, houve uma boa mobilização em alguns lugares... O pessoal do Bom Jardim foi da mesma maneira...

Houve, inclusive, comunidades que elaboraram, com a assessoria de ONGs, propostas técnicas para delimitação das respectivas ZEIS:

Por exemplo, o pessoal do Pirambu montou o seu desenho de ZEIS e chegou lá no dia, no dia da solenidade na Câmara, ainda em 2006, no começo da discussão do PDPFor e apresentaram uma proposta bem técnica, ou seja, se antecipando muito. Eles contaram, se não me falha a memória, com a ajuda do CEARAH Periferia, montaram a sua própria ZEIS, inclusive fazendo as suas diferenciações internas, montaram um mapinha e

entregaram o mapinha. Na mãozinha da prefeita, inclusive no evento lá, acho que na primeira audiência pública que teve.

Leandro, de certa forma, atribuía aos próprios moradores a responsabilidade pela não-inclusão do Lagamar como ZEIS, no PDPFor. Ao mesmo tempo, mencionou como o “motivo real” dessa não-inclusão a resistência de técnicos ambientalistas, baseada no argumento de que o Lagamar seria área de risco, e, portanto, considerá-lo como ZEIS seria contrário à legislação. Ele teria se esforçado para garantir que o Lagamar não fosse excluído, posicionando-se contra o argumento dos ambientalistas:

A gente [equipe responsável pelo PDPFor] se reunia na SEPLA [Secretaria de Planejamento], eu era [representante da] Habitafor, mas emprestado na SEPLA para a montagem do Plano Diretor. E a gente estava delineando todos os capítulos de habitação, quando chegou na hora da regularização fundiária que a gente fez todo o mapeamento, que o mapeamento foi feito aqui da Habitafor, pelos técnicos daqui, eu botei o dedinho, dizendo

assim: “Olha, a gente vai botar aqui o pessoal do Lagamar, o pessoal do Dendê...” O problema é que tinha um bocado de gente ambientalista lá, entendeu? [Nome de um técnico ambientalista] foi um dos que disse

que lutou e lutaria até a morte quanto a isso, porque houve um tempo em que o Governo do Estado quis fazer aquela urbanização do Lagamar que não é o Lagamar52, perto da BR,quando foi tirar todo mundo [...] Naquela

época o Governo do Estado queria deixar lá dez casas. E os ambientalistas fizeram confusão, fuxicaram e disseram que não podia, porque era área ambiental e não podia ficar dez casas, não podia e não podia. E eles estavam enganados, claro, porque a resolução 369 do

CONAMA53 permite que a comunidade fique em área antropizada, mesmo que seja área ambiental, mas eles simplesmente ignoraram, fizeram questão com o Governo do Estado para a retirada naquela época. Então,

na hora que a gente – Habitafor – queria colocar como ZEIS as comunidades que estavam na beira de área de risco, os ambientalistas não queriam. Nós apontamos e insistimos, mas por esse argumento eles não permitiram. No dia em que fomos apresentar o resultado final

para o Núcleo Gestor [do PDPFor], um técnico da SEINF [Secretaria de Infra-Estrutura] disse: “Cadê o Lagamar aí, que eu não estou enxergando?” Aí, a gente foi e disse: “Olha, o Lagamar foi negado tecnicamente, nós da Habitafor vamos apresentar a proposta à revelia, nós vamos apresentar a proposta na Câmara [de Vereadores]”.

O técnico entrevistado afirmou várias vezes que nos momentos críticos de decisão sobre a definição das ZEIS os representantes do Lagamar estavam ausentes:

52 Trata-se da remoção da Favela do Gato Morto, em 2005, que era uma ocupação próxima ao

Lagamar.

53 A resolução nº 369/2006 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) tem 18 artigos e

dispõe sobre os casos excepcionais, de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, que possibilitam a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente (APP).

Todas as discussões [audiências públicas] que tinham, acho que era dia de quarta ou quinta-feira, nós [Habitafor] íamos para todas, para poder ver o acompanhamento... Mas mais uma vez eu repito: em nenhum momento

o Lagamar se pronunciou. Nesse dia da reunião lá do Conselho Gestor que a gente mostrou o resultado e foi dito que o Lagamar não entraria, a Marlene não pode ir. Então nesse dia ela não estava lá.

Ele também se justificou dizendo que em uma das últimas audiências públicas, que ele chamou de “Congresso Final”, conversou com algumas pessoas (dentre elas, Marlene) e sugeriu que fosse proposta a emenda para o Lagamar entrar como ZEIS-1, mas ninguém fora ele fez menção de apresentar. Ele disse ter entregue a proposta de inclusão do Lagamar em um pendrive para o relator do Plano, o vereador Salmito Filho:

Na hora do debate, eu pedi permissão para falar, pedi pra botar o negócio no projetor, peguei um pen drive e enfiei lá, aí mostrei qual era a proposta e aqui está a proposta. Isso foi filmado, televisionado e quem estava presente viu. Nós estamos apresentando a proposta de inclusão do Lagamar que, por questões de divergência técnicas, não foi aceita no processo. Mas nós estamos mostrando a proposta aqui como

emenda. “Ai, é muito importante”, o Salmito disse, “é muito importante” e etc., etc. etc. etc... Mas até hoje meu pendrive está lá e essa proposta não foi sequer considerada.

Outra questão interessante é que ele afirma que Marlene não pôde estar presente na reunião do Núcleo Gestor em que houve o conflito e em que foi decidido que o Lagamar não seria incluído. Ele afirmou ainda que, na reunião seguinte, em que houve o repasse e a ratificação da decisão tomada, ela também não pôde participar, ou seja, a representação do Lagamar não estava lá. No dia do Congresso Final do Plano Diretor, ele relata que aconteceu o seguinte:

Na parte do Congresso final que era especificamente ZEIS, a Marlene estava na Câmara. Aí ela chegou para mim e disse: “Leandro, que conversa é essa que o Lagamar não tá?” Aí, eu disse: “Marlene, isso aí a gente já discutiu. Nós vamos apresentar já, já. Aguarde e confie”. Na hora do

debate, eu pedi permissão para falar, pedi pra botar o negócio no projetor, peguei um pendrive e enfiei lá, aí mostrei que o Lagamar não foi incluído, mas na mesma hora apresentei a proposta de que fosse colocado o Lagamar naquele momento. [...] Até então ali no Congresso todo mundo tinha debatido e não tinha colocado como emenda por nenhum morador, eu que levei a proposta em um pendrive, eu tenho aqui as emendas que foram propostas de ZEIS, propostas de ZEIS...

[...]

Isso foi porque no Congresso, o que é que ficou posto? Que todo mundo poderia sugerir alteração. Cada desses capítulos, cada um desses mapas, ia ser proposto em revisão. Então, em nenhum momento foi proposto a

pública na câmara]. Mas eu fui lá e propus, o Salmito pegou o pendrive na minha mão, mas cadê? Isso não teve resultado. (Leandro, idem,

ibidem)

É interessante perceber que Leandro parece se lembrar bem do ocorrido, principalmente no dia do “Congresso Final”, e em quase todas as suas falas parece estar se justificando. Entendo que essa postura se deva às inúmeras acusações que os moradores fizeram à Prefeitura e também a ele, por ter participado diretamente do processo. A tônica do seu depoimento foi explicitar o esforço da prefeitura em regulamentar a ZEIS do Lagamar, e, sobretudo, o seu empenho pessoal em favor da comunidade, tanto no momento da não-inclusão, quanto posteriormente. Ele parecia tentar demonstrar que tinha sido um apoiador da comunidade naquilo que lhe tinha sido possível, e que não compreendia que os moradores o vissem como “inimigo”, apesar de entender as diferenças de papel entre o poder público e as famílias.

A título de esclarecimento, convém apontar que de fato os participantes do Fórum sempre falam de Leandro com mágoa e certa raiva, de uma forma mais enfática do que em relação aos outros membros da prefeitura com quem travaram conhecimento. Além dos diversos conflitos diretos com a prefeitura, acredito que isso se deva também ao fato de ser Leandro um dos técnicos mais presentes no Lagamar, conforme mostrarei adiante.

Outra questão que me chamou a atenção foi a reiterada afirmação de Leandro acerca da não-participação da comunidade como fator complementar para a não-inclusão, apesar de ele mesmo ter afirmado que Marlene sempre se fez presente nas reuniões do Núcleo Gestor, exceto naquelas em que foi decidido que o Lagamar não entraria como ZEIS. Considerei curioso ainda que Marlene não tenha estado presente justamente nas reuniões em que se decidiu sobre isso, o que pode ter sido mera coincidência, ou talvez tenha ocorrido de forma deliberada. Sobre isso, Leandro não se pronunciou. Também me pergunto sobre a possibilidade de Marlene poder influenciar diretamente nas decisões, caso lá estivesse, pois, se ocorreu tudo como Leandro afirmou, a maioria dos membros votou de acordo com o argumento dos ambientalistas.

Também não pude deixar de estranhar o relato feito por Leandro sobre o dia do “Congresso Final”, em especial quando ele argumenta que nenhum morador apresentou proposta de inclusão do Lagamar. Em diversos momentos da entrevista

ele retomou essa questão, reiterando que qualquer um podia tê-lo feito, e que ele ficou aguardando que alguém do Lagamar o fizesse. Ele afirma que justamente por ninguém ter apresentado a proposta, ele foi, de certo modo, obrigado a fazê-lo. O curioso é que ele também afirma que na ocasião, antes de apresentar o pendrive com a proposta, Marlene teria ido até ele e perguntado sobre o que estava realmente acontecendo, ao que ele respondeu: “aguarde e confie” – o que contradiz a afirmação do entrevistado de que estaria esperando que algum morador apresentasse a proposta de inclusão do Lagamar.

Essa perspectiva de um representante da prefeitura, á época, apresenta tanto semelhanças como divergências em relação às narrativas dos moradores. Reitero que o interesse da pesquisa não é identificar qual versão é a “verdadeira” e qual é a “falsa”, mas apenas compreender o que esses sucessivos acontecimentos ocasionaram, tanto em termos de mobilização dos moradores, quanto na relação da comunidade com o Poder Público na questão da ZEIS.