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A ZEIS que não é ZEIS: Um dispositivo legal para a Copa do Mundo

CAPÍTULO 5. O CONSELHO GESTOR DA ZEIS DO LAGAMAR

5.1 A ZEIS que não é ZEIS: Um dispositivo legal para a Copa do Mundo

A publicação da Lei Complementar 76/2010 foi muito comemorada por ter finalmente criado a ZEIS do Lagamar, mas, por outro lado, os moradores amargaram a inclusão de um artigo que tentaram de todas as formas rejeitar. Durante o fim do ano de 2009, em meio à preparação para a Grande Marcha, ocorreram duas ou três reuniões com a Prefeitura Municipal de Fortaleza para pressionar pela publicação da Lei Complementar (LC). Já nesses encontros, era antevista a real possibilidade de sair a LC, mas a Prefeitura apontava uma série de condicionantes, que as lideranças vinham se recusando a aceitar.

Um desses condicionantes era a inclusão, na própria LC, de um artigo dispondo que, apesar de ser ZEIS, caso houvesse a necessidade de realização de obras prioritárias (a exemplo das obras para a Copa do Mundo de 2014), os critérios da ZEIS deveriam ser flexibilizados (artigo 5º). Não participei dessas conversas no Paço Municipal, mas obtive relatos de moradores que lá estiveram, e estes disseram que foram momentos de muita tensão e insistência da própria prefeita de que a lei só sairia dessa maneira. Apesar das críticas dos moradores e da Fundação Marcos de Brüin, a Lei foi publicada conforme vinha sendo dito pelo governo municipal. Para melhor compreensão dos conflitos ora narrados, observe-se o que diz o citado artigo 5º, em consonância com o artigo 4º da mesma lei:

LEI COMPLEMENTAR Nº 0076 DE 18 DE MARÇO DE 2010

Art. 4º - Fica instituído o Comitê Gestor da ZEIS 1 do Lagamar,

composto por representantes do Município e dos atuais moradores das áreas indicadas no anexo único desta Lei, que deverão participar de todas

as etapas de elaboração, implementação e monitoramento do Plano Integrado de Regularização Fundiária. Parágrafo Único - Ato do Poder Executivo deverá regulamentar a constituição do Conselho Gestor da ZEIS 1 do Lagamar.

Art. 5º - Fica o Chefe do Poder Executivo, em consonância com o que estabelece o art. 4º desta Lei, autorizado a, por decreto, estabelecer exceção aos parâmetros urbanísticos da área em que está inserida a ZEIS 1 do Lagamar, quando o interesse público justificar, ou quando estiverem envolvidas ações de infraestrutura viária ou infraestrutura urbana ou ambiental ou ainda quando se tratar de projetos que tenham relação com a Copa do Mundo de 2014, sede Fortaleza. (LC nº 76/2010,

Fortaleza-CE, grifos meus)

O referido artigo diz ainda mais nos parágrafos que se seguem, em que fica estabelecido que essas obras excepcionais podem ser inclusive de outros entes federativos, não apenas do Município de Fortaleza, conforme o §1º: A possibilidade instituída pelo caput do presente artigo não se limita a projetos do Município de Fortaleza, podendo os mesmos serem de titularidade ou interesse do Governo do Estado do Ceará e da União.

Os moradores do Lagamar chegaram a realizar novos protestos em direção ao Paço Municipal, com faixas de “abaixo o artigo 5º”, mas não obtiveram resultado com esses atos de resistência. O citado artigo causou estranhamento em algumas categorias profissionais, a exemplo de advogados e arquitetos próximos do Fórum, e em algumas reuniões chegou a ser questionada a legalidade do artigo, vez que um dos objetivos da ZEIS é evitar remoções forçadas. Se o artigo está afirmando a flexibilização dos critérios das ZEIS de modo a facilitar uma possível remoção em função da Copa do Mundo, está na prática renunciando à finalidade primeira da ZEIS, ou ainda criando uma “ZEIS que não é ZEIS”, nos dizeres de alguns participantes do Fórum.

Para os moradores, teria sido preferível a completa exclusão do citado artigo, mas tal não foi possível. A partir do artigo 5º, é possível extrair duas interpretações, uma que favorece o Lagamar e outra que favorece os entes governamentais e o interesse na realização dos jogos da Copa em Fortaleza. A partir das primeiras reuniões na Fundação após a publicação da LC 76/2010, os moradores começaram a discutir se haveria alguma estratégia de defesa. O que concluíram foi que, apesar do artigo 5º autorizar a flexibilização dos critérios, se for o caso de alguma obra da Copa ocorrer dentro do perímetro da ZEIS, ainda será necessária a aprovação do Conselho Gestor. A argumentação do Fórum é de que o

artigo 4º, que fala dos poderes do Conselho, pode minimizar os impactos do artigo 5º, vez que não seria possível ocorrerem essas obras sem a total participação e aprovação dos conselheiros. Por outro lado, a Prefeitura entende que o artigo 5º autoriza o prefeito a ir além da decisão do Conselho Gestor, podendo este, por simples decreto, regulamentar sobre a flexibilização dos critérios dentro da ZEIS. A questão, portanto, não é nada simples, havendo suporte jurídico para as duas argumentações. Os participantes do Fórum da ZEIS sabem, no entanto, que o que será determinante não são os termos da Lei ou mesmo do decreto, e de certa forma se preparam para os futuros conflitos.

Freitas e Pequeno (2011) entendem que o artigo 5º constitui um retrocesso e que, de acordo com ele, a Prefeitura pode alterar os critérios sem a devida autorização do Conselho, conforme se observa:

Assim, mesmo que se busque implementar um Conselho Gestor e que venham a ser desenvolvidas as diferentes etapas (o diagnóstico específico da área, a normatização especial de parcelamento, edificação, uso e ocupação do solo; os planos urbanísticos, de regularização fundiária, de trabalho e renda e de participação comunitária e desenvolvimento social), fica a área à mercê de sua revogação, prevalecendo a definição técnica e os interesses diversos associados à Copa de 2014. (FREITAS; PEQUENO, 2011, p.16)

Depois da publicação da Lei Complementar, foram necessárias muitas reuniões entre os membros do Fórum e técnicos da Prefeitura para a negociação do texto do decreto que regulamentaria o Conselho Gestor, pois só a LC não era suficiente. De algumas dessas reuniões eu participei juntamente com diversas senhoras do Fórum, de forma que o decreto somente foi publicado em outubro de 2010. A partir daí, em novembro de 2010 foi formada a comissão eleitoral para dispor sobre a eleição dos conselheiros do Lagamar, que ocorreu entre fevereiro e março de 2011 (Ver Figura 21: Linha do tempo 2, na página 137).