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Violência, estigma e pertencimento

CAPÍTULO 3. O LAGAMAR: CENÁRIOS E ATORES SOCIAIS

3.5 Favela, estigmatização e violência

3.5.2 Violência, estigma e pertencimento

Por se tratar de uma ocupação irregular ou “favela”, o Lagamar recebe, de boa parte da imprensa, o tratamento que costumam ter as áreas “periféricas” das grandes cidades no Brasil: a caracterização como zonas de exclusão, marginalidade e violência. Trata-se de um ponto de permanente incômodo para os moradores, que têm receio de receber jornalistas e ver matérias novamente falando da violência do local. Sobre a estigmatização pela mídia, não foram poucas as vezes em que ouvi falas como esta:

Meu filho colocou na TV e eu assisti, e vi uma coisa terrível, que a imprensa tem um cuidado muito grande em colocar só os bairros de periferia.

Ninguém fala que alguém fez roubo, que foi assassinado, que na Beira Mar houve isso e aquilo, é mais periferia. (Júlia, moradora. Entrevista

realizada em fevereiro de 2012, grifo meu)

Na visão da mesma moradora, “o que passa na televisão não é que o Lagamar é um local violento, e sim um lugar de pessoas violentas”, o que para ela representa diversos preconceitos. É interessante notar que muitas vezes os que vêm “de fora” são sutilmente indagados a esse respeito, para que os moradores se

certifiquem de quem são e qual sua opinião sobre o lugar, constituindo em certa medida uma pequena sabatina ou mesmo um “ritual de passagem”. Eu mesma várias vezes me percebi submetida a esse ritual, compreendendo que se trata de uma etapa importante do processo de diálogo para estabelecer a relação de confiança necessária à realização da pesquisa. Os moradores, ou pelo menos uma parte deles, querem saber a procedência dos “que vem de fora”: onde moram, onde trabalham, quem conhecem, se alguém os indicou e qual sua opinião sobre o Lagamar, sobre os moradores, sobre a mídia. Alba Zaluar (1997) constatou uma situação parecida em seu estudo sobre a Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, onde sua presença como pesquisadora também foi questionada em razão de sua classe social, de sua profissão, em suma, das possíveis diferenças sociais entre ela e os moradores do conjunto. Para muitos moradores do Lagamar, a caracterização como um lugar violento não se limita às notícias de jornais. Trata-se de algo vivenciado no cotidiano, como se pode ver nessa situação narrada por Júlia:

Meu filho já deu um tranco lá no supermercado Bom Preço. Nós fizemos umas compras e era pra chegar lá em casa oito horas da noite, e não chegou. Fomos lá no outro dia reclamar e quando chegamos o funcionário do supermercado disse: “ninguém vai oito horas pro Lagamar não, que é perigoso”. Aí o meu filho disse assim: “é, mas se fosse pro Papicu [bairro de classe média e alta] vocês iam ver também que ontem houve um assalto lá, e mataram um lá. No Lagamar ninguém ouviu que matou um ontem, não”. (Júlia. Fevereiro/2012)

Avelar (2007) observou que a estigmatização e o discurso sobre o medo estão muito presentes na vida dos jovens do Lagamar, que evitam dizer aos outros qual o local onde moram, na tentativa de não serem eles também associados ao crime, à marginalidade. Ao mesmo tempo, há uma forte sensação de pertencimento, uma relação de amor ao lugar, que a autora aponta como uma espécie de “amor proibido”, conflituoso, que se precisa esconder (AVELAR, 2007, p.23).

A relação com o lugar parece ser de permanente tensão entre esses dois pólos: de um lado, pertencimento, orgulho e positivação; de outro, por medo do estigma, a negação de filiação à área. Esta negação vem sempre de forma velada, esquiva, evidenciada quando as pessoas dizem morar “no São João do Tauape”46,

mas não no Lagamar, ou quando fazem menção à referência geográfica mais geral,

46 O Lagamar na verdade não é um bairro, e sim uma comunidade inserida entre os bairros São João

do Tauape, Aerolândia e Alto da Balança. Observei muitas vezes falas de moradores afirmando seu local de moradia como sendo o bairro, tentando, visivelmente, fugir do estigma da favela.

dizendo: “aqui na Aerolândia não é assim...”. Sobre isto, a fala de uma senhora é bastante esclarecedora:

[...] eu queria que Deus nos ajudasse a envergonhar muita gente que fala do Lagamar, queria que o Lagamar fosse que nem um que parece que tem no Paraná, num sei aonde, que é um centro turístico, todo mundo vai lá pra ver o Lagamar. Aqui tem uns que até negam que mora no Lagamar. Diz que mora no Alto da Balança, na Aerolândia... , tem gente que chama “carniça do Lagamar”, eu já vi chamarem. Quem num quiser ser do Lagamar que saia, num tem problema não. [...] Mais de uma pessoa que eu conheço, quando foi fazer uma entrevista de emprego, quando perguntou qual bairro, ele disse: eu moro no Lagamar, e o empregador dispensou logo. (Júlia. Fevereiro/2012)

Outra senhora afirmou, várias vezes, não gostar da denominação “Lagamar”, em razão do preconceito associado ao lugar. Dona Cláudia narrou algumas situações em que vieram à comunidade pessoas ditas da elite para doar alimentos, muitas vezes podres ou estragados, para os “famintos do Lagamar”. Ela chega a dizer que esse nome foi criado por D. Luiza Távora47 em meados da década de 1980, ou que, se não criado, foi por ela reforçado durante esses atos de doação. Assim, Dona Cláudia nunca se conformou com essas caracterizações atribuídas à comunidade, nem aceita que se diga que lá há “famintos” e “necessitados”:

Por isso que eu num gosto, eu te digo com toda sinceridade, eu num gosto dessa palavra Lagamar, pra mim é a pior palavra do mundo que eu já vi na minha vida, é. Filha, pode crer, tu pode acreditar, como existe Deus no céu, quando eu tô num canto, que falam dessa palavra de Lagamar, eu fico triste, fico muito triste dentro de mim porque eu vi ela [D. Luiza Távora] fazer isso com os pobres, trazer resto de comida, aquelas sopas... Ela fazia aquele sopão na praça e trazia pra dar à pobreza, além dela trazer pão duro, essas coisas, ela dizia assim: “Vamos levar isso assim, assim pros famintos do Lagamar”. Eu, pelo menos, nunca participei do pão dela, graças a Deus, eu lavava roupa nas casas, eu fazia faxina, fazia tudo, mas eu nunca cheguei o dia de trazerem um cestão aqui e eu tá lá. Não, num gostava, nunca gostei disso aí... (Cláudia, entrevista em Janeiro/2013)

O interessante é perceber que essa rejeição ao nome de Lagamar parte de uma das mais antigas lideranças, que presidiu durante 25 anos uma das associações de moradores. Se por um lado ela trabalhou durante toda a vida para garantir melhorias e serviços públicos, ela também não aceita que se associem características estigmatizadoras ao lugar que ajudou a construir. Após uma longa

47 Luiza Távora foi casada com Virgílio Távora, que por duas vezes foi Governador do Ceará: de 1962

a 1966 e de 1978 a 1982. Foi uma primeira-dama conhecida por sua participação em programas sociais, tendo sido homenageada posteriormente através da Praça Luiza Távora, no bairro Aldeota.

entrevista, pareceu, no entanto, que a rejeição de Dona Cláudia era maior à figura da Dona Luiza Távora (tão presente em suas lembranças) do que propriamente ao nome de “Lagamar”. Tanto é que em uma reunião do Fórum da ZEIS, em 07/12/2012, ela chegou a afirmar: “Esse nome Lagamar hoje eu me orgulho, mas no começo quem deu esse nome foi a Luiza Távora, que entendia aqui como uma área de pobre, de famintos”.

Mesmo assim, em dezembro de 2012, durante uma reunião em que muitos moradores estavam falando do nome Lagamar, Dona Cláudia insistiu que a denominação do lugar é originalmente Tauape, e atualmente é São João do Tauape. Durante a fala de alguns que diziam da importância de positivar o nome Lagamar, Dona Cláudia se retirou e não voltou mais. Essa reunião foi bastante interessante, pois estiveram em jogo representações conflitantes, conforme registrei em meu diário de campo:

Diante da fala de Cláudia sobre ser contra chamar a comunidade de “Lagamar”, Vitória e Lúcia afirmam a identidade do Lagamar e dizem não ter vergonha do nome da comunidade. Lúcia diz: “Eu não tenho vergonha nenhuma de chegar em qualquer lugar do Brasil e dizer que moro na periferia, que moro no Lagamar”. Vitória diz: “Eu sou conhecida por ser do Lagamar e nunca fui rebaixada por isso”.

Tais representações remetem, inclusive, a um conflito geracional, o qual envolve a questão da memória. Se por um lado há um respeito pelo “passado de lutas” daquela senhora, por outro, os mais jovens não compreendem bem quando ela tenta demarcar as origens de alguns eventos - naquele momento a questão do nome da comunidade. Alguns justificam dizendo que é o “jeito dela”, que ela é assim mesmo, e fica no ar a impressão que o conflito se deu somente por questão de temperamento ou personalidade. Mas quando na ocasião outra moradora, uma jovem, chegou ao meu lado e disse que ela [Dona Cláudia] “costuma desenterrar os defuntos dela”, a questão sobre a memória me chamou a atenção. Não só no dia que entrevistei Dona Cláudia ela enfatizou a importância da memória e do passado: ela sempre faz isso, bem como Dona Júlia, Dona Lívia e Dona Alice; na verdade é um traço característico do discurso das senhoras idosas.

Assim, fica claro que a identificação com o território é uma questão central desse lugar, expressando relações entre os moradores nas quais o conflito

geracional é um marcador (ver Capítulo 5). Trata-se também de importante elemento da trajetória do movimento social do Lagamar, como será visto no próximo capítulo.