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3. A multiplicidade dos espaços circenses

3.1. Níveis de envolvimento

Considerando todas as possibilidades de contato com o circo existentes na atualidade, o nível de envolvimento pode variar de acordo com o espaço, os interesses e a forma como esse contato é apresentado pela primeira vez, assim como outros aspectos de ordem individual. De acordo com Pérez Gallardo (2000), no contexto da educação física, existem três níveis de aprofundamento dos conteúdos e conhecimentos desenvolvidos: vivência, prática e treinamento, sendo que cada um deles implica diferentes interesses, tanto por parte dos praticantes quanto do professor.

A partir desse modelo, Bortoleto e Machado (2003) nos mostram que, da mesma maneira como ocorre no esporte, o circo enquanto manifestação cultural/artística pode ser praticado, seja em níveis elementares ou em níveis performáticos ou virtuosos.

De modo similar, embora considerando as diferentes etapas da formação circense, CONCA (2010) classifica cinco etapas de desenvolvimento/engajamento: descoberta, aprendizagem, conhecimento, domínio e virtuosismo. Por outra parte, Wallon (2009) identifica quatro fases de aprendizagem: descoberta, controle, domínio e virtuose.

Ao diferenciarmos o envolvimento ou os distintos níveis de prática e domínio dessa linguagem, podemos compreender melhor os limites e as diferenças, em termos de exigência, que a formação do artista circense deverá levar em consideração:

Descoberta

Trata-se do primeiro contato que se estabelece com as atividades circenses, partindo do pressuposto de que o praticante tenha pouca ou nenhuma experiência na área. Consiste no espaço da formação que possibilita a aproximação com o circo, de exploração

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dos saberes elementares, de uma sensibilização lúdica, de uma vivência sutil das diversas modalidades circenses.

A descoberta caracteriza cursos de caráter eventual, de curta duração e esporádicos, atividades que podem gerar interesse social, educativo ou lúdico-recreativo e ser desenvolvidas em praças, clubes, ONGs, festas e eventos diversos.

Para além de oferecer a oportunidade de conhecer o circo e, com um pouco de dedicação, desenvolver alguma habilidade circense, pretende-se neste nível formativo fomentar a criatividade, a expressividade, a comunicação, a autonomia e o trabalho coletivo. Direta ou indiretamente é possível contribuir, mesmo que praticando por alguns minutos, para a formação de público, a sensibilização e a crítica sobre o circo, bem como para a democratização de um legado cultural cujo valor é inestimável.

Controle

Neste estágio busca-se ampliar a experiência nas práticas circenses, bem como a conscientização acercadas possibilidades e limitações de cada aluno. O controle técnico e conteúdos conceituais devem ser trabalhados a partir de habilidades ou truques básicos.

O planejamento pedagógico deve contribuir para o desenvolvimento do potencial criativo e expressivo, iniciando o debate sobre os projetos estéticos, bem como sobre conteúdos transversais (valores, autoconfiança etc.) que permitam um desenvolvimento integral dos alunos.

Este tipo de aprofundamento é comum em projetos sociais, cursos ou oficias de tempo livre (lazer ou condicionamento físico), ou, ainda, nas escolas de educação formal que incluem as práticas circenses no conteúdo programático.

Domínio

Visando maior aprofundamento na arte do circo, este estágio requer um controle ótimo do corpo, ampliando significativamente as possibilidades artísticas dos alunos. Evidentemente a exigência, a dedicação e o compromisso serão afetados, exigindo cada vez mais dos alunos.

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Aquele que escolhe esse caminho busca aprofundar o domínio de uma técnica específica, com o objetivo de aumentar sua experiência nos quesitos técnico, artístico ou pedagógico para a criação de um número ou espetáculo.

Este tipo de formação pode ser realizado no meio familiar (circo família), em contato com mestres de reconhecida notoriedade, em cursos livres de aprofundamento técnico e artístico, em alguns projetos de circo social que tenham um viés profissionalizante, assim como, e principalmente, em escolas preparatórias e de ensino técnico.

Virtuose

Nessa fase o artista em formação deve ser capaz de modificar os distintos elementos que compõem o número circense, bem como ter qualificações para contribuir na elaboração do espetáculo. Em outras palavras, “esse estado é aquele em que se pode manifestar plenamente o controle retroativo da ação em curso, no mesmo momento em que se realiza a proeza, ou seja, as capacidades de improvisação e de adaptação que permitem a interpretação” (WALLON, 2009, p.22), permitindo que o artista se exprima por meio de sua criação artística.

Este estágio do desenvolvimento artístico requer uma formação prolongada no tempo e enorme dedicação, e é obtida normalmente por meio do ensino familiar (circo família), pela formação continuada ou especializada com mestres de reconhecido prestígio por sua trajetória artística ou pedagógica; e ainda a partir de cursos de nível superior. A virtuose requer muita experiência e grande investimento de tempo e dedicação, e, por conseguinte, disciplina.

Com base nesses distintos estágios da arte circense, fica patente que quanto maior for o nível de engajamento do artista, maior deverá ser seu aprofundamento teórico, prático e artístico, ou seja, o seu envolvimento. Esse envolvimento acontecerá nas dimensões corporal, intelectual e artística, e por isso requer decisão firme e grande investimento de tempo, recursos e energia. Quanto maior o aprofundamento de quem quer se profissionalizar, maior será seu distanciamento em relação o grande público, e, portanto, maior o impacto do produto artístico oferecido. Isso significa dizer que os artistas

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profissionais trabalham visando o estágio de virtuose, enquanto os demais praticantes permanecem, em sua maioria, nos estágios elementares (descoberta e controle). Sintetizamos esse pensamento na figura a seguir.

Figura 10: Nível de envolvimento em relação às etapas de formação do artista circense

3.2. Os âmbitos do circo

A formação do artista circense está atrelada a duas formas principais de transmissão do conhecimento: familiar ou em escolas especializadas. Contudo, hoje, como nunca antes, a quantidade de pessoas que buscam vivenciar tal prática circense, nos diferentes níveis de envolvimento acima comentados, vem aumentando consideravelmente, gerando a aproximação de profissionais de áreas diversas. Assim, portanto, é possível acessar os saberes circenses como conteúdo da educação física (COASNE, 1992; DUPRAT; PÉREZ GALLARDO, 2010; FOUCHET, 2006; INVERNÓ, 2003; ONTAÑÓN et al 2012, 2013a), como forma de lazer (DUPRAT, 2012; OLIVEIRA, 2008), como

Aument

o do

nível de

envolvi

mento

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entretenimento ou divertimento (HOTIER, 2001), como prática social (FIGUEIREDO, 2007; GALLO, 2009; PERIM, 2013), como meio para a educação estética (BORTOLETO, 2011; ONTAÑÓN et al 2013b), como meio para a promoção da saúde e de melhorias no condicionamento físico (SOARES; BORTOLETO, 2011) ou ainda como ferramenta para a promoção da criatividade (INVERNÓ, 2003).

Desse modo, a diversidade de espaços, de objetivos perseguidos e de profissionais envolvidos em relação aos diferentes níveis de envolvimento faz do circo um fenômeno ainda mais complexo. Contudo, a aproximação de um maior número de interessados em tornarem-se profissionais do circo, ou de profissionais de áreas diversas que de algum modo iniciam labor neste campo artístico, gera novas demandas formativas e um novo cenário político, institucional e pedagógico (BORTOLETO, 2008).

Ao integrar uma sociedade “líquido-moderna” (BAUMANN, 2007; 2004), caracterizada por um intenso dinamismo social, os circenses, ou seja, os profissionais que atuam com o circo, como artistas, educadores, arte-educadores, pesquisadores, diretores artísticos etc., devem atentar para essas novas demandas, buscando desenvolver estratégias para atendê-las.

Procurando compreender esses novos mercados, Bortoleto e Machado (2003) descreveram três grandes âmbitos de atuação do profissional circense: recreativo, educativo e profissional (artístico). Após uma década e um importante movimento de transformação do circo, esses âmbitos se desmembraram, oferecendo novos domínios de atuação: profissional; lazer; educativo; social e terapêutico. Cada um deles exigirá competências específicas, conforme detalhamos a seguir.

3.2.1. Profissional

O âmbito profissional (BORTOLETO; MACHADO, 2003), como vimos anteriormente, foi formado por saltimbancos, funâmbulos, acrobatas, atores e artistas de rua da commedia dell’arte, mambembes do circo tradicional, do circo novo, do circo contemporâneo, dos espetáculos de variedades, dos cabarés e dos vaudevilles, bem como

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autodidatas e tantos outros que contribuíram e influenciaram o desenvolvimento dessa arte múltipla, complexa e riquíssima em manifestações artísticas.

O que define esse âmbito são as pessoas que trabalham profissionalmente na elaboração do espetáculo circense em suas mais variadas composições: artistas individuais, pequenas e médias companhias, grandes circos, empresas de entretenimento etc. Ou seja, todos aqueles que vivem e sobrevivem de sua arte.

Este âmbito, portanto, será caracterizado pela formação profissional visando as etapas de domínio e virtuose, e seus protagonistas podem obtê-la por meio dos seguintes tipos de formação: ensino familiar (circo família); formação continuada ou especializada em escolas preparatórias ou com mestres reconhecidos; em instituições de ensino técnico; e ainda a partir de cursos de nível superior.

A atuação profissional vem sendo amplamente estudada, principalmente no que tange a suas relações históricas (BOLOGNESI, 2003, 2009, 2010; SILVA, 2007; SILVA; ABREU, 2009); a suas transformações estéticas (FAGOT, 2010; MALEVAL, 2009; ROSEMBERG, 2004;WALLON, 2009;) e às relações econômicas desse mercado (DAVID-GIBERT, 2006).

Alguns outros estudos são dedicados a discussão acerca da formação do profissional circense: a formação desse artista e as transformações históricas no Brasil (SILVA, 2011); a socialização na formação profissional em escolas especializadas da França (SALAMERO, 2009) e a formação artística na Escola Nacional de Circo (VEIGA, 2007).

Precisamos ampliar e aprofundar os debates em torno da formação profissional, identificando quais medidas de curto, médio e longo prazo contribuirão para o seu reconhecimento oficial pelos órgãos governamentais.

3.2.2. Lazer

O circo é uma arte intimamente ligada ao divertimento (HOTIER, 2001) e ao entretenimento. O âmbito do lazer nasce juntamente com o artístico, o que faz com que não possamos dissociar esses dois âmbitos: quando uma destreza é apresentada e o público ou o

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espectador está ali pela vontade de presenciar e contemplar tal ação, entendemos que esses dois âmbitos já se faziam presentes. As pessoas se divertiam, assistiam às peripécias dos saltimbancos, funâmbulos e dançarinos de corda (Idade Média), ou às destrezas apresentadas pelos acrobatas na Antiguidade grega (1.500 a.C.), ou mesmo às habilidades corporais e de manuseio de materiais no Egito e na China antigos (3.000 a.C.).

Contudo, pensar esse âmbito nessa perspectiva seria simplificar demais, mesmo porque o conceito de lazer vai se desenvolver em meados do século XX, quando se torna um fato social, nascido da extensão do tempo livre pela redução do tempo de trabalho (DUMAZEDIER, 1994). Dessa forma, poderíamos pensar em algumas atividades que fazemos em nosso tempo livre.

Seria necessário lembrar a televisão, os passeios de carro, as viagens, bem como as novas práticas do corpo e da afetividade, além de tudo que é lucrativo ou não, interessado ou desinteressado nas atividades escolhidas fora das obrigações profissionais, familiares e escolares, fora dos compromissos socioespirituais ou sociopolíticos do tempo livre... (Ibid, p. 30)

Aqui poderíamos manter a relação de espetáculo/espectador entre o circo e a população em geral. Nesse período, o circo, enquanto entretenimento, constituiu uma das inúmeras atividades ou formas de divertimento e de se passar o tempo livre. Em estudo longitudinal realizado na França60, entre 1956 e 1986, Dumazedier (1994) nos aponta que muitas atividades tiveram um aumento de participação da população61.

Elas foram lentamente liberadas e desenvolvidas pela conquista social do tempo livre, acompanhando um nível de vida mais elevado a ponto de permitir uma expressão social mais forte de si mesmo através do corpo, do coração ou do espírito, não somente para alguns ociosos privilegiados mas inegavelmente para todos os trabalhadores. (Ibid., p.48)

60 Pesquisa realizada na base de 1/20 junto à população de Annency (França), entre os anos de 1956 e 1986

(DUMAZEDIER, 1994, p.38). Em outro estudo realizado na cidade de Americana (Brasil), de 1973 a 1981,foram observadas as mesmas tendências. As práticas corporais do tempo livre aumentaram em todas as áreas esportivas e extraesportivas (corrida, ginástica etc.), sendo praticadas de tempos em tempos por 1/3 da população adulta. Entre as mulheres, o crescimento foi mais intenso no que se refere à manutenção da forma e da expressão.

61Entre elas: boliche de parque, ginástica, tênis, frequência ao cinema, ao teatro e concertos, fotografia

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O que se percebe é que o circo se relaciona com o lazer até o início da década de 1990, ainda no formato de entretenimento (divertimento), seja a partir dos espetáculos na lona, nas intervenções em parques temáticos ou nas apresentações em espaços públicos. Segundo Marcellino (2007), estudos realizados no âmbito do lazer apontam que existem três pilares que sustentam as propostas nessa esfera do conhecimento, sendo eles: o entretenimento, o descaso e o desenvolvimento pessoal e social.

Em relações gerais, para se compreender o lazer, é preciso levar em conta alguns aspectos (MARCELLINO, 2007, p. 10-11):

- a cultura vivenciada no tempo disponível das obrigações profissionais, escolares, familiares e sociais.

- o fenômeno gerado historicamente, do qual emergem valores questionadores da sociedade como um todo, e sobre o qual são exercidas influências da estrutura social vigente.

- um tempo privilegiado para a vivência de valores que contribuam para mudanças de ordem moral e cultural.

Para o autor, o lazer é entendido:

Como a cultura – compreendida no seu sentido mais amplo – vivenciada (praticada ou fruída), no “tempo disponível”. É fundamental como traço definidor, o caráter “desinteressado” dessa vivência. Não se busca, pelo menos basicamente, outra recompensa além da satisfação provocada pela situação. A “disponibilidade de tempo” significa possibilidade de opção pela atividade prática ou contemplativa. (Marcellino, 1995, p.31)

Ou seja, o circo, enquanto fenômeno artístico e contemplativo, como forma de entretenimento e divertimento, pode ser considerado uma forma de lazer.

Podemos identificar um novo mercado ou um novo modo de ver o circo e suas relações com o lazer: enquanto “tempo livre”, com a abertura dos conhecimentos circenses aos sujeitos históricos que não fazem parte da estrutura circo-família, como já foi amplamente discutido no capítulo anterior. Assim, a partir da década de 1980, podemos identificar um novo mercado ou um novo modo de ver o circo e suas relações com o lazer,

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enquanto “tempo livre” (DUMAZEDIER, 1994, p.25), com a abertura de escolas com um viés não profissional, conhecidas como “écoles de loisir” (FFEC e FEDEC) ou “escuelas recreativas de circo” (BROZAS POLO, 2004).

A prática do circo neste âmbito terá um enfoque lúdico, com o objetivo de permitir o contato com a cultura circense e o desenvolvimento das atividades sem o enfoque da performance de alto nível (profissional). O foco não está no aspecto técnico e sim na sensação de “prazer, diversão e satisfação” (BORTOLETO; MACHADO, 2003).

Não há dúvidas de que o circo, enquanto atividade de lazer, satisfaça os interesses, individuais ou coletivos, classificados em seis áreas fundamentais62: artísticos, intelectuais, físicos, manuais, sociais e turísticos. Em outras palavras, a escolha, a opção, em termos de conteúdo, está diretamente ligada ao conhecimento das alternativas que o lazer oferece e da distinção das áreas abrangidas pelo conteúdo do lazer (MARCELLINO, 2007).

Assim, entendemos que o circo pode satisfazer os:

- interesses artísticos, inseridos no domínio do campo do imaginário, das imagens, das emoções e dos sentimentos, abordando um conteúdo estético e que configura a beleza do encantamento;

- interesses físicos e esportivos, enquanto atividades em que prevalece o movimento, como uma prática de atividade física;

- interesses manuais relativos à capacidade de manipular e transformar objetos ou materiais;

- interesses sociais, quando se procura fundamentalmente o relacionamento, os contatos face-a-face; neste caso, a predominância deixa de ser cultural e passa a ser social.

Dessa forma, o circo e o lazer vêm sendo retratados em alguns trabalhos, principalmente enquanto prática de atividade física, como: condicionamento físico (MEDEIROS, 2004; TUCUNDUVA; PELANDA, 2012); uma nova possibilidade de lazer

62Baseado nos seguintes trabalhos: DUMAZEDIER, J. Planejamento de lazer no Brasil: a teoria sociológica da decisão. São Paulo: SESC, 1980; CAMARGO, L. O de L. O que é lazer. São Paulo:Brasiliense, 1986.

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(OLIVEIRA, 2008); prática nas academias de ginástica na região de Campinas (SOARES; BORTOLETO, 2011);e até mesmo possibilidade de atividade para colônia de férias temática (DUPRAT, 2012).

Mas ainda há poucos encontros e debates de profissionais, professores e investigadores dos campos das artes, das artes circenses e do lazer. Ainda que partilhem determinadas reflexões, entendimentos e mesmo posicionamentos políticos, “ainda persiste um curioso afastamento entre os que estão envolvidos com o campo do lazer e os que militam no campo da arte” (MELO, 2007, p.65), um campo de atuação ainda pouco estudado e explorado.

3.2.3. Educativo

Muitos acontecimentos ocorridos ao longo da trajetória dos circenses podem exemplificar as várias relações entre o circo e o âmbito educativo.

Primeiramente, devemos destacar o importante fato de o circo tradicional ser uma escola única e permanente (SILVA; ABREU, 2009), com aprendizagens adquiridas no interior do mundo da lona, que formava e qualificava seus trabalhadores ética e profissionalmente. Como visto anteriormente, os jovens artistas receberam diretamente dos mestres e foram educados por meio da transmissão oral de saberes, de valores, conhecimentos e práticas, e resgatavam os conhecimentos de seus antepassados, imbuídos de memórias das relações sociais e de trabalho, carregados de uma metodologia de ensino/aprendizagem que garantia (e garante) a formação de profissionais circenses (SILVA, 2011). Esse tipo de estrutura permanece sendo o único modo de formação artística e profissional até o século XX, mais precisamente até a década de 197063.

Ao pensar o circo e suas funções educativas, devemos colocar em evidência a estrutura e as diretrizes da educação. Durante a história circense, observamos diversas aproximações e distanciamentos com diferentes áreas do conhecimento, como o teatro, a dança, a ginástica, a educação física, entre outras. Muitas dessas aproximações se deram dentro do sistema educacional formal.

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Para os artistas circenses tradicionais, o circo, além de exercitar o corpo, desenvolve valores morais, éticos e de convivência. Porém, essa não era a visão da ginástica científica. Os higienistas e pedagogos criticavam os acrobatas e funâmbulos pelos excessos do corpo e viam o circo como uma prática sem propósito, com gasto de energia desnecessário. Devemos salientar que estamos falando do período de consolidação do estado burguês e da burguesia como classe (SOARES, 2004). Era necessário investir na construção de um novo homem e, para tanto, fazia-se uso de um discurso de retidão corporal, que pretendia estabelecer uma ordem lógica nas atividades e uma adequação do tempo ou, mais precisamente, uma economia de energias (SOARES, 1998).

No início do século XIX, em diferentes países da Europa, principalmente Alemanha, Suécia e França, houve o desenvolvimento do Movimento Ginástico Europeu (LANGLADE; LANGLADE, 1970) construído a partir das relações cotidianas, dos divertimentos em festas populares, dos espetáculos de rua, do circo e dos exercícios militares, bem como dos passatempos da aristocracia (SOARES, 2001).

Mas, para que a ginástica fosse aceita enquanto movimento científico, somente os princípios de disciplina e ordem não foram suficientes; era necessário que se rompesse com o campo do divertimento, e assim, com o circo.

[...] a retórica de negação do circo nos escritos sobre a ginástica científica no século XIX foi-se ampliando. Acentuou-se, por exemplo, o temor ao imprevisível que o circo, aparentemente, apresentava. Seus artistas de arena, em suspensões e gestos impossíveis e antinaturais; a mutação constante de seus corpos transformou-se numa ameaça ao mundo de fixidez que se desejou criar (Ibid., p. 26).

Na visão dos profissionais que cuidavam do corpo (médicos higienistas), o circo vinha contra a ideia de disciplina e ordem burguesa. No que se refere aos usos do corpo, era uma forma perigosa e totalmente ausente de utilidade. Para tais profissionais, a atividade física fora do mundo do trabalho devia ser útil ao trabalho; em lugar do universo gestual do circo, nasceriam as séries de exercícios físicos, pensados, exclusivamente, para serem aplicados com finalidade específicas, úteis, e não como mero entretenimento (SOARES, 2001).

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Seguindo essa corrente de pensamento, o principal nome da ginástica científica na França foi o coronel Amoros64, que oferecia um espetáculo controlado (Ibid.) dos usos do corpo, um espetáculo protegido e trazido para dentro das instituições militares. Segundo a Soares (2001), em princípio do século XIX, Amoros regularmente convidava a imprensa e o grande público de Paris ao seu ginásio e, “no decorrer de sua ‘aula’ (ou seria de seu espetáculo?), chegava a arrancar aplausos de uma plateia desprovida de conhecimentos para julgar seu conteúdo” (Ibid., p. 26).

Em 1836, Jean Léotard, discípulo de Amoros, retorna a Toulouse, sua cidade natal para compartilhar os conhecimentos adquiridos em Paris e praticar os métodos amorosiennes (LARTIGUE, 2009). Alguns anos mais tarde, abre seu próprio ginásio e seu filho Jules Léotard, depois de vivenciar e praticamente crescer dentro desse ginásio, com o passar dos anos, vai desenvolver um novo aparelho circense, o trapézio volante, derivado das cordas aéreas, apresentando esse número em diversos circos e music halls existentes na