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Capítulo 1. Viajar e escrever sobre o Brasil

1.2. A nação do futuro, ou o futuro da nação

Os sonhos dourados a que se entregara o jovem Denis ao embarcar para o Brasil acabaram caindo por terra: ele não conseguiu um navio para o Oriente ou uma promoção no consulado, tampouco enriqueceu como negociante. Todos esses motivos parecem ter contribuído para que decidisse antecipar sua volta à Europa, logo após a expedição pelo interior da Bahia. Sua carteira continuava vazia, é verdade, mas ele trazia consigo uma experiência de quase quatro anos em um território pouco conhecido entre os europeus. Ali encontrou sua porta de entrada para o mercado editorial francês. Mais tarde, diria o seguinte a esse respeito: “As lembranças que eu recolhera começaram, no entanto, a se desenvolver, resolvi dar alguma utilidade às minhas viagens e minha carreira literária começou”.139 Seu testemunho deixa evidente que nenhuma singularidade irredutível,

139 No original: “Les souvenirs que j’avais recueillis commencèrent cependant à se développer, je résolus de

baseada nas memórias juvenis, teria levado o autor a escrever sobre o Brasil – o que põe em xeque a opinião da maioria de seus biógrafos, segundo os quais tal abordagem temática seria fruto de um amor genuíno que, de alguma forma, precisaria se materializar na publicação de obras sobre o assunto.140 Na verdade, se Denis se consagrou à geografia, à história e à etnografia brasileiras141, foi também porque percebeu a necessidade de conferir à sua produção bibliográfica o que Bourdieu chama de “marcas de distinção”, ou seja, “uma especialidade, uma maneira, um estilo” por meio dos quais os produtores culturais, individualmente ou em grupo, conseguem delimitar suas propriedades, mais ou menos visíveis, distinguindo-se, dessa forma, de seus concorrentes.142

Já em 1821, ele e um antigo companheiro de viagem, Hippolyte Taunay,143

lançaram os seis volumes da obra denominada Le Brésil, ou Histoire, mœurs, usages et

coutumes des habitants de ce royaume,144 que integrou a coleção “Mœurs et usages, arts et métiers de tous les peuples”, do editor parisiense Auguste Nepveu.145 Como informa o texto introdutório impresso no primeiro volume, cada autor se responsabilizou por uma tarefa bastante específica. A Taunay couberam a redação da parte dedicada à história brasileira, a descrição de algumas capitanias e a realização das numerosas gravuras, sendo

relatives à son éducation, à ses premiers voyages et aux débuts de sa carrière littéraire. 1825. BSG, Fundo

Ferdinand Denis, Ms. 4322 (2 f). Disponível em

<https://archive.org/stream/MS4322/BSG_MS4322#page/n0/mode/2up>. Acesso em 20 fev. 2020.

140 Ver, por exemplo: DORIA, Luís Gastão de Escragnolle. Um amigo do Brasil (Ferdinand Denis). Revista

Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1912, n. 75, p. 219-230; Henri. Ferdinand Denis. 1798-1890. In: Mélanges Américaines. Extrait du Compte rendu de la huitième session tenue à Paris en 1890 du Congrès international des Américanistes. Paris: Jean Maisonneuve, 1913. Disponível em <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k65400898>. Acesso em 20 fev. 2020.

141 Ver a lista completa da produção bibliográfica de Denis no Apêndice 2 da tese.

142 BOURDIEU, Pierre. O mercado de bens simbólicos. In: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas

simbólicas. Introdução, organização e seleção Sérgio Miceli. 8ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015. p. 109.

143 Filho do famoso pintor Nicolas Taunay, que participara da Missão Artística Francesa. Suas relações com

Denis começaram ainda em Salvador, em 1817, e parecem ter se estendido décadas afora, uma vez que ambos trabalharam juntos por mais de vinte anos na Biblioteca Santa Genoveva – desde 1845 ou 1846, quando Taunay entrou para o corpo de funcionários da referida instituição, até 1864, ano do falecimento desse último. Cf. “Nicolas-Antoine Taunay”. In: MICHAUD, Louis-Gabriel (dir.). Biographie universelle ancienne et moderne: ou histoire, par ordre alphabétique, de la vie publique et privée de tous les hommes qui se sont fait remarquer par leurs écrits, leurs talents, leurs vertus ou leurs crimes. v. 41. Paris: chez Madame C. Desplaces; Leipzig: librairie de F. A. Brockaus, 1864. p. 84-85.

144 DENIS, Ferdinand; TAUNAY, Hippolyte. Le Brésil, ou Histoire, mœurs, usages et coutumes des

habitans de ce royaume. Collection mœurs et usages, arts e métiers de tous les peuples. Paris: Nepveu, 1821-1822. 6 vol.

145 Foi também pela editora de Auguste Nepveu que Denis publicou as obras Buenos-Ayres et Paraguay, ou

Histoire, mœurs, usages et coutumes des habitants de ce royaume (1823) e La Guyane, ou Histoire, mœurs, usages et coutumes des habitants de cette partie de l’Amérique (1823).

uma parte desenhada a partir de sua própria experiência nesses locais e a outra inspirada nos relatos de outros aventureiros pelas Américas.146 Já Denis:

[...] que avançou certa distância no interior, aproveitou-se das observações que fez nesses locais. No primeiro volume, encarrega-se da geografia, da história natural e dos costumes dos antigos indígenas. Nos outros ele descreve São Paulo, Santa Catarina, Mato Grosso, Goiás, Bahia e sua capital, Porto Seguro, onde existem selvagens dos quais esteve mais próximo para observar; Rio Grande do Norte, Pará e muitas outras províncias menos consideráveis do norte e do sul.147

As informações sobre o Brasil disponíveis em língua francesa até aquele momento se limitavam basicamente à região litorânea, sobretudo às cidades de Rio de Janeiro e Salvador. Denis, Taunay e o explorador Jacques Étienne Arago – autor de

Souvenirs d’un aveugle (1822) – conseguiram ultrapassar tal marca, descrevendo

igualmente o interior do território brasileiro.148 Para tanto, foi-lhes imprescindível o domínio da língua portuguesa, assim como a leitura dos relatos deixados por viajantes portugueses, principalmente o padre Manuel Aires de Casal, que “serviu todas as vezes que foi necessário esclarecer alguns pontos de geografia, ou de descrever as capitanias sobre as quais os viajantes tinham até o momento guardado o mais profundo silêncio”.149 Foi por meio da obra do religioso que eles tomaram conhecimento da existência da carta de Pero Vaz de Caminha, resgatada por Casal nos arquivos da Marinha no Rio de Janeiro e reproduzida, com alguns cortes, no rodapé da Corografia Brasílica (1817).150 Denis

traduziu a epístola para o francês, publicou-a em um jornal especializado no tema viagens151 e depois a inseriu no sexto e último volume de sua publicação com Taunay, ao

146 Cf. DENIS; TAUNAY, Op. cit., p. xvi.

147 No original: “ (...) qui s’est avancé à quelque distance dans l’intérieur, a mis à profit les observations qu’il

y a faites. Dans le premier volume, il s’est chargé de la géographie, de l’histoire naturelle, et des mœurs des anciens indigènes. Dans les autres, il décrit Saint-Paul, Sainte-Catherine, Mato-Grosso, Goyas, Bahia et sa capital, Porto-Seguro, où existent les sauvages qu’il a été le plus à portée de voir; Rio-Grande-do-Norte, Para et plusieurs autres provinces moins considérables du nord et du sud”. Ibidem, p. xii-xiii.

148 BRZOZOWSKY, Op. cit., p. 37; POTELET, Jeanine. Le Brésil vu par les voyageurs et les marins

français. 1816-1840: Témoignages et images. Paris: Éditions L’Harmattan, 1993. p. 65.

149 No original: “a servi toutes les fois qu’il a été question d’éclaircir quelques points de géographie, ou de

décrire mème des capitaineries sur lesquelles les voyageurs avaient jusqu’à présent gardé le plus profond silence”. DENIS; TAUNAY, Hippolyte. Op. cit., p. xv.

150 CASAL, Padre Manuel Ayres de. Corografia brazilica, ou relação historico e geografica do reino do

Brazil. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817. 2 vol.

151 CAMINHA, Pero Vaz de. “Lettre inédite de Pedro Vas de Caminha sur la découverte du Brésil”. Trad.

Ferdinand Denis. Journal des voyages, découverts et navigations modernes ou archives géographiques et statistiques du XIXe. Siècle par J. F. Verneur, Paris, février 1821, p. 157-189. Estas considerações são um desdobramento de uma comunicação apresentada no III Encontro Nacional Cultura e Tradução (ENCULT), III Encontro de Tradutores – A Tradução de Obras Francesas no Brasil. Cf. DONEGÁ, Ana Laura. Ferdinand Denis, tradutor de textos sobre o Brasil. Revista Cultura e Tradução, João Pessoa, v. 3, n. 1, p. 97-109, 2014.

lado de um resumo da narrativa de Hans Staden, Duas viagens ao Brasil (1557), praticamente desconhecida até então. Dessa forma, ajudou na divulgação de fontes inéditas ou ignoradas acerca da história da América portuguesa e, simultaneamente, na própria reflexão a respeito do Brasil, uma vez que, nas décadas seguintes, ambos os documentos seriam empregados nos discursos sobre a identidade nacional.152

Outra importante contribuição da obra reside nas múltiplas cenas da vida cotidiana brasileira que aparecem em suas páginas. No capítulo sobre a capitania de Pernambuco, por exemplo, Taunay falou do transporte de pessoas e objetos feito à custa de escravos, do vigoroso comércio de mercadorias no centro de Recife, dos belos passeios e pomares de Olinda, da pesca de peixes no Rio São Francisco e da encenação, muito desastrosa, a seu ver, de algumas peças de Molière nos teatros regionais. Denis, na parte dedicada à Bahia, repetiu certos episódios narrados em suas cartas e diários, tratando de questões como as festividades religiosas, a musicalidade dos negros e o Carnaval. Mas não deixou de trazer novos assuntos, descrevendo a venda de africanos nos armazéns do centro de Salvador, todos praticamente nus e de cabelos raspados; a grande movimentação na parte comercial da cidade, com vendedores, compradores e escravos andando por todos os lados; as negras carregando com desenvoltura vasos de barro cheios de água em suas cabeças; a fabricação de geleias e de enfeites florais no convento da Solidade e, até mesmo, a caça de baleias na costa litorânea, que durava vários dias e terminava, na maior parte das vezes, com a vitória dos caçadores e o mar tingido de vermelho. Se, por um lado, a publicação inovou com suas coloridas cenas do dia a dia sob os trópicos, por outro não deixou de carecer de dados científicos e de uma investigação mais cuidadosa acerca das possibilidades disponíveis no âmbito das relações comerciais. Essa seria, na realidade, a regra geral para as narrativas de viagens sobre o Brasil veiculadas em francês até meados

Disponível em <http://www.periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/ct/article/view/21559/12167>. Acesso em 20 fev. 2020.

152 A respeito das relações entre a historiografia nacional e os relatos dos viajantes europeus ao longo do

século XIX, conferir: COSTA, Wilma Peres. Narrativas de viagem no Brasil do século XIX: formação do Estado e trajetória intelectual. In: RIDENTI, Marcelo; BASTOS, Elide Rugai; ROLLAND, Denis (org.). Intelectuais e Estado. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 31-48; CEZAR, Temístocles. Varnhagen e os relatos de viagem do século XI: ensaio de recepção crítica. In: Anos 90, Porto Alegre, n. 11, p. 38-58, julho de 1999. Disponível em <http://www.seer.ufrgs.br/index.php/anos90/article/view/6541/3893>. Acesso em20 fev. 2020; CEZAR, Temístocles. O poeta e o historiador: Southey e Varnhagen e a experiência historiográfica no Brasil do século XIX. História Unisinos, São Paulo, v. 11, n. 3, p. 307-312, set.-dez. 2007. Disponível em <http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/5909>. Acesso em20 fev. 2020.

do século XIX, de teor antes descritivo que analítico, sobretudo no que tange às ciências naturais e ao comércio.153

Mantendo essas mesmas diretrizes mais expositivas, três anos depois os dois autores lançaram, novamente pela Nepveu, um livreto de 123 páginas, que ganhou o título de Notice historique et explicative du Panorama de Rio de Janeiro (1824).154 O objetivo dessa vez era explicar a tela Panorama da Cidade do Rio de Janeiro (1824), elaborada por Guillaume Fréderic Ronmy com base em algumas aquarelas do irmão mais novo de Hippolyte, Félix Émile Taunay, que estava sendo exposta à época no famoso Boulevard des Capucines. Conforme indica o próprio título, a obra de Ronmy oferece uma ampla visão da corte brasileira. Nela o artista reproduziu uma série de construções, montanhas e praias que podem ser observadas a partir do antigo forte da Misericórdia, localizado na montanha de mesmo nome, em frente à Ilha das Cabras: desde a Igreja de São José, o Pão de Açúcar, a Igreja de São Sebastião, os Fortes de Santa Cruz, Lage e São João, a Praia de Botafogo, a Igreja da Glória, os bairros da Lapa e do Catete, a Montanha da Tijuca, até chegar à Praia de Don Manuel com suas numerosas embarcações. A publicação de Denis e Taunay servia como uma espécie de guia para quem desejasse compreender a tela, explicando cada um dos pontos representados por Romny e trazendo, ao mesmo tempo, informações sobre a história, a geografia e a política brasileiras – uma tarefa que se tornou particularmente fácil, pois eles reaproveitaram longos trechos de Le Brésil. De acordo com Dias, parece ter escapado a ambos a dimensão política desejada pelo artista que, ao ilustrar D. Pedro I e José Bonifácio a cavalo, em posição de destaque, possivelmente pretendia contribuir com a veiculação de uma nova imagem do Brasil na Europa, capaz de englobar seu status recém-adquirido de nação independente.155 Assim, além de não tecerem quaisquer comentários a respeito do episódio do grito do Ipiranga, os dois escritores continuaram empregando o termo América portuguesa ao se referirem ao território brasileiro. Contudo, precisamos lembrar que foi apenas com o Tratado do Rio de Janeiro,

153 POTELET, Op. cit.

154 DENIS, Ferdinand; TAUNAY, Hippolyte. Notice historique et explicative du Panorama de Rio de

Janeiro. Paris: Nepveu, 1824.

155 Félix Émile Taunay (1795-1881) veio com a família para o Brasil. Trabalhou como professor de Pintura e

Paisagem da Academia Imperial de Belas Artes, ajudou a fundar o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e deu aulas ao jovem d. Pedro II. Sua tela estava sendo exibida no famoso Boulevard des Capucines, em Paris, onde se costumava encontrar panoramas de outros artistas. Algumas personagens ilustres, como a duquesa de Angoulême, o duque de Orleans e D. Miguel – exilado na capital francesa devido às disputas políticas com o irmão, D. Pedro I – compareceram ao local, o que parece indicar que Ronmy e Taunay obtiveram certo sucesso, se não entre a crítica especializada, ao menos entre o grande público. Cf. DIAS, Elaine Cristina. Félix-Émile Taunay: cidade e natureza no Brasil. Tese (Doutorado em História). IFCH/Unicamp, Campinas, 2005. p. 307-388.

assinado em 29 de agosto de 1825, que Portugal e o restante do continente europeu reconheceram a Independência do Brasil – o que talvez possa explicar as escolhas lexicais feitas pelos dois autores.

Figura 3. Panorama do Rio de Janeiro segundo panorama pintado em Paris por G. F. Ronmy pelos desenhos de Félix Emilio Taunay (Salathé Friedrich, 18?)156

Tão logo o acordo foi firmado, Denis se apressou a contemplar essa nova realidade em seus estudos, dando início a uma parceria com os editores Jacques-Fréderic Lecointe e Étienne Durey, especialistas em obras historiográficas de tamanho reduzido e pequeno número de páginas, conhecidas com o nome de resumos históricos. Em 1825, ele lançou, sozinho dessa vez, o Resumé de l’histoire du Brésil, suivi du Resumé de l’histoire

de la Guyane (1825) e, logo na sequência, o Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’histoire littéraire du Brésil (1826).157 Com a última, entrou para história da historiografia literária nacional, tornando-se o primeiro autor a separar a literatura brasileira da portuguesa, com a qual até então ela aparecia associada.158 Já com a

primeira, obteve um dos maiores sucessos editoriais de toda sua carreira, uma vez que a publicação conquistou sucessivas edições na França, bem como traduções para vários idiomas, incluindo uma para o português, feita por Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde, publicada na cidade do Rio de Janeiro.159 Três anos mais tarde, saiu uma nova edição brasileira, revisada e ampliada por esse último, em cuja capa não consta mais o nome de

156 Não foi possível ter acesso ao panorama de Ronmy. A imagem reproduzida acima foi feita anos depois

por Salathé Friedrich (1793-1860), a partir da obra do primeiro artista.

157 DENIS, Ferdinand. Résumé de l’histoire du Brésil, suivi du Résumé de l’histoire de la Guyane. Paris:

Lecointe et Durey, 1825. Idem. Résumé de l’histoire littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’histoire littéraire du Brésil. Paris: Lecointe et Durey, 1826.

158 Veremos essa questão no capítulo 3 da tese.

159 DENIS, Ferdinand. Resumo de Historia do Brasil até 1828. Traduzido de Mr. Denis, correcto e

augmentado por H. L. de Niemeyer Bellegarde. Rio de Janeiro: Typ. Gueffier, 1831. Bellegarde nasceu em Portugal, mas se mudou para o Brasil aos cinco anos de idade. Formou-se pela Academia Militar do Rio de Janeiro e também em bacharel em letras pela Universidade de Paris. Cf. a respeito do tradutor: Necrologia. Revista do Instituto Historico e Geographico do Brasil, Rio de Janeiro, T. I, 1839, p. 138-140.

Denis.160 Bellegard procurou justificar tal procedimento, alegando que suas modificações

teriam dado origem a um novo livro, apenas inspirado no Resumé de l’histoire du Brésil. Consequentemente, a seu ver, não haveria mais motivos para o nome do francês continuar associado à obra.

É verdade que Bellegarde pouco modificou o conteúdo original, preocupando- se apenas em substituir palavras por sinônimos, inverter a ordem de frases, eliminar e acrescentar parágrafos. Entretanto, é verdade também que o tradutor parece ter sido bem- sucedido na tarefa de adaptar a publicação para os jovens estudantes brasileiros, já que a sua nova edição rapidamente se tornou o manual de história nacional utilizado pelos professores do colégio D. Pedro II. Ademais, as fronteiras entre traduzir e adaptar eram ainda bastante tênues no século XIX, de modo que o próprio Denis alguns anos antes traduzira a Carta de Caminha com uma liberdade surpreendente para os parâmetros atuais.161 A insatisfação do autor francês com a contrafação de sua obra jamais veio a se tornar pública, mas ficou registrada nas páginas finais do seu exemplar pessoal do Resumé

de l’histoire du Brésil, guardado nos dias de hoje na Biblioteca Santa Genoveva:

O indivíduo que tão estranhamente traduziu este livrinho, ou melhor, que o desfigurou, Henrique Luiz de Niemeyer Bellegarde, nasceu em Lisboa (...). Foram impressos mais de 1.500 exempl. da 1ª. ed. desta tradução ridícula. / Esta primeira edição é de 1831. Tomei conhecimento do livro por intermédio de Caetano de Moura em 13 de 7bro. de 1839. O exemplar que me foi trazido pertence a Mr. Guedes. / Em 1834, saiu no Rio de Janeiro uma segunda edição do Résumé de l’histoire du Brésil por Niemeyer Bellegarde com aprovação do governo para que este livro fosse adotado nas escolas. O tradutor pôs uma nota engraçada na folha de rosto do livro, na qual anuncia que assume toda a responsabilidade pela obra; que é bem verdade que ele traduziu algumas páginas minhas, mas que comunicava esta circunstância somente por desencargo de consciência, mas que, definitivamente, como ele se tinha visto compelido a fazer inúmeras correções no volume, não via absolutamente porque este não seria publicado em seu nome. Que desfaçatez! Só tomei conhecimento desta 2ª. ed. em 27 de julho de 1842.162

Assim como Bellegarde, outros historiadores contemporâneos se apropriaram do conteúdo do Resumé de l’histoire du Brésil sem fazer qualquer referência ao nome de Denis. O general José Ignácio de Abreu e Lima, por exemplo, copiou-lhe um longo trecho

160 BELLEGARDE, Henrique Luís de Niemeyer. Resumo de Historia do Brasil por H. L. de Niemeyer

Bellegarde. Obra adoptada pelo governo para uso das escolas. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Typ. R. Ogier, 1834.

161 Ver a esse respeito: DONEGÁ, Op cit. 162 Apud: ROUANET, Op. cit., p. 169.

sobre a guerra de Palmares, no seu Compêndio da História do Brasil (1843),163 e Émile

LeFranc praticamente reproduziu ipsis litteris o que ele disse acerca da descoberta de minas de diamantes no interior de São Paulo e Minas Gerais, em Histoire d’Espagne et de

Portugal ainsi que de leurs colonies respectives (1846).164 Do lado francês, o sucesso da obra pode ser explicado por seu pioneirismo na descrição do Brasil, pouco tempo após o reconhecimento da independência política pela Europa. Desse lado do Atlântico, o motivo talvez seja outro, decorrendo ao que parece das opiniões otimistas, quase laudatórias, manifestadas pelo antigo viajante a respeito do território que visitara na juventude. Com efeito, em seu Résumé de l’histoire du Brésil, Denis deixou de lado os comentários mordazes encontrados em seus papéis como viajante, optando, em vez disso, por