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Capítulo 1. Viajar e escrever sobre o Brasil

1.1. Um viajante francês entre o inferno e o purgatório

1815, com a queda de Napoleão Bonaparte e a restauração dos Bourbons. Desde os primórdios do século XVI, no entanto, religiosos, soldados, corsários, comerciantes e outros aventureiros vindos da França aportavam na costa brasileira para tentar a sorte ou para participar dos projetos coloniais que o país se esforçava em implementar na então colônia portuguesa.68 Os relatos desses viajantes inicialmente associaram o Brasil, com sua

66 As cartas enviadas por Denis a Berthon nessa época dão uma ideia das dificuldades enfrentadas pelos

viajantes durantes os acessos de febre. Ver, por exemplo: DENIS, Ferdinand. [Carta a Pascal Berthon]. Salto Grande [Brasil], 13/09/1819. 1 doc. 4 p. BSG, Fundo Ferdinand Denis, Ms. 3417 (f. 81-82v). Disponível em <https://archive.org/stream/MS3417_f81_82#mode/2up>. Acesso em 20 fev. 2020.

67 O primeiro diário e as cartas foram publicados pela primeira vez por Léon Bourdon na revista da

Faculdade de Letras de Coimbra, em 1857. Já o segundo foi resgatado apenas em 2017 por Georges Orsoni no fundo Smith-Lesouëf da Biblioteca Richelieu, em Paris. Cf. BOURDON, Op. cit.; ORSONI, Op. cit.

68 A coroa francesa procurou em duas ocasiões implementar um projeto colonial no Brasil. O primeiro

episódio, conhecido como França Antártica, foi liderado por Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571) na Baía de Guanabara entre 1555 e 1560. Dele participaram alguns religiosos, como o frade franciscano André Thevet (1516-1590) e o calvinista Jean de Léry (153?-1613?), cujos relatos alcançaram grande popularidade.

natureza exuberante, rios de águas cristalinas, solos férteis e clima primaveril, ao Éden ou à terra prometida.69 Tal visão idílica se estendia aos nativos da terra, retratados, na maior parte das vezes, como receptivos aos franceses e fáceis de serem civilizados (ainda que polígamos, antropofágicos e mais suscetíveis a influências satânicas70). A partir de meados do século XVII, essas imagens passaram a conviver com outras bastante negativas que viam por todos os lados sinais de um atraso no desenvolvimento natural da América e de uma degeneração dos homens que por aqui viviam. Alguns autores desse período – em sua maioria cientistas e filósofos que jamais atravessaram o oceano, vale a pena dizer – afirmavam que o Brasil, assim como o restante do continente americano, era uma terra pouco hospitaleira, com um clima excessivamente úmido e quente, dominada por uma natureza tacanha e habitada por indivíduos de grande debilidade física e moral.71

Antes de entrar no navio rumo ao Rio de Janeiro, Ferdinand Denis provavelmente teve acesso a alguns desses relatos que, embora recheados de fantasias e contradições, obtiveram grande popularidade entre os leitores europeus. Segundo Moreau, como toda família burguesa do início do século, os Denis provavelmente possuíam, em sua biblioteca particular, enciclopédias iluministas, estudos sobre a relação entre o homem e a natureza, além de obras voltadas direta ou indiretamente à temática do exótico – como De

l’esprit des lois (1748), o famoso tratado de teoria política de Montesquieu; Rapports du

Já o segundo, que entrou para a história com o nome de França Equinocial, ocorreu em São Luís, no Maranhão, entre 1612 e 1615. Algumas das narrativas mais importantes sobre esse período foram assinadas pelos capuchinhos Claude d’Abbeville (15?-1632) e Yves d’Évreux (1570-163?). Esse último, aliás, seria resgatado por Ferdinand Denis, como veremos no capítulo 4.

69 Ver a esse respeito: THEVET, André. Singularidades da França Antártica. Tradução, prefácio e notas de

Estevão Pinto. São Paulo; Rio de Janeiro: Ed. Nacional, 1994. p. 49; BARRÉ, Nicolas. Lettres sur la navigation du Chevalier de Villegaignon (1555-6). Apud: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil: Nicolas‐Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 32. Sobre a permanência de tal temática no imaginário coletivo brasileiro até os últimos anos do século XIX, consultar: CARVALHO, José Murilo de. O motivo edênico no imaginário social brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, n. 38, outubro 1998. Disponível em <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300004>. Acesso em 13 ago. 2020.

70 Cf. LABORIE, Jean-Claude. Les diables brésiliens à l’épreuve de la colonisation. In: HOLTZ, Grégoire;

DE ROLLEY, Thibaut Maus (dir.). Voyager avec le diable. Voyages réels. Voyages imaginaires et discours démonologiques (XVe.-XVII. siècles). Paris: PUPS, 2008. p. 221-234.

71 Em 1749, o naturalista Leclerc de Buffon viu no pequeno porte dos quadrúpedes americanos uma prova

para a sua tese de que a natureza não conseguiria se desenvolver plenamente no Velho Mundo. Em 1768, o abade Cornelius de Pauw retomou as ideias apresentadas anteriormente por Buffon, afirmando “que assim como os grandes animais não podiam vingar no Novo Mundo, a espécie humana estava também destinada a degenerar nessas regiões sem chegar a atingir a maturidade”. Pouco tempo depois, mais exatamente no ano de 1775, Rousseau lançou o mito do bom selvagem americano – o que mostra a coexistência de ideias divergentes sobre o Brasil no período em questão. Cf. BRZOZOWSKI, Jerzy. Rêve exotique: images du Brésil dans la littérature française (1822-1888). Cracovie: Abrys, 2001. p. 17-24; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil: Nicolas‐Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de d. João, Op. cit., p. 41-43.

physique et du moral (1892), do fisiologista e filósofo Pierre Jean Georges Cabanis; ao

menos parte da coleção Histoire Naturelle, générale et particulière, avec la description du

Cabinet du Roi (1749-1804), organizada pelo conde de Buffon; as coletâneas poéticas Les Trois règnes de la nature (1808) e Les Plantes (1797), de Jacques Dellile e Réne-Richard

Castel, respectivamente; assim como Robinson Crusoe (1719), Les Incas ou la destruction

du Pérou (1777) e Paul et Virginie (1787), três narrativas em prosa ficcional ambientadas

em regiões pouco conhecidas na Europa, que foram escritas por Daniel Defoe, Jean- François Marmontel e Bernardin de Saint-Pierre, nessa ordem.72 Trata-se evidentemente de uma suposição. É certo, porém, que em outubro de 1818, já na cidade de Salvador, o jovem francês (re)leu a obra Dictionnaire raisonné universel d’histoire naturelle; contenant l’Histoire des animaux, des Végétaux et des Minéraux, et celle des Corps célestes, des Météores et des autres principaux phénomènes de la Nature (1764), escrita pelo naturalista Jacques-Christophe Valmont de Bomare (1731-1807), um dos mais conhecidos desse período.73

Embora a publicação não trate apenas do Brasil, Valmont de Bomare dedicou alguns verbetes para descrever, tão minuciosamente quanto lhe foi possível, a fauna e a flora da então colônia portuguesa. Falou das árvores frondosas de maior ou menor porte existentes por essas terras, de seus frutos saborosos e de suas copas sempre repletas de folhas esverdeadas, dos pássaros coloridos e de seus cantos alegres, dos peixes encontrados à abundância nos rios caudalosos ou na região litorânea, e dos mamíferos, geralmente menores do que aqueles de mesma espécie na Europa, segundo o naturalista. Deu especial atenção aos animais típicos das regiões tropicais a exemplo do tucano, da anta, do tamanduá e do bicho-preguiça, procurando compará-los com aqueles conhecidos por seus leitores. Não deixou de alertar também para os perigos de uma aventura pelo interior do território brasileiro, sob a alegação de que pelo caminho poderiam ser encontrados seres monstruosos, metade peixe e metade homem, conhecidos pelo nome de ypapia,74 bem

72 Cf. MOREAU, 1932, p. 10.

73 Em uma passagem de 09 de outubro de 1818 de seu diário, Denis afirmou ter emprestado dois volumes da

biblioteca de Salvador: uma obra não identificada, escrita por Valmont de Bomare, e um Dictionnaire des moeurs, cujo autor deixou de mencionar. A partir do catálogo da referida biblioteca desse mesmo ano, Moraes chegou à conclusão de que a primeira corresponde ao já referido Dictionnaire raisonné universel d’histoire naturelle e o segundo, ao Dictionnaire des moeurs, de Jean François Bastide. Cf. MORAES, Ruben Borba de. Livros e bibliotecas no Brasil colonial. Brasília: Briquet de Lemos Livros, 2006. p. 169.

74 VALMONT DE BOMARE, Jacques-Christophe. Ypapia. In: Dictionnaire raisonné universel de l’histoire

naturelle avec plusieurs articles nouveaux & un grand nombre d’addition sur l’Histoire naturelle, la médecine, l’économie domestique & champêtre, les arts & le métiers. Nouvelle édition. T. douzième. Yverdon: 1769. p. 338.

como enormes serpentes, capazes de abocanhar e engolir de uma só vez mulheres grávidas.75 Com relação aos nativos, Valmont de Bomare se mostrou bem mais sucinto, limitando-se a dizer que não haveria uma diferença significativa entre os brasileiros, os mexicanos ou os peruanos: todos eles seriam, a seu ver, divertidos e enérgicos, porém pequenos, indolentes, franzinos, e inférteis (embora particularmente lascivos e precoces em assuntos ligados à sexualidade).76 Como muitos de seus contemporâneos, ele acreditava que o clima poderia influenciar tanto as características internas (humor, sagacidade e disposição ao trabalho físico ou às atividades intelectuais) quanto as externas (altura e peso) dos seres humanos. Defendia ainda a superioridade física e psicológica dos europeus, principalmente de seus compatriotas franceses – daí a presença, no interior de sua coleção, de longos trechos sobre a beleza das francesas, ou sobre a personalidade alegre e filosófica dos franceses.77

A experiência transatlântica se apresentou para Denis como uma grande oportunidade, se não de enriquecer, ao menos de confrontar as ideias reproduzidas por Valmont de Bomare e outros escritores contemporâneos em relação ao território brasileiro. Por isso, foi com um misto de entusiasmo e apatia, admiração e desprezo que seu olhar se dirigiu, em um primeiro momento, ao Brasil e aos brasileiros. Vemos essa oscilação já em uma carta de 12 de março de 1817, enviada para o pai da capital do império, em cujo território desembarcara semanas antes.78 Mesmo que tenha se mostrado encantado com a beleza e a diversidade de espécies do Jardim Botânico, criado em 13 de junho de 1808 por D. João VI (“Que vegetação! que Jardim de Plantas! É uma verdadeira estufa quente em céu aberto. Há, a duas léguas da cidade, um Jardim Botânico! Ele contém quase todas as plantas da Índia”79), e com a ampla coleção de livros da Real Biblioteca, conhecida nos

75 VALMONT DE BOMARE, Jacques-Christophe. Serpent. In: Dictionnaire raisonné universel de l’histoire

naturelle contenant l’histoire des animaux, des végétaux et des minéraux, et celle des corps célestes, des météores, et des autres principaux phénomènes de la nature. 4ème édition. V. 13. Lyon: Bruyset, 1791. p. 213.

76 VALMONT DE BOMARE, Jacques-Christophe. Homme. In: Dictionnaire raisonné universel de l’histoire

naturelle contenant l’histoire des animaux, des végétaux et des minéraux, et celle des corps célestes, des météores, et des autres principaux phénomènes de la nature. Nouvelle édition. T. quatrième. Paris: Brunet, 1775. p. 466-467.

77 Ibidem. p. 458.

78 Não se conhece a data exata da chegada de Ferdinand Denis ao Brasil. Há um intervalo de seis meses entre

sua carta de 03 de setembro de 1816, enviada da Ilha da Madeira, e a de 12 de março de 1817 em questão, que é a primeira assinada por ele do Rio de Janeiro da qual se tem notícias. Cf. BOURDON, Op. cit., p. 154.

79 No original: “Quelle végétation! quel Jardin des Plantes! C’est une vraie serre chaude en plein air. Il y a, à

deux lieues de la ville, un Jardin Botanique. Il renferme presque toutes les plantes de l’Inde. Ce qu’il y a de plus remarquable, c’est une culture de thé magnifique et préférable à celui de la Chine”. Cf. DENIS, Ferdinand. [Carta a Joseph-André Denis]. Rio de Janeiro [Brasil], 12/03/1817. 1 doc. 4 p. BSG, Fundo Ferdinand Denis, Ms. 3417 (f. 13-14v). Disponível em <https://archive.org/details/MS3417_f13_14>. Acesso

dias de hoje como Biblioteca Nacional do Brasil80 (“[…] a Biblioteca Pública é

suficientemente bem fornida de livros”81), não deixou de censurar o baixo número de lojas de livros existentes à época na corte (“Julgue as cidades, meu caro papai: há apenas quatro livrarias no Rio de Janeiro”82). Também se referiu de forma pouco lisonjeira às duas maiores cidades brasileiras da época, quando, comentando sua mudança do Rio de Janeiro para a Bahia, que deveria se realizar em breve, afirmou categórico: “Parto para esse território [Salvador] apenas em alguns dias. É deixar o Inferno para ir ao Purgatório”.83 Adiante na mesma carta, voltou a associar o Brasil a esses dois espaços bíblicos, aludindo ao quadro Caïn après la meurtre d’Abel (1812), que o pintor histórico Paulin Guérin expusera no Salão de Paris no ano anterior: “É aqui que se pode apreciar o Caïn, do Sr. Guérin; sou todos os dias testemunha do sublime efeito que ele representou”.84

Existem ao menos duas possibilidades para esse último paralelo. Na primeira delas, o viajante francês estaria se referindo ao cenário retratado por Guérin, sobretudo às cores vibrantes utilizadas por ele na composição do nascer ou do pôr do sol (como o vermelho-alaranjado e o amarelo vivo). Alguns anos mais tarde, aliás, em Scènes de la

nature sous les tropiques (1822), Denis descreveria da seguinte forma o radiante encontro

entre os raios do sol com as águas do mar sob o crepúsculo nas regiões equinociais: “ali

em 20 fev. 2020. Criado em 13 de junho de 1808 por D. João VI, o Jardim Botânico da cidade do Rio de Janeiro já foi conhecido como Real Horto, ou Viveiro da Lagoa de Rodrigo de Freitas. Trata-se de um jardim de aclimatação de plantas vindas de outros países, inclusive da Índia, como aponta esse trecho da carta.

80 A história da biblioteca começou no final de 1807, quando a família real portuguesa fugiu para o Rio de

Janeiro a fim de escapar de uma eminente invasão das tropas napoleônicas. Partindo às pressas de Lisboa, a comitiva se viu impossibilitada de transportar a Real Biblioteca, considerada uma das melhores da época, e deixou para trás os cerca de 60 mil livros que compunham seu acervo. A única exceção coube à coleção de Antônio de Araúgo de Azevedo, o conde da Barca, enviada em 1807 no navio Medusa e adquirida pela coroa lusitana doze anos depois, em um leilão. Uma vez instalado na nova corte tropical, D. João VI ordenou que seus livros e documentos fossem encaminhados para o Rio de Janeiro. Eles chegaram aos poucos, em três remessas: a primeira em 1810 e as duas últimas no ano seguinte. Com a volta do imperador a Portugal em 1821, depois da Revolução dos Cravos, e a proclamação da Independência do Brasil, alguns meses mais tarde, a biblioteca virou motivo de disputa entre portugueses e brasileiros. Apenas em 1825 saiu um acordo que estipulava que o acervo poderia permanecer no Rio de Janeiro se D. Pedro I se comprometesse a indenizar a família portuguesa em 800 contos de réis, que foram pagos a partir de um empréstimo feito com a Inglaterra. Em 1814, a biblioteca foi aberta para consulta do público e atualmente ela é considerada pela Unesco a oitava maior instituição no gênero do mundo. Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz; AZEVEDO, Paulo César de; COSTA, Angela Marques da. A longa viagem da Biblioteca dos Reis: do terremoto de Lisboa à Independência do Brasil. 2ª. edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

81 No original: “[...] la Bibliothèque Publique est assez bien fournie en bouquins”. Cf. DENIS, Ferdinand.

[Carta a Joseph-André Denis]. Rio de Janeiro [Brasil], 12/03/1817. 1 doc. 4 p. BSG, Fundo Ferdinand Denis, Ms. 3417 (f. 13-14v). Disponível em <https://archive.org/details/MS3417_f13_14>. Acesso em 20 fev. 2020.

82 No original: “Juge des villes, mon cher papa: il n’y a que quatre librairies à Rio de Janeiro!”. Ibidem. 83 No original: “Je ne pars pour ce pays [Salvador] que dans quelques jours. C’est quitter l’Enfer pour aller au

Purgatoire”. Ibidem.

84 No original: “C’est ici qu’on pourrait apprécier le Caïn de Mr. Guérin; je suis tous les jours témoin de

[...] o sol [...] lança seus últimos raios, as águas do oceano refletem esse brilho luminoso; longe de apresentar somente um tom monótono, as ondas se tingem ao longe como leves nuvens que se adornam dos raios do sol [...]”.85 Para melhor fundamentar seu raciocínio e garantir a compreensão dos leitores, evocou a obra de Guérin, que havia feito certo sucesso em Paris: “esse efeito extraordinário foi revelado com uma verdade e um talento muito remarcáveis no quadro que começou a reputação de Paulin Guérin, no qual ele representou Caim fugindo após seu crime”.86 Mas, nesse caso, como explicar a ausência de palmeiras,

sabiás, tucanos, onças pintadas e outros animais típicos dos trópicos? Na segunda hipótese, Denis teria a intenção de retratar o Brasil como a uma terra de grande sofrimento, um verdadeiro purgatório terrestre. Guérin escolheu tons sombrios para representar Caim, o que ressalta a atitude criminosa da personagem bíblica; seu olhar expressa medo, assim como seu braço posicionado acima da cabeça, em uma tentativa desesperada de proteção. Sua esposa e os dois filhos do casal, todos inocentes, mas igualmente amedrontados, destacam-se na paisagem com cores mais suaves; enfim, vários elementos transmitem a ideia de que a cólera divina estaria prestes a punir de forma severa o fratricida.

Figura 2. Caïn après la meurtre d’Abel, Paulin Guérin (1812)

85 No original: “le soleil […] lance ses derniers feux, les eaux de l’Océan réfléchissent cette lueur éclatante;

loin de ne présenter qu’une teinte monotone, les flots se colorent au loin comme les nuées légères qui se parent des feux du soleil sans les cacher [...]”. DENIS, Ferdinand. Scènes de la nature sous les tropiques, et leur influence sur la poésie, suivies de Camões et Jozé Indio. Paris: Louis Janet. p. 33-34.

86 No original: “cet effet extraordinaire a été rendu avec une vérité et un talent très-remarquables dans le

tableau qui a commencé la réputation de Paulin Guérin, et où il a représenté Caïn fuyant après son crime”. Ibidem, p. 503.

Tal interpretação ganha mais força quando lida ao lado de uma crítica ao quadro feita pelo Museu Nacional de Luxemburgo duas décadas mais tarde:

Caim fugitivo, seguido de sua esposa e de seus filhos, encontra-se parado na beira de um precipício. O trovão que estoura acima de sua cabeça o enche de pena e desperta seu remorso. Satã, que o impeliu ao fratricídio, prende-se a seus passos sob a forma de uma serpente. O bastão ensanguentado lembra seu crime; seus filhos choram nos braços da mãe, que desmaiou de cansaço e dor, implorando a misericórdia divina.87

Com a referência ao purgatório e ao inferno, Denis se afastou daquela visão edênica sobre o Brasil, em circulação na Europa desde primórdios do século XVI, conforme mencionado. Mas, uma vez instalado na capital baiana com o propósito de trabalhar como secretário de Plasson, acabou revendo (ao menos parcialmente) seus julgamentos iniciais. Assim, em 12 de maio de 1817, escreveu as seguintes linhas à sua mãe:

Retiro o que disse; não é como eu dizia, sair do purgatório para entrar no inferno. Se se compara essas duas cidades, a Bahia sai vitoriosa de todas as formas. Para começar, brisas marítimas refrescam continuamente a atmosfera e, ainda que mais próximos da linha [do Equador], sofremos menos com o calor. Os habitantes se veem mais, os passeios são mais belos, os caminhos praticáveis, etc.88

Ainda que Salvador tenha lhe parecido preferível à corte, ele não deixou de identificar alguns aspectos negativos na nova cidade, como construções de frágil solidez e uma vida cultural excessivamente parada:

A cidade baixa, a cidade do comércio, é o local mais vil da terra. De fato, constrói-se tão bem que é provável que as primeiras casas do topo desmoronarão sobre as lojas da parte baixa que, por conseguinte, desabarão no porto. Não posso olhar sem terror o teatro, que parece querer abrir esse baile. Então há um teatro na Bahia? Ouvi darem esse nome a um edifício grande o bastante, faltando janelas, aberto aos quatro

87 No original: “Caïn fugitif, suivi de sa femme et de ses enfants, se trouve arrêté au bord d’un précipice. Le

tonnerre qui éclate au-dessus de sa tête le remplit d’épouvante et réveille ses remords. Satan, qui l’a poussé au fratricide, s’attache à ses pas, sous la forme d’un serpent. La massue ensanglantée rappelle son crime; ses enfants pleurent dans les bras de leur mère, qui s’évanouit de fatigue et de douleur, en implorant la clémence divine”. Cf. MUSÉE National de Luxembourg. Explication des ouvrages de peinture et de sculpture de l’École moderne de France exposés dans le Musée royal du Luxembourg: destiné aux artistes vivants. Paris: Vinchon, 1846. p. 27.

88 No original: “Je me rétracte; ce n’est pas comme je le disais, sortir du purgatoire pour entrer en enfer. Si