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1.1 O DESCOBRIMENTO DA INFÂNCIA

1.1.2 Na Literatura

A narrativa3 fez parte da experiência humana muito antes dos livros e do cinema. Essa narrativa não tinha a pretensão de alcançar apenas as crianças, mesmo porque, como antes aludido, durante muitos séculos a sociedade ocidental não distinguia efetivamente a infância do mundo adulto. Conforme João Batista Melo (2011), a literatura conhecida como primordial sobreviveu sendo transmitida de geração em geração, preservada pela memória da coletividade. “Essas narrativas difundiram-se oralmente até chegarem à Idade Média, estando na origem dos contos folclóricos, das narrativas medievais arcaicas e, também, da literatura infantil” (p. 50).

O educador tcheco John Amos Comenius foi um dos primeiros a ter sua obra impressa para as crianças, a Orbis Sensualium Pictus (O mundo visível em gravuras), de 1658. A obra de Comenius foi desenvolvida com fins didáticos e se tornou também o primeiro livro ilustrado para o público infantil. Porém, a literatura infantil surgiu na França, mais especificamente com os trabalhos de La Fontaine (As fábulas, de 1668) e décadas depois com Charles Perrault (Contos da Mãe Gansa, 1691/1697), mas nenhum dos dois reuniu os contos que circulavam a cultura oral, considerando as crianças como público-alvo.

Outras obras que também não tiveram o intuito de alcançar prioritariamente o público infantil foram: Contos de fadas (1696/1699), da baronesa Marie D’Aulnoy, e Telêmaco (1699), de Fenélon. Seguiram-se na mesma vertente: Obras misturadas (1696), de Mlle. L’Héritier – sobrinha de Perrault –, A rainha das fadas (1698), de Preschac, e As mil e uma noites, contos orientais que foram lançados por Galland na Europa. A partir daí, segundo Melo (2011), o sucesso dos contos de fadas permaneceu crescente até o final do século XVIII. Uma ressalva feita pelo autor é que o sucesso desses contos só pôde ser reproduzido de uma maneira mais “padronizada” a partir do surgimento da imprensa, que passou a circular principalmente entre

3 O sentido da expressão narrativa aqui empregado está relacionado aos contos ou relatos que há milênios eram narrados de forma oral pela humanidade.

a elite da sociedade. Outra ressalva importante do autor é que com a transcrição literária, os contos de fadas e as histórias tradicionais, antes tidas como uma prática oral basicamente popular, perderam algumas de suas características naturais, como o contato entre o narrador e o público. Nesse processo, as transformações e adaptações também não foram sempre respeitosas com as narrativas originais.

No final do século XVIII, entre 1812 e 1822, os irmãos Grimm, diferente de seus antecessores, escolheram as crianças como principais destinatárias de suas obras. Seus contos preservaram a tradição da cultura oral com um cunho mais literário e o resultado de seus trabalhos foi publicado no volume Contos de fadas para crianças e adultos (Kinder-und Hausmärchen). Já no século XIX, outro escritor que também se atentou ao público infantil foi Hans Christian Andersen, um dinamarquês que buscou em sua origem nórdica elementos para construção de sua literatura. Ainda que tenha se inspirado na tradição oral, foi sobretudo um criador de suas histórias e seus contos também se tornaram clássicos entre os contos de fadas.

No Brasil, a literatura infantil só veio a florescer por volta do século XX e foi fortemente marcada por obras estrangeiras. Carlos Jansen e Figueiredo Pimentel, segundo Lajolo e Zilberman (2007), se encarregaram de boa parte das traduções e adaptações dessas obras.

Contos seletos das mil e uma noites (1882), Robinson Crusué (1885), Viagens de Gulliver

(1888), As aventuras do celebérrimo Barão de Munchausen (1891), Contos para filhos e netos

(1894) e D. Quixote de la Mancha (1901) foram traduzidos por Jansen. Figueiredo Pimentel também fez as traduções dos clássicos dos Grimm, Perrault e Andersen, divulgados nos Contos da Carochinha (1894), Histórias da Avozinha (1896) e Histórias da Baratinha (1896). As adaptações estrangeiras contribuíram sobretudo para a apropriação de um projeto educativo e ideológico a partir dos textos infantis.

Monteiro Lobato, um dos grandes escritores da literatura infantil brasileira, viveu entre 1882 e 1948. Em 1921, o escritor publicou Narizinho Arrebitado (Segundo livro de leitura para uso das escolas primárias). Essa foi uma publicação, que de acordo com Lajolo e Zilberman (2007), nasceu da necessidade de uma linguagem que interessasse às crianças, como afirmava Lobato. O escritor investiu progressivamente na literatura para crianças como autor e também como empresário, tendo fundado editoras como a Monteiro Lobato e Cia, a Companhia Editora Nacional e a Brasiliense. Lobato sem dúvida inaugurou novos tempos, iniciando uma nova modalidade e expressão literária.

O ano de 1931 dá início à etapa mais fértil da literatura brasileira. Entre as publicações dessa época consta as Reinações de Narizinho, uma remodelação da história original feita por Lobato. Novos autores também surgiram, como Viriato Correia – com o sucesso Cazuza, de

1938. De acordo com Lajolo e Zilberman (2007, p. 45), nesse momento incorporaram à leitura infantil outros escritores modernistas que começavam a se destacar:

Alguns recorreram ao folclore e às histórias populares: José Lins do Rego publicou as

Histórias da velha Totônia (1936), Luís Jardim, O boi aruá (1940), Lúcio Cardoso,

Histórias da Lagoa Grande (1939), Graciliano Ramos, Alexandre e outros heróis

(1944). Outros criaram narrativas originais, como Érico Veríssimo, em As aventuras do avião vermelho (1936) ou, de novo Graciliano Ramos, em A terra dos meninos pelados (1939). Alguns lançaram um único título, como os citados José Lins do Rego e Lúcio Cardoso; outros, porém, mantiveram uma produção regular por certo tempo, como Érico Veríssimo, entre 1936 e 1939, Menotti del Picchia, escrevendo histórias de aventuras como as de João Peralta e Pé-de-Moleque, Cecília Meireles, com seus livros didáticos, Max Yantok, até então ilustrador da revista O Tico-Tico. E há ainda os não tão assíduos, como Lúcia Miguel Pereira, Marques Rebelo, Jorge de Lima e Antônio Barata. No conjunto, predominou soberanamente a ficção, ficando quase ausente a poesia, mas também ela foi representada por modernistas: Guilherme de Almeida, autor de O sonho de Marina e João Pestana, ambos de 1941, Murilo Araújo, com A estrela azul (1940), e Henriqueta Lisboa, que escreveu o livro de poesias mais importante do período: O menino poeta (1943).

Na década de 1960, o contexto social brasileiro contou com a implantação de uma nova etapa da sociedade em direção a um modelo capitalista mais avançado, o que favoreceu o modo industrial de produção da literatura infantil, apresentando como traços a manutenção de velhas tendências e também um esforço renovador. A partir dos anos 1970, de acordo com Coelho (1991), iniciou-se um período em que a estruturação narrativa do texto substituiu a literatura confiante/segura por uma literatura inquieta/questionadora, que começou a discutir os valores presentes na sociedade brasileira. Dentre os autores inovadores desse período temos: Ana Maria Machado, Bartolomeu Campos Queirós, Fernanda Lopes de Almeida, Joel Rufino dos Santos, Lygia Bojunga, Maria Clara Machado, Ruth Rocha e Ziraldo. Nos anos 1980 outros autores seguiram o mesmo contexto: Anna Flora, Marina Colasanti, Mirna Pinsky, Pedro Bandeira, Ricardo Azevedo e Tatiana Belinky, entre outros.

A literatura infantil nacional não viabilizou em sua trajetória um crescimento expressivo de leitores e os motivos que ocasionam esse número cada vez menor são inúmeros. Um dos fatores que mais corroboram com essa realidade é a própria educação escolar brasileira que contou com uma instauração tardia e precária. Melo (2011) ressalta que o período da ditadura militar também contribuiu para agravar a situação, pois, o pequeno avanço que se havia conquistado, em termos de uma formação da população – para a alfabetização e letramento –, sofreu inevitavelmente um retrocesso.

Outro fator que demonstrou o desinteresse crescente de leitores brasileiros foi a profissionalização da indústria editorial que gerou a explosão do mercado com a produção de livros em série – livros “paradidáticos” adotados por exigência legal pelas escolas – não

somente no Brasil, mas em todo o mundo ocidental. Esse crescimento se verificou principalmente durante os anos 1970 e nesse contexto, Melo (2011) cita Nilma Gonçalves Lacerda, que sinaliza ser a escola a grande responsável pelo acesso de muitos leitores jovens ao livro, mas também a responsável pelo estabelecimento “de uma indústria de sucata livresca para o consumo de crianças e jovens” (p. 121).