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Compreender o cinema mediante a percepção é admitir que o sensível é parte inerente do corpo, como também daquilo que é visto, tateado ou escutado. O corpo é um ser visível que vê, mas que também pode ser visto e o fato de ser visto pode partir daquele que o vê ou dele mesmo. O corpo, segundo Merleau-Ponty (2004), é um ser visual, mas também é um ser tátil e sonoro. Ele é capaz de se tocar e tocar o outro, assim como pode se ouvir e ouvir o outro. O corpo então não é uma máquina, nem uma rede de causas e efeitos ou um receptáculo para a consciência. O corpo é a essência fundamental de ser e estar no mundo. Por isso, a poética fílmica, e mais especificamente a poética que diz da infância no cinema, ao nosso ver, necessita contemplar o corpo humano – que é parte imanente da natureza – como algo indispensável na realização de uma obra cinematográfica.

Nesse contexto, as discussões abordadas por Carlos Melo Ferreira (2004) acerca da poética e do cinema podem certamente nos ser bastante significativas, pois, a poética fílmica e em especial a poética da terra, como delineia o autor, diz propriamente de uma transmutação do humano, que de todo modo, parte do corpo-sensível. Desse modo, temos, como indicado no segundo capítulo, que a interseção entre poética e cinema parte também de uma relação entre poética e estética que diz da experiência da vida e do mundo.

Segundo Ferreira (2004), a ordem do fílmico pode eventualmente estruturar uma poética, assim como também pode estruturar uma poética da terra, principalmente no instante em que o aparelho cinematográfico se mostra capaz de alcançar ou mesmo captar a realidade empírica, fixando a realidade física da terra. Nesse sentido, ainda que a poética fílmica se desmembre em variadas formas, não deixa de angariar a condição de natureza existente tanto no humano como na natureza em si. Há um movimento não apenas metafórico, mas de qualquer modo literal que impõe o nascimento do homem advindo da terra e seu retorno a ela quando de seu falecimento. A natureza sempre está abaixo, acima, em volta, “por isso, se nasce da natureza, é da sua própria natureza finita a ela regressar” (FERREIRA, 2004, p. 337).

O cavalinho azul e Corda bamba – História de uma menina equilibrista são obras que indubitavelmente alcançaram a poética fílmica, pois, foram criadas por intermédio do recurso de imagens e sons e/ou frações de duração/movimento que não só partiram de uma ideia inicial poética, por terem se baseado em uma obra literária com elementos poéticos, como dispuseram de técnicas específicas e ritmos particulares que conseguiram criar uma nova realidade que de todo modo exploraram, além dos variados espaços, os espaços naturais com exímia maestria,

evidenciando a poética da terra e a transmutação do corpo-sensível antes mesmo que a poética fílmica.

Esses espaços além de contribuir para o alcance da sensação do real proporcionada pelas representações de aproximação com a realidade, contribuíram para a construção simbólica do imaginário infantil. Na obra fílmica O cavalinho azul, todo o desenrolar da narrativa foi exposto em espaços naturais, evidenciando privilegiadamente o meio rural, alcançando por meio do poder de criação da câmera e pela escolha de extensas campinas, toda a amplitude dos movimentos de Vicente e seu desenvolvimento físico e emocional. A escolha do cenário natural para compor a paisagem/espaço do enredo ainda serviu de palco para as elocuções proferidas pelo próprio Vicente, a criança protagonista, e também por João de Deus, personagem divino e extraordinário da narrativa.

As figuras a seguir expõem algumas das várias cenas/sequências de espaços naturais escolhidas para compor a obra fílmica O cavalinho azul. As Figuras 16 e 17 apresentam um plano geral onde os personagens Vicente e Maria caminham por trilhas da extensa campina de costas para a câmera, no sentido oposto a câmera plongée16. Nessas sequências, o procedimento técnico/estético selecionado, via uso da câmera plongée, foi fundamental para a construção poética não apenas da imagem, mas também da narrativa em si. O olhar de cima leva o espectador a se conectar com o personagem João de Deus, que nessas cenas evoca uma poesia de enunciação que se apresenta em todas as suas falas – presentes desde o início da trama e que revelam a proteção divina desse personagem para com as crianças.

Figura 16 – Vicente e Maria saindo em busca do Cavalinho azul – 1

Fonte: Captura de tela da autora (O cavalinho azul).

16Plongée, palavra francesa que significa “mergulho”, é o nome dado quando a câmera está acima do nível dos

olhos, voltada para baixo. Também chamada de “câmera alta”. Disponível em: http://www.primeirofilme.com.br/site/o-livro/enquadramentos-planos-e-angulos/

Figura 17 – Vicente e Maria saindo em busca do Cavalinho azul – 2

Fonte: Captura de tela da autora (O cavalinho azul).

Já a obra fílmica Corda Bamba – História de uma menina equilibrista exibe na maior parte do tempo espaços fechados/urbanos por contar a história de Maria de dentro do apartamento de sua avó materna. Porém, o filme não deixa de evidenciar os espaços/paisagens naturais em momentos importantes e por isso mesmo de imensa profusão poética. Um deles é o espaço do circo, que denota a arte circense como central de toda a trama, outro espaço é a paisagem natural da cidade do Rio de Janeiro quando Maria faz um passeio com uma grande amiga, a Barbuda. Barbuda é um dos elementos afetivos da história, de certa forma a imagem que substitui o aspecto maternal para Maria. As figuras a seguir exibem esses espaços.

Figura 18 – Barbuda, Maria e Foguinho saindo do circo

Figura 19 – Barbuda, Maria e Foguinho na estrada para o apartamento da avó da menina

Fonte: Captura de tela da autora (Corda bamba – história de uma menina equilibrista).

Figura 20 – Barbuda e Maria na praia do Rio de Janeiro

Fonte: Captura de tela da autora (Corda bamba – história de uma menina equilibrista).

Figura 21 – Barbuda e Maria se abraçando na praia do Rio de Janeiro

Fonte: Captura de tela da autora (Corda bamba – história de uma menina equilibrista).

Figura 22 – A cumplicidade de Barbuda e Maria

Figura 23 – Maria se divertindo na praia do Rio de Janeiro com Barbuda

Fonte: Captura de tela da autora (Corda bamba – história de uma menina equilibrista).

Além de outros elementos que dizem da poética fílmica aos quais nos dedicaremos posteriormente, o espaço natural que retrata de todo modo o tempo empírico, captado pelo poder de criação da câmera, assume também uma referência constitutiva para alcançar o espectador e permitir que ele apreenda o que lhe é proposto. A poética se dá como uma relação entre o objeto apanhado pela câmera e o tempo que permeia tanto o aspecto físico quanto o psicológico da percepção (FERREIRA, 2004).

[...] na primeira fase da preparação e da filmagem de um filme, em que a poética tem que ser encontrada, é, independentemente da ideia e do argumento do filme, mas em articulação com eles, na resposta a dar pelo realizador às perguntas colocadas pelos participantes (que podem respeitar aos mais diversos assuntos, da caracterização física e psicológica de um personagem à direção de seu movimento, da colocação da câmera no cenário até à iluminação da cena, por exemplo) que se geram níveis de criação fílmica e de criação poética (FERREIRA, 2004, p. 317).

O espaço escolhido pelos diretores de uma obra fílmica é fundamental na criação de seu contexto narrativo, vale lembrar que quando Ferreira (2004) nos situa sobre a poética da Terra, não afirma pertencer a essa poética apenas os espaços/paisagens naturais como exclusivas para o seu alcance. É válido considerar que o pertencer humano advém de suas adaptações aos meios em que vive e, na maioria dos casos, esse meio não é constituído apenas pelo espaço natural. Compreendemos para além dos estudos do autor que o ser humano pertence a natureza, assim como a natureza possui o ser humano, desse modo, qualquer espaço que se pode servir de palco para uma sequência fílmica pode angariar uma condição poética por iminentemente advir de uma relação humana, relação essa do ser humano com o espaço em que se vive, ou relação desse com os outros que convivem nesses espaços.

3.5 O CORPO-SENSÍVEL COMO TRANSMUTAÇÃO AO