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Qual representação da criança o cinema consegue evocar? Essa é uma problematização pertinente a se fazer quando se tem como objeto o estudo da infância no cinema. A concepção de infância, assim como o cinema, possui uma trajetória histórica própria. Podemos inclusive ressaltar que ambas são recentes, visto que, assim como discutido no primeiro capítulo, foi só a partir do século XX que grandes nomes da psicologia, sociologia, antropologia, filosofia e pedagogia, entre outros, passaram a se interessar pelos estudos da infância, legitimando-a definitivamente enquanto uma fase da vida humana.

Atualmente, os estudos sobre a infância vêm ampliando sua forma de olhar almejando a construção de uma nova infância que considera a singularidade e totalidade dos sujeitos sociais ativos que a compõem. São estudos que buscam liberar o sujeito criança do adultocentrismo, como denotam Arroyo e Silva (2012) ao reflexionar sobre o corpo-infância. A criança tem sua própria história, são sujeitos de experimentação, de intencionalidade e também de produção de saberes e valores. A vinculação da criança enquanto ser social com os outros com quem convive é algo que lhe é inerente desde seu nascimento. A etapa da infância não representa apenas um desenvolvimento psicológico e motor próprios, é também uma etapa em que a socialização se manifesta continuamente, assim como em outras fases da vida de um ser humano.

Rita Márcia Furtado (2017) nos coloca que o tempo da infância traz uma consciência de ser social e uma consciência do presente que permeiam construções que demandam um tempo

específico, assim como também demandam tempo suas vivências lúdicas e tomadas de decisões frente os conflitos experienciados. Por isso o processo de emancipação na infância, ao seu ver, não se dá no todo dos aspectos que compõe a vida, pois, esses aspectos estão cada vez mais vinculados ao tecido social. Desse modo, se faz necessário que a infância constituída de tempo e espaço seja vivida intensamente pela criança em todos os seus múltiplos sentidos, no seu tempo presente.

Assim, a arte de forma geral e em particular o cinema podem contribuir consideravelmente ao encontrar outras maneiras para se falar da infância. E essas outras maneiras necessitam de antemão considerar a criança como um indivíduo social que fala, age e vê o mundo com seus próprios olhos, pois, assim como ressalta Benjamin (1984), a criança se insere numa classe social como parte da cultura e também como produtora de cultura.

O cinema, concebido ou não como arte, sempre provocou a reflexão em seus espectadores. Essa provocação certamente também parte dos enredos que têm a infância como objeto principal. Nesse contexto, consideramos os estudos de Silvia Rodrigues (2016) bastante pertinentes por perceber a necessidade de ver a criança como ator social de direito próprio, que possui voz e ação, capaz inclusive de participar da construção de conhecimentos acerca dos seus mundos culturais e sociais. Seus estudos sobre o cinema e a infância ponderam que a criança de hoje não abarca em si mesma toda infância ou infâncias históricas, pois, sempre encontra sua forma particular de viver o momento em que vive.

O processo de produção de representação da infância no cinema é muito complexo, por isso se faz importante encarar as crianças como portadoras de passado e futuro e também de esperança e nostalgia, enquanto sujeitos existentes em si mesmos. Rodrigues (2016) diz ainda que a “câmara clara” das realizações fílmicas filtra situações tão surpreendentes quanto reveladoras da infância, que nos remetem inevitavelmente a complexidade da condição da infância na sociedade contemporânea. E, por partir das múltiplas imagens das crianças, a forma como essas produções se comunicam são diversas.

Ao analisar variadas obras cinematográficas que contam com a presença da criança, Rodrigues (2016) conseguiu identificar diferentes formas da representação da infância no cinema. As discussões permearam dramas recorrentes como a pobreza material; a deficiência infantil; as “distâncias” entre o adulto e a criança que implica no autoritarismo do obedecer sem questionar; a imagem da criança redentora, depositária de esperanças de uma vida melhor; o mito da infância delicada, ingênua e sempre divertida e feliz; a criança que não tem o direito de reclamar pois, o que lhe é dado já é uma bênção; as maneiras próprias de resistência infantil; a necessidade adulta de enquadrar a criança e a infância em um modelo universal e também

muitas vezes fantasioso; o abandono físico e psicológico que muitas vezes a criança é submetida; e como muitas vezes os adultos demarcam um tempo para a infância. São temas comumente explorados nos filmes que contam com a presença da criança e que certamente nos levam a reflexão, porém, discutir sobre a representação da infância no cinema necessita ir além da mera reflexão do seu conteúdo, necessita compreender do mesmo modo outras formas de olhar para essa infância, pois, é justamente neste lugar que o cinema transcende sua função de representar uma imagem.

A experiência de ver o mundo com os olhos das crianças talvez seja uma das maiores habilidades do cinema. Aqui a criança está constantemente aprendendo o que significa ser humano. A criança encara com naturalidade muitas questões que são rejeitadas e tratadas com preconceito pelos adultos, como é o caso, por exemplo, das deficiências físicas e humanas, dentro de uma perspectiva da empatia em relação às diferenças e às diversidades. Inúmeras vezes o cinema soube marcar seu enredo com candura e poesia o cotidiano infantil, revelando com leveza as formas criativas que as crianças encontram para resolver problemas que lhes são impostos. Segundo Rodrigues (2016), a criança é um sujeito de grande sensibilidade e como ser completo, tem percepção apurada para questões e situações além do aqui e agora. As discussões da autora permearam ainda a existência não de uma, mas de várias infâncias no cinema, definidas pela cultura e contexto em que a criança está inserida. Essas discussões se pautaram especialmente na “[...] questão da criança como sujeito ativo, coconstrutor de sua realidade e cultura, capaz de subverter contextos para poder viver a sua infância” (ibidem, p. 97).

Furtado (2017) também apresentou um diálogo profícuo entre o cinema e a infância ao analisar duas obras fílmicas de Alê de Abreu, Garoto Cósmico (2007) e O menino e o mundo

(2013). O objetivo da autora foi evocar a representação da infância a partir das imagens do real que as obras apresentaram. Sua compreensão inicial sobre o cinema é que desde sua origem se apresenta através do filme como uma “eterna novidade do mundo” por enxergá-lo com os olhos da criança, que provoca o imaginário e o deslumbramento. As duas obras analisadas exibem personagens infantis que desmistificam a interpretação de que o período da infância é apenas um período de saberes incompletos. São personagens que

[...] parecem olhar a realidade sempre perspectivando a liberdade e o lúdico, em situações exploratórias que demandam a observação e a compreensão dos múltiplos aspectos que realçam, em ambos os filmes, a forma estética da expressão infantil definida na força, na coragem e na determinação dos personagens (FURTADO, 2017, p. 30-31).

São muitos os filmes que poderíamos ressaltar, como Machuca (2005), de Andrés Wood, que têm o mérito de retratar o universo infantil sem a falsa ilusão de que as crianças vivem num microcosmo lúdico, e O ano em que meus pais saíram de férias (2006), de Cao Hamburger, que de forma sutil e sensível consegue nos convocar a pensar os ritos de passagem das etapas da vida em diferentes culturas, assim como perceber a forma infantil de encarar a morte, o amor e o abandono, sem cair num sentimentalismo puro e simples. O importante de todo modo é compreender que a representação da infância no cinema requer um olhar que vá além, que consiga representar a infância de inúmeras maneiras, pois, toda história humana é permeada por sua origem na infância e toda criança é criadora de cultura, produtora de história e inserida em multiplicidades que a transmuta em uma potência única e afirmativa.