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Como dito na seção anterior, foi observado que grupo de Narcóticos Anônimos (NA) exerce o papel de grupo terapeuta no processo de recuperação do uso de drogas e este fato foi tomado como pressuposto da pesquisa.

Segundo afirmações de membros de NA, registradas durante a observação participante, quando o grupo de NA está reunido o próprio grupo representa a figura de um terapeuta, como se esta representação subjacente tivesse vida própria, pairando acima e entre os membros de NA, resultante de uma emergência fruto da complexidade.

Correlacionado esta afirmação com as bases teóricas da complexidade, pode-se dizer que este vínculo entre as pessoas implica em um todo maior que a soma das partes – como indica o princípio sistêmico da complexidade –, revelando que a intensidade da recuperação dos membros de NA depende da qualidade das relações no grupo.

Considerando que as redes de pessoas se formam quando os benefícios das conexões são maiores que os custos, e considerando que os grupos de NA se perpetuam por muito tempo, pode-se dizer que o grupo-terapeuta em Narcóticos Anônimos agrega aos seus membros mais benefícios do que custos.

Foi observado também que, em um grupo de NA, como fruto de relações sistêmicas, o conhecimento é compartilhado, principalmente nas reuniões, permitindo a difusão de saberes através das trocas de experiências.

Todo este processo ocorre mediado pela linguagem através das falas e dos gestos, bem como dos silêncios, em um ambiente que propicia a emergência do grupo terapeuta, composto de relações intrincadas entre diversos elementos constitutivos: os membros de NA, o conhecimento circulante, a forma ritualística com que ocorrem as reuniões, os acordos tácitos firmados.

A atmosfera de confiança gerada através do acordo de anonimato, além de uma proposta não verbalizada de escuta sensível, garante que emerja a figura de uma entidade psíquica nomeada como Deus, natureza, Poder Superior etc., que tem algumas peculiaridades: deve ser generosa, amorosa, acolhedora, não vingativa etc. Este “poder superior” psíquico do grupo terapêutico é uma síntese da complexidade: todos compreendem a que se refere, embora cada um individualmente tenha sua própria representação dele.

De volta à Edgard Morin (2003), em seus estudos sobre os princípios da complexidade exposto no Quadro 11, foi proposto uma transdução daqueles princípios para compreensão dos fenômenos complexos na relação com Narcóticos Anônimos e seu processo terapêutico (Quadro 12).

A partir do Quadro 12 é possível verificar que há uma aderência do tema aos princípios norteadores da complexidade, e isso permite eleger a complexidade como um dos lastros epistemológicos para a construção do conhecimento quando

se pesquisa o papel de grupos de Narcóticos Anônimos (NA) na recuperação de adictos ao uso de drogas.

Quadro 12. Relações epistemológicas entre complexidade e os grupos de NA

Princípio Relações epistemológicas com NA para recuperação da adicção

Princípio sistêmico

No grupo de NA, por meio da partilha, o conhecimento das partes integra-se ao conhecimento do todo, e o resultado, a recuperação, revela que o todo é maior que a soma das partes, pois dificilmente um membro sozinho conseguiria entrar em recuperação e manter-se nela.

Princípio hologramático

Como cada um se vê no grupo e o grupo é uma expressão do conjunto formado por todos os membros, nos grupos de NA consta-se que as partes estão no todo e o todo está em cada parte.

Princípio do ciclo retroativo

Os grupos de NA existem para propiciar o processo de recuperação, e a recuperação decorre da existência dos grupos de NA. Assim a causa age sobre o efeito e o efeito sobre a causa.

Princípio do ciclo

recorrente

O grupo de NA é produto e consequência do que produz. A participação no grupo produz o processo de recuperação, ao mesmo tempo em que promove o surgimento de novos comportamentos, valores e cultura entre seus membros.

Princípio da auto-

organização

À medida que os membros participam das reuniões dos grupos de NA eles se auto organizam, autoproduzindo suas normas de conduta e se estruturando para garantir de sua autonomia.

Princípio dialógico

Ao assumir a adicção como doença incurável, o membro de NA coloca-se constantemente diante do princípio dialógico de buscar a recuperação e saber que seu problema é incurável. Ele aceita a dualidade e convive com ela em harmonia â medida que aceita a própria limitação e abre-se para a ação de um Poder Superior em sua vida.

Princípio da reintrodução do conhecido em todo conhecimento

Os grupos de NA surgiram a partir dos grupos de Alcoólicos Anônimos, cuja base de recuperação foi construída a partir das partilhas de seus membros. Assim, nestes grupos vale dizer que “todo conhecimento é uma

reconstrução/tradução por um espírito/inteligência em uma cultura e em tempo determinados”.

Fonte: Lima Neto et al (2016, p. 105-106).

A contribuição de Morin é inegável para o metamodelo proposto (Capítulo 8), considerando que vários fenômenos que ocorrem nas relações entre indivíduos e grupos, permeados por estas definições epistemológicas, ganham em clareza e substância.

5 A ADICÇÃO, OS DOZE PASSOS E A PSICOLOGIA COGNITIVA

A Psicologia Cognitiva fornece o embasamento necessário para correlacionar os processos cognitivos com a linguagem e o comportamento do indivíduo em um grupo. A apreensão cognitiva está relacionada à percepção dos fenômenos através dos órgãos dos sentidos, mais também através das lembranças arquivadas na memória, ou até mesmo das deduções decorrentes de processamento racional destes estímulos. Por exemplo, os órgãos da visão que estejam com lentes corretivas inadequadas podem gerar distorções visuais, aberrações cromáticas, que comprometerão a qualidade dos dados visuais capturados. A partir deste exemplo é possível fazer uma metáfora com as “lentes” cognitivas geradas por crenças que distorcem a “leitura” e interpretação da realidade. Dentre os elementos de conexão com os fenômenos está a linguagem verbal e a corporal.

A linguagem verbal é um processo mental muito dinâmico e sofisticado, com ideias que surgem através de mecanismos interconectados no ambiente cerebral, influenciando a seleção das palavras, geralmente por motivos subjetivos (TEIXEIRA, 2007, p. 7-8).

Segundo Paivio (1969, 1971, apud STERNBERG 2011, p. 230), “nossas representações mentais para palavras são representadas, principalmente, em um código simbólico”. Pode-se definir um código simbólico como:

[...] uma forma de representação do conhecimento que foi escolhida arbitrariamente para significar algo e que não se parece perceptivamente com tudo que estiver sendo representado. Da mesma maneira que um relógio digital usa símbolos arbitrários (normalmente numerais) para representar a passagem do tempo, nossas mentes usam símbolos arbitrários para representar muitas ideias. Um símbolo pode ser qualquer coisa designada arbitrariamente para significar algo diferente de si mesmo (STERNBERG, 2011, p. 230).

Ao utilizar a linguagem, os seres humanos recorrem à palavra, símbolo linguístico que permite toda uma dinâmica de uso, considerando que:

[...] o cérebro de cada pessoa contém um léxico de palavras e os conceitos que elas representam (um dicionário mental), e um conjunto de regras de combinar as palavras para transmitir relações entre conceitos (uma gramática mental) (PINKER, 2002, p. 98).

Ao unir palavras obedecendo a este conjunto de regras, surgem conceitos e ideias mais complexas e muitas vezes diferentes de seus elementos formadores.

[...] um número finito de elementos discretos (neste caso, palavras) é selecionado, combinado e permutado para criar estruturas maiores (neste caso, sentenças) com propriedades bastante distintas das de seus elementos (PINKER, 2002, p. 97). Somente a partir das palavras é possível formar sentenças (i.e. as unidades mínimas para se transmitir uma ideia), que possibilitam compartilhar todo conhecimento, e:

[...] produzir fatos históricos, estabelecer comunicação, socialização, interação, possibilitar a reprodução de representações mentais, discursar, fazendo com que o homem viva a sua individualidade por meio da dinâmica destes elementos (TEIXEIRA, 2007, p. 54).

Na grande parte dos grupos prevalece a crença de que o conteúdo dos discursos é importante para analisar e trabalhar os significados e os sentidos atribuídos às vivências dos sujeitos. Assim, a linguagem e sua relação com a psicologia cognitiva são decisivas para a compreensão dos membros do próprio grupo. Lewin (1978, p. 75) se refere à linguagem corporal, ou seja, à linguagem a nível motor, como o grau de controle do indivíduo sobre seus “movimentos físicos e sociais”. É uma parte perceptível do que ocorre na intimidade psíquica. Os comportamentos, os gestos, a postura, a forma de falar e o conteúdo do que expressa ajudarão a definir a forma como o indivíduo se posiciona no meio social e o seu grau de influência. Esta forma de expressão física, oral ou postural, pode também mascarar a verdade. O acompanhamento longitudinal proporcionado pela convivência grupal permite verificar contradições entre o que está na intimidade psíquica e o que é expresso como resultado da re-educação.

A Psicologia Cognitiva fornece os fundamentos que relacionam a linguagem verbal ou corporal como um elemento que revela aspectos cognitivos dos indivíduos, contribuindo para a análise do processo de re-educação.

Nos grupos de NA prevalece à crença de que a recuperação dos usuários de drogas dá-se pela partilha, pela verbalização de seus problemas num ambiente de confiança mútua, já que todos ali, de certa forma, experienciaram as mesmas condições e a mesma necessidade de parar de usar drogas. Os métodos terapêuticos verbais utilizam-se dos conteúdos dos discursos para analisar e

trabalhar os significados e os sentidos atribuídos às vivências dos sujeitos. Assim, a linguagem e sua relação com a psicologia cognitiva são decisivas para a compreensão do processo de recuperação do usuário de drogas.