• Nenhum resultado encontrado

1.2 O tratamento da Língua Portuguesa nos documentos oficiais que regem o ensino no Brasil e

1.2.2 Base Nacional Comum Curricular

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento normativo que busca definir um conjunto de aprendizagens essenciais para que os alunos desenvolvam progressivamente conhecimentos, habilidades e competências ao longo dos segmentos de ensino básico. A BNCC se apresenta como sendo um documento produzido para balizar a qualidade da educação, de modo a minimizar as diferenças educacionais. Uma das contribuições a que o documento se propõe é o de alinhar as políticas e ações educacionais, das esferas federal, estadual e municipal, por meio de formação de professores, de critérios adequados para infraestrutura, de avaliação e de elaboração de conteúdo. As ações que podem ser fomentadas a partir do documento buscam garantir um patamar mínimo comum de aprendizagem em todas as escolas, sejam públicas ou particulares. A Base não é o currículo, apenas orienta a parte comum dos currículos a serem construídos por estados e municípios. A parte diversificada será definida de acordo com os contextos regionais.

Para enfrentar desafios em um país tão extenso, com diversos problemas sociais e educacionais, a BNCC concebe dez competências que perpassam todos os segmentos de ensino para que o aluno seja capaz de reconhecer, mobilizar e agir sobre as complexidades do cotidiano, exercendo, de fato, a plena cidadania. Em síntese, as competências valorizam os diferentes conhecimentos construídos historicamente para explicar uma realidade, promovem a curiosidade intelectual, valorizam as diferentes manifestações artísticas, reconhecem e utilizam as diferentes linguagens, inclusive a tecnológica, incentivam o autoconhecimento e atuam sobre o exercício do ser social, individual e coletivo.

A BNCC está estruturada em áreas de conhecimento que abrangem componentes curriculares. A área de Linguagens comporta, além do componente curricular de Língua Portuguesa, outros componentes: Arte, Educação Física e Língua Inglesa. A inclusão de diferentes componentes em uma mesma área possibilita a intercomunicação delas e, ao mesmo tempo, preserva as especificidades e saberes de cada componente. Por sua vez, cada componente está organizado por unidades temáticas que se relacionam com diferentes objetos de conhecimento,

promovendo aprendizagens essenciais, ou seja, garantindo o acesso às habilidades comuns necessárias para a constituição do sujeito, independentemente do contexto social. Essas habilidades não descrevem as ações, as condutas ou metodologias a serem adotadas pelo professor. O currículo de cada estado e munícipio, bem como o currículo e projeto de cada escola, produzidos para atender diferentes contextos, é que vão possibilitar a concretização do ensino em cada sala de aula.

O documento afirma que o foco das ações pedagógicas no ensino fundamental anos iniciais, 1º ao 5º, é o da alfabetização. A ideia apresentada é a de que particularmente os dois primeiros anos sistematizem a alfabetização, e os três anos seguintes sejam dedicados à observação das regularidades e a análise do funcionamento da língua e de outras linguagens e seus efeitos nos discursos (BRASIL, 2018, p. 88). Nesse segmento, as questões culturais são relevantes e consideradas no ensino-aprendizagem de leitura e de escrita, visam propiciar ao aluno construir conhecimentos dos diferentes componentes e desenvolver sua autonomia e atuação na sociedade letrada. A dimensão analítica baliza as ações pedagógicas dos anos finais, 6º ao 9º e pressupõe-se uma diversificação de contextos que permitem o aprofundamento de estudos e de reflexões críticas, devido a maior capacidade de abstração dos estudantes.

O componente Língua Portuguesa seleciona o texto como unidade central de trabalho na sala de aula para o desenvolvimento e a ampliação dos letramentos. O texto não é visto apenas como materialidade linguística, é visto como unidade enunciativa e discursiva, ou seja, o texto não pode ser dissociado das condições de produção e de recepção de seus usos. O desenvolvimento de habilidades com os textos deve envolver os usos significativos de uma sociedade, a partir de atividades pautadas na leitura, na escrita, na escuta e na fala, em várias mídias e semioses, habilitando o sujeito para uma efetiva participação crítica nas diversas situações de comunicação social.

O documento defende que o surgimento de novos gêneros e textos cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos configura novos posicionamentos da sociedade, exigindo da escola um tratamento crítico-reflexivo dessa nova prática de linguagem comum à nossa década. Defende ainda que a escola é o locus privilegiado para atender às novas necessidades sociais, com a finalidade de habilitar os sujeitos para o uso ético e qualificado das tecnologias da informação e comunicação e, também, promover momentos de discussão sobre seus usos. O documento reconhece que o texto extrapolou os limites do papel e do som, e agora diferentes semioses estão coexistindo para constituir uma unidade textual, de modo que não se trata de privilegiar o aspecto

digital, mas de estar preparado para trabalhar com e sobre as tecnologias digitais. Nesse sentido, o documento recomenda que a formação continuada dos professores é condição essencial para um ensino atualizado que atenda as expectativas que os diferentes campos de atuação social exigem.

Para lidar com esse cenário e muitos outros que constituem a realidade da educação brasileira, as práticas pedagógicas de Língua Portuguesa estão integradas, na BNCC, nos eixos: oralidade, leitura/escuta, produção de textos e análise linguística/semiótica. Segundo o documento, os eixos devem ser desenvolvidos a partir de um processo reflexivo sobre os usos, em um campo de atuação que pode ser: artístico-literário, de estudos e pesquisa, da vida pública, da vida cotidiana e o campo jornalístico-midiático. Essas práticas de linguagens buscam permitir o estudante a atuar e agir socialmente.

A atividade de leitura é vista como um processo de interação ativa do sujeito com o texto escrito, oral ou multissemiótico, de forma a interpretá-lo. A leitura tende a se complexificar progressivamente com o avanço dos alunos através de gêneros discursivos de diversos campos sociais. Assim, o aluno é capaz de selecionar estratégias de leitura adequadas, reconstruir e refletir sobre as condições de produção e recepção do texto, identificar e refletir as dialogias e intertextualidades, (re)construir a textualidade do texto, refletir criticamente sobre os temas e a veracidade de informações, compreender os efeitos de sentido que os recursos linguísticos e semióticos proporcionam e aderir às práticas de leitura. Nessa última dimensão, o estudante se mostra interessado pela leitura de textos literários, científicos e jornalísticos, e, também, está receptivo a outros textos.

O eixo de produção de textos se refere à atividade interativa de produção oral, escrita e multissemiótica de um propósito comunicativo, vinculada a uma autoria, individual ou coletiva, com objetivo e finalidade definidos. As dimensões da produção de texto ancoram-se nas condições de produção, nas estratégias de produção, na dialogia e na intertextualidade, na progressão temática, na construção da textualidade e nos aspectos notacionais e gramaticais.

Apesar de o eixo de produção de textos considerar a oralidade, a BNCC dedica um eixo exclusivo para sua explanação. A oralidade é considerada como uma situação de comunicação oral, podendo ou não acontecer face a face. Essa prática de linguagem é tratada nas dimensões das condições de produção de textos orais, da compreensão e da reflexão, da produção propriamente dita, dos efeitos de sentidos que os diversos recursos linguísticos e extralinguísticos permitem e da relação entre fala e escrita.

Os eixos discutidos possuem várias dimensões que se dedicam ao desenvolvimento de habilidades específicas, mas não se pode desconsiderar que eles se inter-relacionam, apesar de haver uma segmentação interna. Se esses eixos permitem aprender parte da língua portuguesa, o eixo da análise linguística/semiótica permite transversalmente outro tipo de aprendizado, o de conhecer sobre a língua.

O eixo da análise linguística/semiótica se refere à avaliação consciente do sujeito, desde as situações de produção às formas de composição sobre a materialidade do texto, responsáveis pelos efeitos de sentido. Assim, as escolhas de elementos linguístico, paralinguístico ou multissemiótico exercem papéis fundamentais na orquestração e no efeito de sentido de um texto final. Os conhecimentos grafofônicos, ortográficos, lexicais, morfológicos, sintáticos, textuais, discursivos, sociolinguísticos e semióticos são demandados para compreensão e produção de linguagens. Como esses conhecimentos se concretizam em textos, e estes carecem de práticas sociais de leitura e de escrita para existir, as aulas de português oportunizam a criação de situações de reflexão e de aprendizagem sobre a língua. Os conhecimentos deste eixo não podem ser reduzidos único e exclusivamente como objeto de ensino.

A proposta da BNCC recupera alguns posicionamentos dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) sobre a língua portuguesa, atualizando-os para que dialoguem com a atual realidade econômica, política e social, e, criando e organizando habilidades comuns pautadas em práticas de linguagem. Essas habilidades são obrigatórias a todas as escolas do país para oportunizar as mesmas condições de aprendizagem.

Sobre a utilização dos PCN e da BNCC é importante destacar que, no primeiro documento, a implementação de um currículo comum a todas as escolas brasileiras não foi entendida como uma regra. Foi entendida como uma orientação que poderia ou não ser adotada pelas escolas. Por outro lado, o segundo documento apresenta um conjunto de saberes essenciais a ser aplicado e desenvolvido em todo território nacional, tem caráter normativo.

Cabe refletir, no entanto, que a proposta de equidade no ensino pode se tornar uma ilusão se não houver verbas suficientes para área de educação para a implementação da BNCC nos estados e municípios. Além disso, é necessário haver programas de formação continuada para propiciar aos professores momentos de discussão e reflexão sobre a BNCC, sobre as concepções que a embasam e sobre as competências que pretende promover. Outro cuidado importante é que o documento traz um conjunto de teorias, conceitos e vozes que nem sempre são coerentes entre si. Há termos

distintos para se referir a um mesmo objeto, conceitos pouco claros, progressão entre anos de escolaridade pouco definida. Ao leitor do documento, cabe uma leitura atenta e crítica para fazê- lo funcionar.