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Narrativas da desconfiança

No documento O melodrama fantasma de Christian Petzold (páginas 57-76)

CAPÍTULO 1: UM TRÂNSITO EMOTIVO DE ESPECTROS

1.3 Narrativas da desconfiança

Peter Brooks (1995), visando definir e lapidar a ideia de um modo melodramático característico do romance do Século 19 através de análises de textos de Balzac e James, bem como uma revisão do melodrama enquanto estética teatral de enorme projeção a partir do Século 18, observa como sua característica fundamental “o desejo de expressar tudo”:

Nada é poupado porque nada é deixado por dizer; os personagens estão no palco e proferem o indizível, dão voz aos seus sentimentos mais profundos, dramatizam através de suas palavras intensificadas e polarizadas e gesticulam toda a lição de seu relacionamento. Eles assumem papéis psíquicos primários, pai, mãe, filho e expressam condições psíquicas básicas. A vida tende, nessa ficção, a gestos e enunciados cada vez mais concentrados e totalmente expressivos (BROOKS, 1995, p. 4).

O melodrama, enquanto um gênero teatral surgido na Revolução Francesa, deveria lidar a realidade de um mundo pós-sagrado, ao mesmo tempo em que realizava o desejo revolucionário de uma nova consciência de mundo com a conciliação da expressão de uma moral social reconfigurada com novas experiências de espiritualidade. Brooks observa nesse sentido que o que chama modo melodramático existiria para localizar e articular uma moral oculta, que seria exposta a partir desses gestos concentrados. Essa esfera moral teria expressão

no maniqueísmo que caracteriza o melodrama, de modo que o bem e o mal se colocam como duas forças opostas e personificadas respectivamente na vítima e no vilão58.

Conforme comentado a partir de Thomasseau, o momento de maior expressão patética é o do reconhecimento, onde há a união entre amantes ou familiares separados por circunstâncias atrozes ou o arrependimento diante do fato deles chegarem "tarde demais" e ficarem reféns dos infortúnios. Brooks atenta para o fato de que no melodrama clássico as cenas de reconhecimento da virtude se dão em "momentos melodramáticos de espanto". De modo a tornar visível a natureza moral dos personagens em cena e dar seguimento à trama até o momento de catarse final, a estética melodramática empregaria um conjunto de signos que dariam expressão total à virtude e à vilania59. Destacam-se em relação aos personagens a retórica melodramática e a esfera gestual, à qual Brooks se refere como um "texto de mudez". O excesso retórico seria inerente à forma do melodrama, uma vez que por meio dela haveria a expressão direta e explícita dos julgamentos dos personagens em relação ao mundo, de modo que eles traduziriam em palavras a natureza moral das pessoas ao redor. O texto de mudez, por sua vez, além das expressões corporais convencionais, incluiria os chamados tableaux mudos, onde no final de uma cena haveria o "congelamento" dos gestos que tornariam visíveis as emoções e os estados morais dos personagens60.

O uso do tableau foi recorrente no cinema silencioso, que deu continuidade ao expressionismo característico do melodrama, onde nos mais diversos momentos os personagens eram enquadrados realizando o gesto que melhor externasse sua condição naquele momento. Da mesma forma que o estilo gestual enfático, a linguagem excessiva do melodrama se manteve nas cartelas das falas. De certa maneira, o cinema silencioso foi o prolongamento da estética melodramática teatral, uma vez que seus meios de representação eram ainda diretamente subordinados a aqueles convencionados no teatro61.

Uma vez melhor estruturados os princípios da decupagem clássica analítica e as narrativas dos gêneros cinematográficos nos anos 1930, o texto melodramático conforme convencionado no Século 19 e transposto para o cinema silencioso foi gradativamente sendo adequado a uma estética mais próxima do naturalismo. O gestual enfático utilizado no melodrama teatral foi se tornando cada vez mais controlado e se ajustando à representação do

58 BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination. Balzac, Henry James, Melodrama, and the Mode of Excess.

New Haven : Yale University Press, 1995. p. 20-22

59 Ibid. pp. 25-34 60 Ibid. pp. 56-62 61 Ibid. p. 56-62

cotidiano característica desse melodrama que agora tinha o recurso à fala e não recorria com tanta frequência ao "texto de mudez".

Douglas Sirk mostrou-se, no entanto, um cineasta que inseriu na forma clássica do melodrama cinematográfico uma autorreflexividade de encenação a partir dos gestos dos atores e nos elementos de cena. Em uma cena de Palavras ao Vento (1956), um dos momentos mais autorreflexivos da obra do diretor, Kyle Hadley (Robert Stack), herdeiro de uma fortuna nos negócios do petróleo, leva a secretária Lucy (Lauren Bacall) para uma suíte de hotel chique onde ela passará a noite. Para impressioná-la, Kyle pede uma decoração luxuosa para o quarto: flores multicoloridas, vasos de prata, espelhos em todos os cômodos, perfumes, bolsas, chapéus e roupas caras, as cores da cena são realçadas pelo Technicolor com o qual Sirk filmava seus melodramas. A cada vez que um dessas peças surge no quadro, uma trilha de harpas embala a cena, sugerindo um efeito de maravilhamento. Lucy, no entanto, não se mostra convencida ou satisfeita com esse luxo, em vez disso seus gestos e seu olhar expressam enorme desconfiança, como se ela se desse conta de que tudo o que está presente no quarto (e na cena) é artificial e que Kyle não tem muito a oferecer além dessa ornamentação com a qual tenta seduzi-la (Figuras 52 e 53).

Figuras 52-53: Palavras ao Vento: a desconfiança diante da estilização

Através da atuação de Bacall, que responde diretamente ao choque cromático dos elementos de cena, Sirk faz um comentário irônico ao deslumbramento visual criado pelo melodrama “flamejante” de estúdio. Embora seu trabalho atoral se enquadre no naturalismo convencionado pelas produções de Hollywood, a reação que ela (e consequentemente a personagem) manifesta diante da décor do quarto do hotel expõe o caráter camp da mise-en- scène de Sirk, no sentido que Susan Sontag (1964) observa como o amor pelo exagerado, onde as coisas são mais artifício do que significado, sendo “a extensão mais distante, na sensibilidade, da metáfora da vida como teatro” (SONTAG, 1964). A hiper-estilização é aqui denunciada como recurso utilizado para a construção do mundo plástico do melodrama,

comumente apropriado para o discurso de uma ideologia burguesa e assim abre-se dentro do texto fílmico uma possibilidade de questioná-la.

Essa atitude autorreflexiva de Sirk foi a grande inspiração de Fassbinder para produzir, no contexto vanguardista e moderno do Novo Cinema Alemão, melodramas que também questionassem a forma fílmica e o discurso próprio ao melodrama. A partir da influência das formas épicas de Brecht, retrabalhadas no grupo Antiteatro, do qual Fassbinder foi fundador, e da obra de Straub-Huillet, Fassbinder desconstruiu o discurso formal da retórica excessiva e dos grandes gestos no melodrama. Em O medo devora a alma (1974), onde Fassbinder transpõe a trama de Tudo o que o céu permite de Sirk para o contexto da Alemanha pós-Hitler, Ali (El Hedi ben Salem), um imigrante marroquino se envolve com Emi (Brigitte Mira), uma viúva idosa alemã, despertando enorme preconceito dos vizinhos e da família dela. O conflito entre o amor do casal e o olhar público que os condena é exposto a partir de uma expressão verbal e um gestual autoconscientes, que expõem os próprios meios fílmicos usados para a construção de significado.

No filme de Fassbinder há algo da desconfiança expressa pelo personagem de Lauren Bacall no filme de Sirk. No entanto, se no exemplo inicial havia um elemento autorreflexivo dentro de modo naturalista de expressão dentro de um cinema industrial, em Fassbinder o distanciamento é o elemento central da mise-en-scène, de modo que a atitude desconfiada dos personagens se detém por mais tempo na tela e seus gestos se revelam enquanto movimentos ensaiados. Um exemplo disso é a cena em que Emi apresenta Ali para seus filhos após casar-se com ele. Depois de reuní-los na sala de sua casa, ela conta do casamento, e diante da surpresa e curiosidade dos filhos, chama o marido, que entra na sala fazendo uma rebuscada mesura para a família. Então, segue-se, em um movimento de câmera lateral, a descrição das expressões de repulsa dos filhos de Emi (Figuras 54-58). Ao final da cena, o filho que está sentado mais à frente, levanta-se e chuta a televisão até destrui-la, saindo em seguida da sala. Os outros filhos e o cunhado, interpretado pelo próprio Fassbinder, o seguem, xingando-a. Nisso, Emi senta-se ao sofá e chora contidamente, sendo consolada por Ali.

Figuras 54-58: O medo devora a alma: a repulsa dos filhos diante da mãe e de Ali

Na atitude dos filhos, a desaprovação não se faz notar por signos visuais convencionais: ninguém pivota a cabeça seguidamente para os lados ou se desespera em sinal de reprovação. Nesse momento em que essa recepção racista e xenófoba é trazida à tona, o próprio trabalho atoral é problematizado, uma vez que no caso do cinema de Fassbinder a estética que o determina não é o naturalismo. De forma artificial e que expõe claramente o caráter de atuação por trás das ações dos personagens, as pessoas na cena passam rapidamente da passividade à agressividade, mostrando-se relativamente inexpressivos em ambos os estados.

Além dessa cena, há diversas outras onde, através de gestos congelados, as pessoas ao redor do casal, demonstram olhares de desconfiança e desaprovação. A estrutura de tableau é anacronicamente transplantada para o cinema de Fassbinder como um comentário ao trabalho

atoral dos atores e à maneira que eles constroem um cenário social de julgamento moral, conforme referido por Brooks (Figuras 59 e 60).

Figuras 59-60: os tableaux de O medo devora a alma

Fassbinder (1992), em seu famoso texto a respeito da obra do autor que inspirou sua entrada no melodrama afirma: "Nos filmes de Douglas Sirk, o amor parece ser o melhor, mais sorrateiro e eficaz instrumento de opressão social" (Fassbinder, 1992, p. 84). Os melodramas de Petzold com esses dois outros cineastas alemães um estado das coisas que espelha a inviabilidade do relacionamento pleno do melodrama canônico: a desconfiança.

Petzold se inscreve na linhagem autorreflexiva e desconstrutiva do melodrama iniciada por Sirk e Fassbinder ao utilizar esses momentos de desconfiança usados por esses diretores não como situações pontuais de julgamento, espanto ou hesitação, frente às adversidades, mas como a substância latente de toda a dramaturgia de seus filmes. Nos melodramas petzoldianos a constante da relação entre os personagens é a dialética de aproximação e afastamento entre eles, de modo que a fruição da expressão verbal e física convencionada no melodrama se torna impossível. Nesses melodramas, a economia de austeridade torna os corpos austeros e faz com que os gestos, independente do que eles comuniquem, não possam se dar com a mesma liberdade física e muito menos com a confiança naquele a quem se comunica ou no próprio ato de realizá-los. E isso dentro da esfera do melodrama é uma condição fundamental para reconfigurar não apenas o modo como as narrativas do gênero são encenadas, mas também a forma como elas são acessadas pelo espectador.

Wim Staat (2016) traça uma análise de três filmes de Petzold identificados por ele como melodramas, Phoenix, Wolfsburg, Barbara, tendo como base a teoria de Stanley Cavell de limitar um corpus de filme dentro do gênero melodrama a partir da ideia de uma mullher desconhecida. Statt explica o modelo de Cavell:

Cavell explica como Carta de uma desconhecida (1948), de Max Ophüls, fornece o nome para uma série de melodramas de Hollywood dos anos trinta e quarenta que caracterizam mulheres com ambições tragicamente frustradas. O filme de Ophüls

conta a história de uma jovem admiradora de um pianista de concerto. Ele não se lembra da jovem nem de seu romance de curta duração. Ela permanece desconhecida para ele, mesmo que ele tenha tido um filho com ela durante esse romance. Nesse sentido literal de desconhecido, o filme Ophüls é diferente dos outros melodramas no livro de Cavell, como esses outros filmes - Gaslight (1944), Now Voyager (1942) e Stella Dallas (1937) - apresentam mulheres que são conhecidas-mas-não- reconhecidas por seu interesse amoroso. Crucialmente, então, em todos os melodramas de Cavell, "desconhecida" significa "não reconhecida", em primeiro lugar, pelos maridos ou amantes. Nestes melodramas, as heroínas ficarão desapontadas porque os homens não reconhecem ou não podem reconhecer as ambições que estas mulheres têm para seus relacionamentos. Pois é isso que as trágicas heroínas compartilham: mulheres não reconhecidas não podem satisfazer seus desejos (STAAT, 2016, pp.186-187).

Cavell trabalha sua teoria da falta de reconhecimento como elemento genérico dos "melodramas da mulher desconhecida", comparando os filmes do gênero com o que ele chama de "comédias de recasamento", de modo que os melodramas se diferenciariam das comédias à medida que nas últimas os gestos concretos e diálogos ofereceriam uma relação de reconhecimento mútuo dos personagens que se relacionariam. A partir então dessa noção do desejo não reconhecido que impede a realização plena dos desejos, Statt encontra ressonâncias dessa condição nos protagonistas dos filmes de Petzold, observando que as situações em que os personagens se aproximam são aquelas em que eles negociam "artefatos canônicos" de modo que seu significado público media essas relações privadas. E é nessa articulação que as situações tipicamente melodramáticas vêm à tona e expõem a impossibilidade dos personagens de se aproximarem efetivamente62.

Statt inicia suas análises a partir de Phoenix, onde o artefato canônico é a canção Speak Low, de Kurt Weil, famosa na Segunda Guerra pela voz de Billy Holiday, o que para o autor é uma tentativa de Petzold de inscrever seu melodrama na cultura popular63. Ao longo da trama, Nelly (Nina Hoss) aceita a proposta de Johnny (Ronald Zehrfeld) de se passar por si mesma, como uma maneira de ficar perto do homem que era seu marido e tentar fazer com que ele a reconheça e tenha consciência de que ela ainda o ama. No entanto, todas maneiras de mostrar a ele o que ela realmente deseja são frustradas, tanto pela falta de escrúpulos de Johnny em relação à Nelly, que crê estar morta uma vez que ele colaborou com sua deportação, quanto pela falta de interesse no trauma vivido por ela nos campos de concentração. Perto do final do filme, ela toma consciência de que o homem que era seu marido a traiu para os nazistas e se divorciou dela. O último pedido de Johnny para que a encenação seja perfeita é que Nelly deixe ele raspar seu braço para que ela diga que arrancou o número tatuado no seu braço no campo

62 STAAT, Wim. Christian Petzold’s melodramas: from unknown woman to reciprocal unknowness in Phoenix,

Wolfsburg, and Barbara. In Studies of European Cinema, Volume 13: Number 3. p. 185-186

de concentração, ao que ela se recusa. Nisso, Nelly "retorna" a Berlim em um trem, seguindo o plano de Johnny, e, após reencontrar os amigos dele e o próprio, vai com eles todos até um restaurante. Após discursos emocionados sobre os tempos antes da guerra e a reunião do casal, Nelly pede para que Johnny toque uma canção ao piano para que ela cante junto, como nos velhos tempos, diante do grupo. Durante a execução da canção, ele percebe a familiaridade de sua voz e então vê o número tatuado no braço dela, interrompendo imediatamente a canção, atônito (Figuras 61-64).

Figuras 61-64: o reconhecimento tardio de Phoenix

Para Statt, essa cena traz à tona a questão da mulher desconhecida apontada por Cavell, uma vez que Johnny reconhece a identidade de Nelly, mas não consegue ter uma noção total do que ela se tornou. Petzold então negocia, através da canção canônica e da performance de Nelly, a privacidade do amor romântico junto com a impossibilidade de celebrá-lo em público64. Em Wolfsburg, por sua vez, conforme já foi comentado, Phillip tenta conciliar-se com Laura pelo crime que tirou a vida de seu filho a partir de pequenas gentilezas e favores prestados, como dar carona a ela e arranjar-lhe um emprego no lugar onde ele trabalhava, em vez de contar a verdade e lidar com as consequências. Statt observa que o primeiro lugar do não-reconhecimento de Laura é a perda de seu filho, seu lugar como mãe, e não como amante. Depois, no entanto, ela passa a se relacionar com Phillip e ambos passam a reconhecer mutuamente, no entanto os lugares sociais ocupados como ambos e a mentira mantida por ele, expõem a fragilidade dessa relação65. No final do filme, como já foi citado, a farsa de Phillip é desmascarada pela descoberta de seu carro, um Volkswagen vermelho com a placa FO-RD 189,

64 Ibid. p. 190 65 Ibid. p. 191

que o filho de Laura contou à mãe ter sido aquele que o atropelou antes de morrer e que ela pensava ser o modelo do carro. O carro, que se tornou o lar de Phillip após ser expulso de casa e que tinha sido negociado até então como um lugar de intimidade junto com Laura, é, como observa Statt, o artefato que se torna o lugar onde ela o confronta revelando saber a verdade e esfaqueando-o, independente das consequências de fazê-lo com o homem que dirige o carro. O carro capotado com Laura a salvo fora dele e Phillip preso nas ferragens mostra, segundo o autor, o que estava destinado a ambos: permanecerem desconhecidos um para o outro, incapazes de ter um amor recíproco. A tragédia mostra que na realidade nunca foi possível a Laura confiar em Phillip, uma vez que a relação é baseada em uma mentira66.

Em Barbara, por fim, a desconfiança mútua de Wolfsburg é um elemento que se repete na narrativa, na análise de Statt sendo trabalhada a partir de três artefatos: o quadro A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt, que fica no quarto de André; um conto de Turgeniev, que ele lê para ela; e o livro Huckleberry Finn, de Mark Twain que ela lê para Stella. Para o autor, a referência ao livro de Twain já exerce uma inspiração direta no cotidiano de Barbara, uma vez que a narrativa de liberdade e riqueza contrasta diretamente com o confinamento da jovem, que conta à médica que gostaria de ter seu filho em liberdade. Statt observa, no entanto, que o quadro de Rembrandt e o conto de Turgeniev por sua vez são referências mais complicadas, uma vez que dizem respeito ao entendimento mútuo de André e Barbara, os quais negociam as interpretações das obras e por meio delas desenvolvem seu relacionamento67.

A pintura retrata o Dr. Tulp e seus alunos numa aula onde o professor disseca o braço de um ladrão que acabou de ser enforcado. André mostra o quadro a Barbara e pede que ela faça uma análise da representação do braço. Imediatamente ela observa que a mão retratada foi trocada e André sugere que Rembrandt não errou, mas acrescentou o detalhe de pintá-la como numa imagem do atlas anatômico para demonstrar que a atenção dos alunos do Dr. Tulp não está voltada para o morto e sim para as instruções acadêmicas. Dessa forma André questiona a autoridade do cirurgião, que não demonstrava interesse no paciente e sim nas referências textuais. Para Staat, essa é uma leitura anti-autoritária da parte de André, que escolhe ficar do lado do ladrão morto e simpatiza com a atitude do pintor de desafiar aqueles que o contrataram para realizar seu trabalho68.

66 Ibid. p. 192 67 Ibid. p. 193 68 Ibid. p. 193-194

Essa interpretação de André para o quadro deixa Barbara confusa, à medida que a atitude dele contrasta com seu papel de informante da polícia secreta que a vigia. Por mais que veja nesse momento com ele diante da pintura uma cena peculiar, ela questiona se pode confiar nele. Com passar do tempo, no entanto, ao mesmo tempo em que ele abandona a função de fazer relatórios sobre ela e Barbara começa a perceber diversas nuances políticas em ambos dentro do contexto político em que vivem, como o fato dele trabalhar como informante como uma forma de encobrir erros do passado, ela se desilude da vida prometida por seu namorado, na qual ela não precisará trabalhar e se dedicará apenas a atividades domésticas.

O outro artefato que media a relação dos dois é o conto "O médico do distrito" de um livro de Turgeniev, que faz parte da coleção de André. Ele a convida para almoçar com ela um prato que ele irá cozinhar e ela olha seus livros. Ele comenta sobre o livro ter uma das suas histórias favoritas e conta para ela que se trata da história de um médico que trabalha no interior e atende uma paciente de dezenove anos que está em seu leito de morte e ainda não teve a

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