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O melodrama fantasma de Christian Petzold

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

DAVID KEN GOMES TERAO

O MELODRAMA FANTASMA DE CHRISTIAN PETZOLD

CAMPINAS 2019

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DAVID KEN GOMES TERAO

O MELODRAMA FANTASMA DE CHRISTIAN PETZOLD

Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Multimeios.

Orientador: Pedro Maciel Guimarães Júnior

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO DAVID KEN GOMES TERAO, E ORIENTADO PELO PROF. DR. PEDRO MACIEL GUIMARÃES JÚNIOR

CAMPINAS 2019

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Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Terao, David Ken Gomes,

T27m TerO melodrama fantasma de Christian Petzold / David Ken Gomes Terao. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

TerOrientador: Pedro Maciel Guimarães Júnior.

TerDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Ter1. Petzold, Christian, 1960. 2. Cinema Alemanha. 3. Cinema História -Séc. XX. 4. Cinema - História - -Séc. XXI. 5. Melodrama. 6. Gêneros

cinematográficos. I. Guimarães Júnior, Pedro Maciel, 1975-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Christian Petzold's ghost melodrama Palavras-chave em inglês:

Petzold, Christian, 1960-Motion pictures - Germany

Motion pictures - History - 20th century Motion pictures - History - 21th century Melodrama

Film genres

Área de concentração: Multimeios Titulação: Mestre em Multimeios Banca examinadora:

Pedro Maciel Guimarães Júnior [Orientador] Mariana Duccini Junqueira da Silva

Mariana Baltar Freire

Data de defesa: 19-08-2019

Programa de Pós-Graduação: Multimeios Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-1636-1658 - Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/2270735724739011

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BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO

DAVID KEN GOMES TERAO

ORIENTADOR: PEDRO MACIEL GUIMARÃES JÚNIOR

MEMBROS:

1. PROF. DR. PEDRO MACIEL GUIMARÃES JÚNIOR

2. PROFA. DRA. MARIANA DUCCINI JUNQUEIRA DA SILVA 3. PROFA. DRA. MARIANA BALTAR FREIRE

Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da comissão examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

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AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Agradeço à CAPES por tornar viável o desenvolvimento desta pesquisa através da bolsa concedida.

Agradeço enormemente às seguintes pessoas:

Ao Prof. Dr. Pedro Maciel Guimarães Júnior pelo companheirismo, atenção e generosidade na orientação, sempre sugerindo os melhores caminhos para tecer este trabalho da melhor maneira possível. Obrigado por acreditar desde o início nesse projeto e me motivar com as aulas, as conversas e com a escuta paciente e crítica.

À Profa. Dra. Mariana Duccini Junqueira da Silva e à Profa. Dra. Mariana Baltar Freire pelas trocas preciosas no período da qualificação, pelas quais pude enriquecer as discussões desta dissertação.

Aos demais docentes do Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Unicamp pelo aprendizado singular que me proporcionaram em disciplinas e encontros, me mostrando assim o valor da pesquisa acadêmica.

Aos colegas da Pós em Multimeios pelos bons momentos que compartilhamos nesse período, tanto os diálogos em torno de nossas pesquisas, quanto divertidos momentos de descontração, que tornaram leve e singela a experiência deste mestrado.

Aos queridos amigos e amigas que estiveram comigo me apoiando em cada desafio e celebrando cada vitória desse processo pela valiosa companhia.

Ao meu psicoterapeuta Carlos Augusto Rodrigues de Souza e à minha psiquiatra Williany Lika Akashi Inoue por me ajudarem a superar os momentos difíceis e a crescer enquanto ser humano. Mais do que um período de estudos acadêmicos, o mestrado foi um momento crucial da minha vida e por todo o apoio sou muito grato.

Por fim, agradeço às pessoas mais importantes da minha vida: minha família. A todos os meus familiares sou grato pelo amor e cuidado incondicionais, em especial à minha mãe Corrinha, meu pai Daniel e minha irmã Susana.

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RESUMO

No trabalho singular empreendido por Christian Petzold a partir de gêneros cinematográficos, observa-se o uso de diversas matrizes melodramáticas em determinadas obras que compõem sua filmografia. A partir do uso auto-consciente dessas convenções narrativas, bem como de um trabalho de mise-en-scène que se utiliza de elementos de autorreflexividade, Petzold discute a própria forma e os usos do melodrama, ao mesmo tempo em que discute questões sociais e históricas a respeito da Alemanha. Dessa maneira, o realizador se inscreve em uma linhagem de cineastas como Douglas Sirk e Rainer Werner Fassbinder que desconstruíram a forma e o discurso do gênero melodrama, ressignificando-os como lugar de comentário político.

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ABSTRACT

In the singular work undertaken by Christian Petzold from cinematographic genres, one observes the use of several melodramatic matrices in certain works that compose his filmography. From the self-conscious use of these narrative conventions, as well as a work of mise-en-scène using elements of self-reflexivity, Petzold discusses the very form and uses of melodrama, while discussing social and historical issues about Germany. In this way, the director joins a lineage of filmmakers such as Douglas Sirk and Rainer Werner Fassbinder who deconstructed the form and discourse of the melodrama genre, reassigning them as a place of political commentary.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...9

CAPÍTULO 1: UM TRÂNSITO EMOTIVO DE ESPECTROS...20

1.1 - O melodrama enquanto rastro fantasmal... 20

1.2 O clichê como sintoma do mal-estar social... 33

1.3 Narrativas da desconfiança... 57

CAPÍTULO 2: O MELODRAMÁTICO COMO COMENTÁRIO – ELEMENTOS DE REFLEXIVIDADE... 76

2.1 - A retórica da narração emotiva e a autoconsciência do excesso... 77

2.2 A persistência do melos: a canção como comentário do pathos...92

2.3 - Filmar o excesso em meio a corpos assombrados...108

CAPÍTULO 3: PHOENIX – PROBLEMAS DA HISTÓRIA, CRUZAMENTO DE TEMPOS...116

3.1 - O melodrama e o passado assombrado da Alemanha...116

3.2 - A mise-en-scène de uma mulher...128

3.3 - Os tempos se abrem e os fantasmas os atravessam...137

CONSIDERAÇÕES FINAIS...143

REFERÊNCIAS...145

Bibliografia...145

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INTRODUÇÃO

O Tiergarten é um grande parque no centro de Berlim onde se estendem diversos monumentos, desde a estátua do precursor do romantismo Goethe e do monumento ao trio de compositores Beethoven-Haydn-Mozart aos memoriais a grupos de pessoas chacinadas pelo nazismo. Tais obras foram dispostas ao longo do parque em diferentes contextos históricos e seguindo diferentes interesses daqueles que os ergueram. Tanto na imponência das estátuas de deuses greco-romanos ali colocadas pelos impérios passados como símbolos de opulência e refinamento quanto pela reparação histórica que a lembrança das vítimas da barbárie nazista deseja trazer, o Tiergarten atesta as diferentes épocas e processos políticos que compõem um tempo e um espaço presentes.

Assim, o morador da cidade ou o turista que visita o parque pela primeira vez é diretamente confrontado com toda uma história que se faz presente naquele espaço, seja no âmbito artístico-formal ou na memória das atrocidades cometidas no passado. O Tiergarten abre-se então como um panorama de diversas histórias condensadas nessas obras localizadas no centro da cidade.

Em Fantasmas (2005), Christian Petzold nos apresenta a personagem Nina (Julia Hummer), uma jovem órfã que vive em um abrigo e tira o lixo da grama, trabalho que realiza em meio à imensidão verde do parque. Seu corpo pequeno se destaca apenas por seu uniforme laranja de lixeira (Fig. 1). Lá, ela conhece Toni (Sabine Timoteo), uma jovem delinquente que, após ser agredida e roubada por dois homens, é perseguida pelos outros lixeiros após tentar roubá-los. Não há sinal de nenhuma das estátuas ou nada que remeta diretamente a um ponto turístico, as únicas inscrições naquele espaço sendo o trabalho, a violência e a tentativa do crime do furto. No entanto, Petzold faz do encontro de Nina e Toni um cenário que remete à fantasia, Nina chegando a devolver o sapato de Toni como se ela fosse uma Cinderela perdida às margens daquele ambiente de trabalho.

Mais tarde no filme, Nina rouba as roupas de uma loja junto com Toni e é abordada por Françoise (Marianne Basler), uma mulher mais velha que acredita que ela é sua filha perdida. Acreditando ser alguém que trabalha na loja e que a flagrou, ela sai correndo até chegar ao prédio do museu Martin-Gropius, se escondendo junto a um muro no qual são visíveis marcas de balas de um confronto da Segunda Guerra (Figura 2).

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Figuras 1 e 2: Nina no Tiergarten e no museu Martin-Gropius

Essas curtas descrições de sequências de Fantasmas demonstram como o cinema de Petzold se preocupa em narrar não apenas o microcosmos de seus personagens, mas também a maneira como este é invadido pelo passado histórico, o qual não se encerrou em um momento anterior em uma linha teleológica, mas que deixa rastros no presente. Jaimey Fisher (2013) alinha as narrativas de Petzold a um trabalho arqueológico através de elementos de gêneros cinematográficos, de modo que o realizador os utiliza para "recontextualizá-los e permitir que eles iluminem um certo presente na colisão deste presente com um passado que recua rapidamente" (Fisher, 2013, p.16). Nesse sentido, Fisher relaciona essa sensibilidade de Petzold com o trabalho de Walter Benjamin (2012)1, para o qualo passado é algo que não se pode captar com facilidade, sendo possível visualizá-lo "como imagem que relampeja irreversivelmente no momento de sua conhecibilidade" (Benjamin, 2012, p. 243).

Benjamin, em suas teses Sobre o Conceito da História propõe uma noção de história que se opusesse ao historicismo, visto pelo filósofo como uma visão burguesa da história, a qual privilegiaria uma narrativa de empatia para com os vencedores e inscreveria os acontecimentos do passado em um tempo "homogêneo e vazio". Para o filósofo, o materialismo histórico seria uma alternativa que, por sua vez, pensaria o passado como um acúmulo de ruínas que não seguiria uma ordem linear de acontecimentos. Para fugir à narrativa burguesa da história, o historiador deveria pensar fora da lógica de causalidade dos fatos, uma vez que o historicismo obedeceria a uma ideia positivista de progresso, a qual seria incapaz de frear o avanço do fascismo e compreender a história das barbáries que formam a cultura tal como ela é documentada2.

Exemplar dessa leitura histórica apresentada por Benjamin é o texto sobre uma pintura expressionista que condensa esse olhar:

1 FISHER, Jaimey. Christian Petzold. University of Illinois Press Language, 2013. p. 16

2 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política:

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Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Nele está desenhado um anjo que parece estar na iminência de se afastar de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, seu queixo caído e suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu semblante está voltado para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as arremessa a seus pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele volta as costas, enquanto o amontoado de ruínas diante dele cresce até o céu. É a essa tempestade que chamamos progresso (BENJAMIN, 2012, p. 246).

A pintura de Klee (Figura 3) aparece em uma cena de Phoenix (2014) pregada à parede do quarto em que Nelly, uma sobrevivente do holocausto em tratamento médico, repousa e escuta o relato de sua amiga Lene sobre o assassinato de todos os membros de sua família e sobre a fortuna que herdou (Figura 4). Fisher (2017) observa que Nelly, tal como outras personagens dos filmes de Petzold, adotam uma postura semelhante àquela observada por Benjamin no anjo de Klee, de modo que eles são empurrados para a frente pelo movimento de progresso, ao mesmo tempo em que olham para o que ficou para trás em suas vidas3. Uma imagem que se assemelha muito a esse quadro é a imagem de Barbara (2012), onde a protagonista, montada em uma bicicleta, olha por cima de seu ombro com um olhar alerta, como se alguém viesse atrás dela (Figura 5). Ao mesmo tempo em que registra uma atitude de seguir adiante sem perder de vista o que aconteceu no passado, Petzold, tal como Benjamin, questiona a ideia de uma superação de eventos históricos que antecederam o momento presente.

Figura 3: o Angelus Novus de Paul Klee

3 FISHER, Jaimey. Petzold’s Phoenix, Fassbinder’s Maria Braun, and the Melodramatic Archaeology of the

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Figura 4: o Angelus Novus na parede do quarto de Nelly

Figura 5: o olhar alerta da protagonista de Barbara (2012)

Pensando a história de seu país com uma postura semelhante à do filósofo, Petzold leva em conta os diversos processos (guerras, transições econômicas, reconfigurações geográficas) que formaram o imaginário do povo alemão. Tal como o terreno do Tiergarten, onde se identifica materialmente nas esculturas a presença de inscrições de outros tempos, estéticas e memórias, seus filmes carregam uma relação direta com a história da Alemanha no Século XX e com as diferentes formas fílmicas que precederam seu trabalho no cinema. É pelo que Fisher chama “arqueologia fantasmagórica dos gêneros” (FISHER, 2013, p. 14) que o realizador traça um comentário crítico de como a nova configuração socioeconômica da Alemanha pós-queda do Muro de Berlim implica em novas formas de representação de eventos cotidianos e relações interpessoais de seus personagens, nos quais se encontram os sintomas do mal-estar político.

Muitos críticos tendem a inserir Petzold no contexto do que chamam “Escola de Berlim”, juntamente com Angela Schanelec, Thomas Arslan e outros cineastas que surgiram no contexto da década de 1990 e que, segundo Roger F. Cook, Lutz Koepnick e Brad Prager (2013), trabalhavam a partir de uma experimentação com uma narração rarefeita e temas que lidavam com questões da Alemanha contemporânea a partir de estratégias de direção de atores minimalista e do uso de planos longos que se detinham em uma observação objetiva de seus

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personagens4. Apesar dos diversos estudos que visam aproximar o trabalho desses realizadores, seja por temáticas em comum ou pelo estilo cinematográfico que foge à estética espetacularizada convencionada em boa parte do cinema comercial, o termo “Escola de Berlim” não tem muita sustentação para além de um capricho crítico que resulta da tentativa mapear uma “nova onda do cinema alemão”, alguns críticos reconhecendo que não se trata de fato de uma escola de cineastas e que tampouco há algo que os uma nos termos de um manifesto ou uma declaração de princípios em comum5.

Essa suposta categoria não auxilia o desenvolvimento das análises realizadas na dissertação, uma vez que Petzold se encontra em um grupo restrito de cineastas contextualizados nessa “Escola” a trabalhar a partir das matrizes de gêneros cinematográficos6. O diretor, em entrevista a Marcio Abel (2013), assume uma afinidade com o trabalho do colega Dominik Graf, o qual é grande defensor do cinema de gênero, mas admite que esse tipo de cinema foi absorvido pela televisão na Alemanha e que isso impede os diretores de resgatá-lo como um retroevento7. Petzold, por sua vez, diz ter a sensação de realizar filmes “no cemitério do cinema de gênero, a partir dos restos que ainda estão lá, disponíveis” (ABEL, 2013, p. 63). Assim, encontrar essas nuances genéricas na obra de Petzold demanda uma investigação não da estética de cineastas contemporâneos a ele e sim uma análise de elementos de cinemas que o precederam e que se fazem presentes em sua filmografia.

A decisão de abordar a obra de Petzold pensando os usos do melodrama em seus filmes surgiu pela hipótese de que o realizador se inscreve ao seu modo em uma linhagem de cineastas alemães que utilizaram essas matrizes narrativas como lugar de comentário político, ao mesmo tempo em que propunham uma reconfiguração formal, usando maior reflexividade do discurso fílmico. O uso do gênero enquanto forma que aborda o peso histórico do passado foi utilizado anteriormente pelos cineastas do Novo Cinema Alemão, que subverteram diversos aspectos estruturais do gênero para ressignificá-lo em um cinema notadamente político.

4 COOK, Roger F.; KOPP, K. e PRAGER, B. Introduction: The Berlin School – Under Observation. In COOK,

Roger F.; KOEPNICK, L.; KOPP, K. e PRAGER, B. (Eds). Berlin School Glossary. An ABC of the new wave in German Cinema. 1. Ed. Bristol/UK: Intellect, 2013. p. 1-25

5 SEESSLEN, Georg. Uma escola do olhar: o projeto aberto dos cineastes da “Escola de Berlim”. In ZACHARIAS,

Georg. Escola de Berlim. 2. Ed. Rio de Janeiro: Stamppa: 2013. p. 9-20

6 Em uma troca de e-mails com os diretores Dominik Graf e Christoph Hochhäusler, Petzold partilha da ideia de

que o cinema de gênero é um caminho produtivo parar fugir do academicismo de seus colegas da Escola de Berlim. Esse texto está disponível no catálogo da mostra Escola de Berlim do CCBB de 2013.

7 ABEL, Marco. O cinema de identificação me irrita: entrevista com Christian Petzold. In ZACHARIAS, J. C.

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Caryl Flinn (2003) observa a presença do melodrama em diversos momentos da história do cinema alemão: nos filmes Kammerspiel dos anos 20, nos filmes de esquerda da República de Weimar, em filmes financiados pelo regime nazista nos anos 40, como os filmes alemães de Douglas Sirk, os filmes-espetáculo nos anos 50 e nos Heimatfilms. No entanto, na década de 1970, o gênero era visto ora como um produto norte-americano colocado à força em terreno alemão, ora como a memória de um cinema do regime nazista. Apesar de tal recepção da crítica, o melodrama foi visto por cineastas como Fassbinder, von Trotta e Sanders-Brahms como uma forma ideal, dada sua preocupação com eventos do passado, temas que caracterizaram a obra desses autores8.

De maneira semelhante à desses realizadores, as narrativas melodramáticas são retrabalhadas por Petzold como um meio de traçar um paralelo entre dramas privados e traumas históricos. Exemplar dessa postura é a recorrência, observada por Fisher, de personagens femininas incapazes de superar situações do passado9, como é o caso de Fantasmas com Françoise e sua narrativa circular onde, buscando atenuar a perda de sua filha, aborda jovens garotas com a certeza de elas serem sua filha só para se depois se desiludir e dar-lhes dinheiro para compensar a situação criada por ela. Em contraste com o tom realista empregado por cineastas como os irmãos Dardenne, Petzold desenvolve uma interseccção do fantástico com o retrato das mudanças do mundo contemporâneo10. O melodrama, seu tom excessivo e seus artifícios, cria um lugar de comentário à incomunicabilidade que domina o universo dos filmes do diretor, ao mesmo tempo em que revisita alguns caminhos estéticos dessa corrente crítica de cineastas alemães que o precederam.

Ao escolher abordar a obra de Petzold a partir do viés do melodrama, encontra-se um problema teórico: deve-se tratar deste como um modo ou um gênero? Essa questão surge uma vez que Linda Williams (1998), em revisão do que os teóricos do cinema já desenvolveram até então sobre o melodrama, afirma que este não é um gênero específico como o western, nem um desvio da narrativa realista clássica, e sim “uma forma peculiarmente democrática e americana que busca a revelação dramática das verdades morais e emocionais por meio de uma dialética do pathos e da ação” (WILLIAMS, 1998, p. 42). Dessa forma, o melodrama seria o modo fundamental do cinema clássico hollywoodiano, sua forma narrativa pressupondo uma simpatia pelas virtudes de personagens identificados como vítimas e a trajetória da trama se preocupando

8 FLINN, Caryl. The New German Cinema: Music, History and the Matter of Style. Berkeley, Los Angeles,

London: University of California Press, 2004. pp. 29-30

9 FISHER, 2013, pp. 85-86 10 Ibid. p. 81

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mais com a recuperação da inocência do que com as causas psicológicas por trás das ações de seus personagens11. O melodrama seria então um componente emocional que poderia ser encontrado em filmes dos mais variados gêneros.

Por outro lado, Thomas Schatz (1981) apresenta uma leitura do melodrama enquanto gênero, desenvolvido a partir de um estilo comum ao cinema norte-americano desde o cinema silencioso, no qual as formas narrativas combinam drama e música (melos). Nesse sentido, todo filme de Hollywood poderia ser descrito como “melodramático”. No entanto, Schatz observa que o que era um modo melodramático na era silenciosa foi adaptado a narrativas românticas e, uma vez que encontrou nelas fatores formais e ideológicos em comum, emergiu como uma fórmula distinta. Assim, o melodrama se desenvolveu enquanto gênero a partir dos filmes silenciosos de Griffith nas décadas de 1910 e 1920, mantendo força na década de 1930 com o surgimento do cinema sonoro, alcançando enorme sucesso na década de 1940 e chegando ao seu auge na década de 1950 com cineastas como Douglas Sirk, Vincente Minnelli e Douglas Sirk explorando com maior maturidade e auto-consciência das formas o cenário de ansiedade social do pós-guerra12.

Para Schatz, o gênero cinematográfico é produto de uma interação entre público e estúdio e imprime-se gradualmente na cultura até que se torne um sistema familiar e significativo. Uma vez que esses sistemas são constituídos por fórmulas narrativas populares no cinema, torna-se possível analisar os gêneros em termos de componentes estruturais como trama, personagens, temática e estilo. Uma vez então que um gênero se estabelece enquanto um contrato entre cineastas e público, o filme de gênero é o evento que honra esse contrato. Assim, falar do melodrama, por exemplo, não seria falar sobre um filme específico do gênero melodrama, e sim da série de convenções que torna possível identificá-lo dessa maneira13.

Tal sistema é ao mesmo tempo estático e dinâmico. Ou seja, por mais que haja uma fórmula familiar que possibilite identificar um gênero a um conflito comum que se repete em diferentes filmes, as constantes mudanças culturais e industriais, bem como a influência de outros gêneros, fazem com que as convenções genéricas passem por um refinamento com o passar do tempo14.

11 WILLIAMS, Linda. Melodrama Revised. In BROWNE, Nick. Refiguring American Film Genres: History and

Theory. Berkeley: University of California Press, 1998. p. 42

12 SCHATZ, Thomas. Hollywood genres: formulas, filmmaking, and the studio system. 1. Ed. Boston:

McGraw-Hill, 1981. pp. 221-223

13 Ibid. pp.15-18 14 Ibid. p. 16

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A abordagem do melodrama enquanto um gênero cinematográfico mostra-se muito mais produtiva do que a ideia de modo, uma vez que a tônica do cinema comercial mundial, influenciada pelas tendências consolidadas por Hollywood, apresenta em maior ou menor nível um tom melodramático caracterizado pelos conflitos morais envolvendo personagens representantes da virtude e da vilania, bem como a manifestação do pathos em empatia a protagonistas que assumem o papel de vítimas. A abordagem de Williams não possibilitaria uma análise mais detida dos filmes analisados enquanto obras construídas a partir de convenções narrativas do melodrama, sendo necessário um modelo mais restritivo para definir um determinado corpus de filmes. No entanto, a teoria de Williams a respeito das matrizes melodramáticas é profundamente vasta e em um texto anterior a essa revisão onde propõe a ideia de modo a autora afirma que o melodrama é um dos três “gêneros do corpo”, juntamente com o horror e a pornografia. Essa leitura em termos de gênero será muito útil para as análises que serão desenvolvidas mais à frente.

O corpus de filmes analisados nessa dissertação tem em comum convenções narrativas que os aproximam do melodrama enquanto aquilo que Schatz denomina gênero de integração. Opondo essa categoria, a qual englobaria também o musical e a screwball comedy, à categoria de gêneros de ordem, a qual englobaria o western e os filmes de gângster e detetive, o autor encontra características opostas que os definem em seus conflitos centrais e na maneira como a resolução se dá nessas histórias. Assim, essas duas categorias seriam as duas estratégias narrativas dominantes no uso dos gêneros por realizadores. Schatz sintetiza da seguinte maneira a distinção entre elas15:

Gêneros de ordem (Western, Filmes de gânster e detetive)

Gêneros de integração (Musical, Screwball comedy e melodrama familiar)

Herói Individual (dominantemente masculino)

Casal/Coletivo

(dominantemente feminino)

Cenário Espaço disputado

(ideologicamente instável)

Espaço civilizado (ideologicamente estável) Conflito Externalizado - violento Internalizado - emocional Resolução Eliminação (morte) Aceitação (amor)

Temáticas Mediação-redenção Código do macho Auto-confiança isolada Integração-domesticação Código do familiar-maternal 15 Ibid. pp. 34-35

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Utopia enquanto promessa Cooperação comunitária Utopia enquanto realidade É necessário observar brevemente que mesmo diante dessas fórmulas estabelecidas, não é possível dialogar com os filmes através de uma visão purista dos gêneros, uma vez que há frequentemente o cruzamento de diversas convenções narrativas dentro de um objeto fílmico. Apesar disso, a diferenciação feita por Schatz é precisa, embora encontre-se nos filmes de Petzold outras representações dos personagens pensando papéis de masculinidade e feminilidade, e a afirmação de um espaço “ideologicamente estável” seja sempre questionável, bem como os termos em que a utopia dos personagens é apresentada. Mesmo diante dessas possíveis contradições, essas características permitem selecionar para análise apenas as obras que tenham maior afinidade com o melodrama, em vez de analisar uma filmografia como um todo, pensando o modo melodramático como algo presente em tudo, método que não tornaria possível a escrita dessa dissertação dentro do tempo e metodologia determinados para sua realização.

Assim, Cuba Libre (1996), A Segurança Interna (2000) e Something to Remind Me (2001), filmes genericamente mais próximos dos thrillers criminais, Yella (2007), narrativamente estruturado a partir de elementos do horror e Jerichow (2008), reconhecidamente um filme construído a partir das matrizes do film noir, todas obras mais próximas das narrativas dos gêneros de ordem e com menor ênfase nos conflitos emocionais, em sua configuração familiar e romântica, ficaram fora do corpus de análise. Nisso, os filmes de Petzold que integram as discussões a partir de matrizes melodramáticas mais acentuadas são Pilotinnen (1995), The Sex Thief (1998), Wolfsburg (2003), Fantasmas (2005), Dreileben: algo melhor que a morte (2011), Barbara (2012), Phoenix (2014) e Em Trânsito (2018)16.

O caráter fantasmagórico que Fisher atribui à arqueologia que Petzold realiza a partir dos gêneros cinematográficos é um ponto crucial para entender como as matrizes narrativas e estéticas do melodrama são inseridas dentro de seu cinema. Fazendo filmes muito depois do auge do gênero em Hollywood e do modernismo, ele retrabalha diversos temas dentro de uma encenação autorreflexiva e que manifesta o excesso melodramático dentro de uma certa contenção, frequentemente até nos termos de uma desintegração das relações convencionadas

16 Os filmes Pilotinnen (1995) e The Sex Thief (1998) serão abordados respectivamente em seus títulos em alemão

original e traduzido para o inglês uma vez que não houve abordagens em português que os traduzissem para um título nessa língua. Pilotinnen é o plural feminino de Pilotin, dando a conotação já no título que a história trata de duas mulheres, sendo preferível em relação ao título em inglês Pilots.

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no gênero. Para pensar qual o caráter do melodrama nos filmes do diretor, será necessário questionar o que há de fantasmal nele.

Kevin Hetherington (2001) fala do fantasma nos termos daquilo que não é totalmente descartado dentro de uma linearidade temporal de produção, consumo e descarte. De maneira anacrônica, aquilo que escapa a essa sequência continua a se apresentar enquanto fantasma, o qual, tal como a ruína, mantém o poder de assombrar, uma vez que não foi totalmente embora e continua retornando, fora do tempo, mas revelado no espaço17. Alinhando seu pensamento ao de Benjamin, Hetherington localiza a presença do fantasma

dentro da materialidade da vida social; um repositório de relações sociais negligenciadas, desejos utópicos fora de moda e lembranças meio esquecidas agora descartadas ou colocadas de lado (HETHERINGTON, 2001, p. 26).

Assim, o fantasma seria a antítese do mundo enquanto sequência de eventos dentro de um tempo capitalista atual. A presença fantasmagórica se assemelha à percepção da história fora dos eixos do positivismo historicista criticado por Benjamin. Ela abre a possibilidade de olhar anacronicamente para a história enquanto conjunto de passados que se manifestam constantemente no presente, permitindo assim compreendê-lo melhor.

Nessa dissertação, essa fantasmagoria será lida em uma tripla manifestação: o fantasma do melodrama, o fantasma do cinema alemão e o fantasma da história da Alemanha18. Diante de uma figura fantástica tão difícil de se apreender, não se propõe aqui a pretensão de embasar densamente uma teoria sobre tal presença e suas implicações estético-políticas, porém, o fantasma se constituirá como um fio-condutor presente nas diversas análises deste trabalho, seja pelo seu caráter de permanência, seja pela sua condição de efemeridade.

No primeiro capítulo será discutida o lugar da obra de Petzold diante da história do melodrama enquanto gênero cinematográfico e se iniciará uma primeira discussão sobre as escolhas estético-narrativas que fazem com que o realizador reconfigure algumas de suas convenções típicas. Para isso, a revisão de Françoise Zamour em torno da ideia de um melodrama contemporâneo será central para pensar a relação da obra do diretor diante dos cinemas que o antecederam, suas principais influências sendo resgatadas através do livro de Jaimey Fisher sobre o realizador. Para melhor compreensão dos principais componentes

17 HETHERINGTON, Kevin. Phantasmagoria/Phantasm Agora: Materialities, Sacialities and Ghosts. Space and

Culture, 1(11/12), 2001, pp. 24–25.

18 Nesse sentido, faz-se um paralelo ao que Zamour observa enquanto a tripla relação com a história estabelecida

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narrativos do melodrama, Jean-Loup Bourget, Thomas Schatz e Thomas Elsaesser serão os autores centrais. Para um primeiro debate sobre os fundamentos por trás da estética e da visão de mundo dos melodramas de Petzold, os quais serão tratadas a partir do termo desconfiança, serão trazidas para o texto tanto a teoria de Peter Brooks sobre o melodrama quanto os escritos de Bertold Brecht sobre a ideia de um gesto social de distanciamento no trabalho atoral.

No segundo capítulo, a partir de uma maior ênfase na análise fílmica, os filmes de Petzold serão lidos a partir de alguns elementos de reflexividade de sua mise-en-scène, de modo a compreender como o excesso se manifesta em meio a um universo dominado pela desconfiança que coloca os corpos em cena em um estado de contenção dos sentimentos, essa encenação auto-consciente servindo como comentário à própria natureza do melodrama. Para comentar a relação entre melodrama e verossimilhança Eric Bentley será um autor-chave nas discussões. A ideia de excesso no gênero será desenvolvida a partir de Linda Williams, Nowell-Smith, Steve Neale, bem como outros autores já trazidos no capítulo anterior.

No terceiro capítulo, Phoenix será o objeto de investigação na condição de filme-síntese da abordagem de Petzold em relação ao melodrama, bem como de seu lugar na história do cinema alemão e da postura que adota diante do passado histórico do país. Para comentar sobre a relação do Novo Cinema Alemão com a realidade pós-guerra, dando ênfase ao filme O Casamento de Maria Braun, de Fassbinder, será utilizado o estudo de Anton Kaes. Para traçar a relação entre a obra de Fassbinder e Petzold, Jaimey Fisher também será fundamental. Em uma aproximação com os Holocaust films, serão fundamentais textos de Judith E. Doneson e Aaron Kerner. Para analisar a influência do Expressionismo Alemão no filme, as referências teóricas serão de Lotte Eisner e Sigfried Kracauer. Para fazer um paralelo entre Phoenix e Um corpo que cai, de Hitchcock, é fundamental a aproximação que Victor I. Stoichita faz do filme com o mito de Pigmalião, juntamente com leituras feministas do melodrama de Pam Cook, Tania Modleski e Laura Mulvey. Por fim, a discussão do caráter contemporâneo desse cinema será lida pela óptica de Giorgio Agamben.

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CAPÍTULO 1: UM TRÂNSITO EMOTIVO DE ESPECTROS

Melodrama contemporâneo, melodrama autorreflexivo, melodrama fantasma. A presença do gênero nas obras de Petzold passa por diversos lugares e possíveis nomeações. Diante de uma presença tão massiva do melodrama no cinema mundial ao longo de tantos anos é necessário inicialmente localizar onde os filmes do diretor se encontram em meio a tantas reinvenções dessas matrizes narrativas. Falar da obra de um cineasta nunca é falar apenas dos objetos específicos que compõem a sua filmografia, mas também de seu contexto e de seu lugar na história do cinema.

Diante disso, esse primeiro capítulo desenvolve em uma investigação inicial do lugar que Petzold ocupa em relação à história do melodrama e do que propõe dentro de um gênero tão vastamente explorado. Para isso, é necessário fazer um paralelo a obras e matrizes narrativas que o precederam e observar como o diretor reconfigura convenções do gênero e propõe sua própria estética para o melodrama.

1.1 - O melodrama enquanto rastro fantasmal

Identificando a "Trilogia Alemã" de Fassbinder como ponto de partida do que delimita como o melodrama contemporâneo, Françoise Zamour (2016) traça uma investigação de como o gênero sobreviveu a partir de novas leituras ao longo dos anos19. Para a autora, o melodrama, tal como outras formas de expressão cinematográfica, tem uma relação direta com a história seja no que diz respeito ao tempo em que sua produção (o pensamento da época, seus costumes), seja no que se refere ao seu lugar na história do cinema. O gênero em seu tratamento contemporâneo, contudo, vê na consciência histórica uma dimensão essencial, muitas vezes até como um de seus principais temas20.

A autora observa que, dentro dessa abordagem, "cada novo melodrama é tanto um trabalho próprio quanto uma tomada de posição sobre a história do melodrama" (Zamour, 2016, p. 75). Para Zamour, o melodrama contemporâneo, dotado de uma relação consciente com a temporalidade, estabeleceria duas dicotomias em relação a diferentes modalidades de relação

19 ZAMOUR, Françoise. Le mélodrame dans le cinéma contemporain: une fabrique de peuples. Rennes: Presses

universitaires de Rennes. 2016, Ibid., pp. 17-18

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com o passado, em diferentes regimes de historicidade: a oposição entre a aceitação e a recusa do passado e a natureza e a densidade da ligação entre passado e presente21.

A primeira oposição seria a partir de duas possíveis posturas diante do "legado do gênero", que seriam identificadas através da maneira como o filme emprega os elementos diegéticos típicos do melodrama, tais como personagens-tipo e situações-clichê, em maior ou menor proximidade do uso de tais convenções no passado. Do lado do cinema que reivindica uma memória da forma clássica do gênero se encontram por exemplo cineastas como Pedro Almodóvar, Clint Eastwood e Aki Kaurismäki. De outro lado, exercendo uma recusa deliberada ao cinema clássico, Zamour cita cineastas como Naomi Kawase e Hirokazu Koreeda, que empregam situações melodramáticas fugindo da emoção direta e da efusão ou mudando o sentido da cena melodramática para uma outra leitura dessas situações como nos filmes de Bong Joon-ho22.

A segunda oposição, por sua vez teria a ver com o grau de referência aos filmes clássicos que os melodramas contemporâneos implicam. Zamour identifica dois casos: os cineastas que trabalham a partir de características estilísticas ou temáticas do melodrama e aqueles que trabalham referenciando diretamente um corpus preciso, um filme específico ou um tipo de melodrama localizável. No primeiro caso se encontraria, por exemplo, a trajetória da vítima nos filmes de Lars Von Trier, que daria continuidade a uma temática já presente em filmes de Frank Borzage e Edmund Goulding, no entanto sem trazer a lembrança direta de nenhum deles. No caso dos cineastas que trazem em seus filmes uma lembrança direta de obras de outros tempos, a autora lembra o cinema de Robert Guédiguian, que revisita a obra de cineastas como Marcel Pagnol, Jean Grémillon e Marcel Carné23.

Apresentadas tais dicotomias e as diferentes relações com o passado que elas implicam, é possível perceber na obra de Petzold, mesmo nas situações dramáticas que pressupõem uma maior carga emocional, uma preferência à contenção em vez da efusividade. No entanto, essa postura do diretor não implica uma recusa a uma herança do melodrama em sua forma clássica, uma vez que o cineasta assume influência direta de diversos cineastas que o precederam como Rainer Werner Fassbinder, Howard Hawks, Edgar G. Ulmer, Alfred Hitchcock, Kathryn

21 Ibid. p. 82-87 22 Ibid. pp. 81-87 23 Ibid. pp. 87-91

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Bigelow, dentre outros, transpondo temas clássicos para uma abordagem crítica da sociedade alemã nos diferentes períodos retratados24.

Zamour aproxima o melodrama da ideia de hipertextualidade de Gérard Genette, pela qual o autor chama hipertexto “todo texto derivado de um texto anterior por transformação simples (...) ou por transformação indireta: diremos imitação” (GENETTE, 2010, p. 22). A partir disso, poderia-se falar nos termos de um “hipofilme” e um “hiperfilme”, em relações de hipertextualidade que se encontrariam entre a citação direta entre filmes e o remake. No entanto, a autora toma a precaução de observar que as análises de Genette se concentram em “gêneros de transformação”, os quais a partir de imitação ou derivação, em termos de pastiche e paródia, gerariam novos gêneros. As relações de hipertextualidade no melodrama, por sua vez, não o fazem, permanecendo sempre no domínio dos elementos definidores do gênero em si, apesar de suas inúmeras combinações possíveis. Zamour nomeia então cinco modos de intertextualidade entre filmes do gênero: inversão, derivação, dilatação, continuação e transposição25.

Na obra de Petzold observa-se a presença de dois desses modos: a derivação e a dilatação. Para Zamour a derivação implica em um filme construído a partir de um ou mais elementos característicos de outros filmes, enquanto a dilatação consiste em trabalhar a partir de um ou mais elementos de filmes clássicos, aumentando sua importância em uma obra contemporânea, de modo que este se torne o assunto principal de sua diegese26. Então, ao mesmo tempo em que recorre a convenções narrativas já utilizadas anteriormente, Petzold escolhe diferentes perspectivas em relação a alguns temas, que se em alguns filmes anteriores eram eventos periféricos dentro de um todo, se tornam o principal foco do conflito entre seus personagens.

Exemplar dessa dupla relação de derivação e dilatação é a inspiração do realizador no filme Uma aventura na Martinica (Howard Hawks, 1944) para compor a relação de seus personagens em Barbara. Petzold comenta que o que chamou sua atenção no filme de Hawks foi a relação dos amantes interpretados por Humphrey Bogart e Lauren Bacall, que olham desconfiadamente um para o outro, e são obrigados a se expressar discretamente diante da situação de vigilância na qual a polícia secreta os mantém. Em seu filme de 2012, Petzold

24 FISHER, 2013, Ibid., p. 11-12 25 Zamour, 2016, pp. 91-95 26 Ibid. pp. 102-106

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replica esse modus operandi de Martinica, no qual as circunstâncias produzem novos tipos de pessoas que beijam, falam e olham uns para os outros de maneira diferente27 (Figuras 6 e 7).

Figuras 6 e 7: personagens sob vigilância em Uma aventura na Martinica e Barbara

Em Phoenix, por sua vez, Petzold utiliza temas de O casamento de Maria Braun (Rainer Werner Fassbinder, 1979) e Um corpo que cai (Alfred Hitchcock, 1958), respectivamente a mulher alemã que sai em busca de seu marido após o fim da Segunda Guerra Mundial e o amante que deseja remodelar uma mulher que ele não reconhece ser sua amada para que ela se torne exatamente a imagem idealizada que ele tem dela. Essas relações serão analisadas mais detidamente no terceiro capítulo, o qual terá como foco Phoenix como o filme-síntese da abordagem de Petzold em relação ao gênero melodrama.

Apesar de as análises ao longo dessa dissertação referenciarem filmes de diferentes épocas e autores, as hipóteses desenvolvidas nessa dissertação acabam por retomar constantemente Sirk e Fassbinder como os autores que, anteriormente a Petzold, foram o ápice do melodrama tanto em uma linguagem clássica quanto em um uso crítico junto às vanguardas do cinema moderno, a partir de um uso irônico da narrativa e uma linguagem autorreflexiva da estética melodramática.

Essa conexão com as formas do cinema clássico e as matrizes melodramáticas na obra de Petzold vem em caráter de estudo, muito devido à colaboração de Harun Farocki, que foi seu professor na faculdade e co-roteirista em alguns de seus filmes. O trabalho de Farocki enquanto realizador foi a partir de obras identificadas como filmes-ensaio e documentários nos quais através da apropriação de imagens pré-existentes vindas da mídia e de dispositivos de vigilância, o realizador realizava um estudo crítico do caráter político por trás da produção imagética. Petzold assume a influência direta de filmes como A Entrevista (1997) e Capital de Risco (2004)28, onde além de uma tecer uma análise dos processos econômicos que compõem o corpo de trabalhadores das empresas pelos processos de seleção e das transações que

27 Barbara Press Release, 2012. 28 FISHER, 2013 p. 36-37 e p.110

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movimentam o mercado, Farocki observa a maneira como essas negociações se dão a partir dos gestos e sutilezas físicas e retóricas implicadas pelas partes envolvidas. Além de uma observação atenta a esses processos econômicos, o cinema do diretor partilha com Farocki um lugar de crítica do próprio olhar e dos meios que constroem esse modo de ver, a partir do próprio questionamento da produção de imagens.

Petzold (2013), no entanto, reconhece que para além desse trabalho ensaístico, Farocki tinha enorme interesse no cinema narrativo29. Petzold observa que nos filmes de gêneros populares emerge a nova fisicalidade de um corpo neoliberal, concomitante com os novos desejos que essa configuração econômica instiga30. O melodrama petzoldiano se desenvolve formalmente tanto por uma análise materialista da história alemã quanto essa consciência do lugar que esse cinema ocupa historicamente em relação às formas clássicas e modernas.

O caráter fantasmagórico do melodrama de Petzold se manifesta, em primeiro nível, nos sujeitos de suas histórias. Tal como referido no título do filme de Petzold, ao encenar as histórias de seus personagens, o diretor inscreve em seus corpos, gestos e ações a condição de fantasmas. Para Valerie Kaussen (2013), essa associação se dá nos filmes de Petzold uma vez que tais figuras fantasmagóricas "são lembretes das exclusões do capitalismo, e especialmente dos indivíduos que elas deixam para trás. Nesse sentido, os fantasmas representam a mobilidade, o desenraizamento, e a resultante alienação da vida moderna" (KAUSSEN, 2013, p. 147).

Kaussen observa que, nos filmes de Petzold, as conexões a nível afetivo e familiar são fragmentadas, uma vez que são situadas em espaços globalizados. Um exemplo disso seriam as gravações de vídeo, sobretudo de câmeras de vigilância, enquanto meios para tais conexões e o estado de alienação que elas atestam31. Através do olhar desses dispositivos, esses personagens-fantasmas são despidos de sua individualidade e se tornam objetos do sistema financeiro e das diversas relações que ele estabelece. Em The Sex Thief, as gravações de vídeo são utilizadas nas entrevistas de trabalho às quais Franziska, a irmã de Petra, protagonista se submete, sendo ao mesmo tempo um meio de discriminar sujeitos econômicos e de estigmatizar as mulheres em papéis de gênero associados à sexualidade (Figura 8). É também por meio de uma dessas gravações que a protagonista estabelece um olhar crítico para esse mundo de assédios contra o qual ela elabora uma reação. Em Wolfsburg, é pela câmera de segurança de um supermercado

29 ABEL, 2013, p.61 30 FISHER, 2013, p. 18

31 KAUSSEN, Valerie. Ghosts. In COOK, Roger F.; KOEPNICK, L.; KOPP, K. e PRAGER, B. (Eds). Berlin

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que o espectador é apresentado a Laura (Figura 9), uma proletária submetida ao assédio de seu chefe e depois ao jogo de aproximação e desejo do homem que matou seu filho e com quem ela se envolve. Essa imagem mostra um corpo significado apenas pelo trabalho e que se vê impossibilitado de desejar enquanto indivíduo, dada sua condição econômica e de gênero. Além da esfera do trabalho, um vídeo da câmera de um supermercado em Fantasmas mostra o carrinho onde a filha de Françoise estava sendo levada, essa gravação sendo revisitada em um flashback (Figura 10). A impotência causada pela perda da filha aqui é amplificada pela imaterialidade do registro do crime, que não pode ser diretamente acessado e tira da condição de sujeito tanto a criança quanto a pessoa que a leva embora.

Figuras 8-10: As gravações de vídeo

A partir da presença desse tipo de registro de imagem, Petzold emula o cinema de Farocki, o qual sempre trabalhou com imagens de arquivo, dentre elas as de câmeras de vigilância, de modo a questionar as relações de poder por trás desse tipo de dispositivo. Ao mesmo tempo, o realizador também faz um comentário ao próprio olhar do público frente à esfera do privado, onde se dá a encenação do melodrama e o lugar de julgamento moral frente a ele. Sujeitadas a essa esfera do capitalismo que os enquadra em imagens, resta a essas pessoas conter seus gestos ou se verem impotentes diante da irreversibilidade das tragédias que ficaram no passado do tempo congelado dos vídeos.

Em todos esses casos, é possível observar que o olhar da sociedade de mercado captura a presença desses corpos enquanto transeuntes de um cenário de mudanças econômicas, no entanto não implicando qualquer relação de alteridade em relação a elas. A condição de fantasma vivida pelos personagens não é apenas aquela de viver às margens do capitalismo,

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mas também apagada da história. Tal como todas as pessoas que passaram por aquele supermercado, a filha de Françoise é apenas mais uma figura que esteve presente em um momento histórico que será dado como superado no futuro. Essas vidas tendem a serem apagadas pela visão historicista apontada por Benjamin, a qual ignora as narrativas dos vencidos, inscrevendo-as em um tempo homogêneo e vazio, sem pensar os processos históricos que os trouxeram a essa condição. Petzold filma esses registros de vídeo e a vida dessas pessoas como uma maneira de se contrapor a essa visão histórica.

A presença desses personagens enquanto espectros sem identidade, impotentes diante das voltas que o mundo dá, dão ao espectador uma diferente leitura de um dado convencional do melodrama: os "tipos dramáticos". Jean-Marie Thomasseau (2005) observa a partir do Tratado do Melodrama, um texto em tom jocoso redigido por autores anônimos acerca do que deveria constituir um bom melodrama, a seguinte configuração dos personagens:

Os personagens do melodrama são personae, máscaras de comportamentos e linguagens fortementes codificadas e imediatamente identificáveis. Esta tipologia caracterizada pela fixidez dos tipos reduz-se a algumas entidades principais: o vilão, a vítima inocente, o cômico; e outras secundárias, como o pai nobre, ou o protetor misterioso (Thomasseau, 2005, p. 39)

Embora a análise de Thomasseau seja direcionada principalmente ao melodrama teatral, essa configuração de tipos codificados pode ser facilmente ser encontrada no cinema, uma vez que o gênero é transposto em muitas das suas construções narrativas e, consequentemente, implicações morais para a linguagem cinematográficas. É a partir dessa configuração que a identificação é gerada no espectador, que deseja, juntamente com o protagonista da trama, que a justiça seja feita e o conflito seja solucionado, trazendo assim ordem para o mundo apresentado.

Zamour, no entanto, chama a atenção para a maneira como esses tipos dramáticos são retrabalhados no cinema contemporâneo, uma vez que não haveria uma persistência imutável dessa tipologia. Ela cita, por exemplo, o caso de Tudo sobre minha mãe (Pedro Almodóvar, 1999), onde o espectador pode identificar-se e ter maior tolerância com minorias sexuais, uma vez que na narrativa tais personagens pratiquem atitudes de sacrifício e virtude e sejam muitas vezes associados a tipos dramáticos como a vítima e o cômico, que despertam a simpatia do espectador. A partir desses arquétipos já consolidados no gênero, é possível subverter estereótipos e promover leituras progressistas de grupos marginalizados32. É fazendo uso dessas convenções genéricas que permanecem ao longo dos anos que se agenciariam narrativas em

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meio às transformações do mundo através do movimento de "conservar o tipo para fazer evoluir os personagens" (Zamour, 2016, p. 48).

Em Petzold, essa evolução dos personagens a partir de um tipo conservado é ainda mais incisiva politicamente, embora mais discreta. As características dos tipos dramáticos são preteridas em função da condição dos personagens enquanto testemunhas de situações históricas (o nazismo, a Guerra Fria, a transição para o neoliberalismo após a Reunificação) a partir de lugares sociais específicos: as imigrantes bósnias e norte-africanas Ana e Melissa em Dreileben: algo melhor que a morte e Em Trânsito; Nelly, a judia sobrevivente do holocausto em Phoenix; Barbara, a médica submetida à vigilância da polícia na Alemanha Oriental em Barbara, dentre outros.

Hetherington comenta que o fantasma se apresenta em caráter figural, algo que é visto, mas não representado, e que à sua maneira fala, enuncia através de objetos, aquilo que não pode claramente ser expresso enquanto discurso. Nesse sentido, os fantasmas teriam o desejo de se comunicar, passar uma mensagem, de modo a fazer lembrar o que foi esquecido33.

Assim, o fantasmagórico no melodrama petzoldiano surge também a nível imagético, as formas e cores de seus filmes evocando motivos que o precederam na obra de outros realizadores. Um exemplo disso surge nas cores saturadas de Sirk, que na obra de Petzold esvaziam seu caráter “flamejante” anterior, dando lugar a um sentido de efemeridade carregado pelo espectro de luzes e cores que assim que surge tende a desaparecer. John Mercer e Martin Shingler (2004) lembram que tal como as cores, as luzes são usadas expressivamente no cinema de Sirk de modo que sombras e filtros coloridos geram efeitos de iluminação artificiais, representando o humor dos personagens em vez de compor cenas naturalistas. No entanto, esse elemento de cena, tal como os outros componentes da mise-en-scène sirkiana, são usados em um tom de ironia, de modo que muitas vezes a história ou os personagens podem estar dizendo uma coisa e a encenação outra34.

Um exemplo dessa opção estética de Sirk é a cena em Tudo o que o céu permite (1955) em que Cary vê filha Kay em prantos e entra em seu quarto para falar com ela. Pela janela entra um feixe de luz multicolorido e evidentemente produzido artificialmente e Kay conta à sua mãe que estava na biblioteca com seu namorado e um jovem fez uma piada com Cary, dizendo que

33 HETHERINGTON, 2001, p. 25

34 MERCER, John; SHINGLER, Martin. Melodrama: Genre, Style, Sensibility. Londres: Wallflower,2004, p.

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ela tinha um caso com Ron mesmo antes de se casar com o pai dela e que esses rumores estavam fazendo muito mal para ela. Sua mãe diz não saber o que fazer e Kay lança o ultimato “você ama tanto ele a ponto de estar disposta a arruinar nossas vidas?”. A luz multicolorida, conforme observam Mercer e Shingler, é uma metáfora expressionista para a conversa e suas implicações, simbolizando a consciência adquirida por Cary de que seu relacionamento com Ron está condenado35 (Figuras 11 e 12).

Figuras 11 e 12: o espectro de cores e a angústia em Tudo o que o céu permite

Brian Price (2012) observa que esse tipo de esquema abstrato de cores se reproduz como norma em Lola (Rainer Werner Fassbinder, 1981), no entanto sem o aspecto de analogia, especialmente pela maneira em que se torna difícil de separar uma cor da outra (Figuras 13 e 14). Dessa maneira, a cor mostra-se como um aspecto totalmente exterior aos personagens, não implicando quaisquer metáforas, evitando assim por exemplo o maniqueísmo político de seus personagens, que passam por inúmeras transformações ao longo da trama36.

Figuras 13 e 14: a abstração cromática em Lola

Essa composição plástica evoca também as luzes neon que pintam o plano inteiro em O demônio das onze horas (Jean-Luc Godard, 1965). Godard foi uma influência assumida de Fassbinder desde o início de sua carreira e na obra de ambos os diretores são marcantes os

35 Ibid. p. 94

36 PRICE, Brian. Color, Melodrama, and the Problem of Interiority. In PEUCKER, Brigitte. A Companion to

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traços modernistas da auto-consciência da forma fílmica. Nos planos de Godard, tal como no filme do diretor alemão, essas cores saturadas são trazidas para a cena em um tom claramente não-naturalista, que expõe seu caráter de artifício, produzindo rupturas estéticas de uma cena para a outra (Figuras 15 e 16).

Figuras 15 e 16: os planos tingidos de luz neon em O demônio das onze horas

Em uma cena de Fantasmas, Nina e Toni dançam na casa de um produtor de televisão em uma sala banhada em uma forte luz vermelha. Ao som de um techno etéreo tocado por um DJ, as duas dançam apaixonadamente, trocando olhares e abraços (Figura 17). Tudo anuncia uma possibilidade de uma cena de amor e desejo que se prolongue e dê algum indicativo de uma realização pessoal através do relacionamento, dado romântico convencionado em narrativas melodramáticas. Fisher, no entanto, observa que essa cena traz a promessa da possibilidade de habitar um “espaço-bolha”, um espaço à parte do cotidiano que evocaria uma utopia privada37. Apesar da imersão das duas naquele momento e espaço, este é reconfigurado pelo olhar do outro: em meio à dança, Toni troca olhares com o produtor, esse sim seu objetivo sexual final, e deixa Nina sozinha em um espaço que perde então sua potência utópica melodramática.

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Figura 17: a sala vermelha em Fantasmas

Aqui, a explosão cromática já presente em Fassbinder e Godard é retomada. No entanto, se em Lola e O demônio das onze horas a luz era um componente que denunciava a própria estrutura do filme como resultado de uma estilização pensada por seu realizador, em Fantasmas a sala vermelha é a pista de dança de uma festa, que pode ser tanto esvaziada de sentimento pela não-presença de uma dupla para dançar, quanto pode ser preenchida pela imaginação do desejo de prolongar a dança e a relação que ali se desenha. Em vez de refletir as emoções dos personagens ou o estilo do realizador do filme, esse vermelho vivo serve como espaço a ser preenchido por narrativas que deem a ele um significado emocional.

Outro momento que evoca essa estética “flamejante” é o momento de Phoenix em que Nelly chega à boate que dá nome. Uma forte luz vermelha e convidativa se projeta em sua fachada e na entrada do local, como se prometesse ao mesmo tempo ao frequentador do lugar uma noite de luxúria com dançarinas burlescas e à protagonista a possibilidade de um amor que se manifestasse por códigos visuais de pura paixão (Figuras 18 e 19). Porém, o que Nelly encontra lá, ao rever seu marido Johnny é a ausência de reconhecimento e a possibilidade de viver um romance de melodrama apenas em um jogo de encenação e dissimulação, no sentido de um espetáculo tal como o número de dança apresentado nessa boate.

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Figuras 18 e 19: as luzes na entrada da boate Phoenix

Se nos filmes de Sirk, as luzes e cores eram apresentados enquanto dados irônicos que contradiziam a narrativa e mesmo os sentimentos dos personagens para que o diretor manifestasse sua visão de mundo por via da encenação, Petzold utiliza pontualmente essa imagética do melodrama para trazer à tona a impossibilidade de que seus personagens vivam a dimensão utópica implicada no gênero. Essa iluminação luxuriante surge então como um mero espectro, a manifestação visual do fantasma de um cinema que já possibilitou outras resoluções sob essa luz.

Outro motivo melodramático retomado pelo diretor é a replicação da pietá em seus filmes (Figuras 20-24). Conforme será desenvolvido ainda nesse capítulo, a visualidade que o melodrama opera em relação às emoções dos personagens é algo que se dá em termos da contenção dos gestos dos atores nos filmes de Petzold. Contudo, por mais que a relação entre os corpos em cena se dê com certa frieza e distância, o diretor retoma mais um motivo visual anterior à sua obra para trazer à tona um breve momento de visibilidade da dor, da melancolia e da incapacidade de vivenciar os amores e sonhos que seus personagens fabricaram.

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Figuras 20-24: Pilotinnen, Cuba Libre, The Sex Thief, Wolfsburg e Barbara: "pietás" petzoldianas

Esse reemprego de formas visuais e elementos de outras obras, no entanto, se dá em diferentes níveis ao longo da filmografia de Petzold, uma vez que os filmes que compõem o corpus dessa pesquisa apresentam diferentes abordagens do gênero melodrama. Em Pilotinnen, dentro de uma estrutura de road movie as matrizes melodramáticas estão mais concentradas em seu comentário auto-consciente da música romântica que embala os filmes do gênero. Em The Sex Thief, há o cruzamento entre a narrativa do filme de crime e a esfera do lar, característica das narrativas melodramáticas. Em Wolfsburg, como observa Fisher, o gênero, antes relegado ao pano de fundo de suas narrativas anteriores, torna-se o objeto principal de sua escavação, exibindo parâmetros claros do gênero, ao mesmo tempo que cria distância em relação à identificação que ele estabelece entre o espectador e os personagens38. Em Fantasmas, o pathos

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maternal se mostra o elemento central da narrativa, evocado tanto pela retórica de seus personagens quanto pelo uso autorreflexivo da música. As convenções de gênero do melodrama caminham lado a lado com elementos de suspense em Dreileben: algo melhor que a morte. Já em Barbara, a coexistência entre esses dois gêneros se repete, a partir de um classicismo formal ainda maior. Em Phoenix, por sua vez, revisita o melodrama em sua linguagem mais clássica para traçar anacronicamente um retrato histórico dessa forma, ao mesmo tempo em que levanta uma reflexão no espectador sobre a atuação naturalista e o caráter dramático em si, como será melhor analisado no terceiro capítulo. Por último, Em Trânsito, o anacronismo da narrativa, que evoca eventos da Segunda Guerra Mundial dentro do contexto da década de 2010, encontra certo classicismo formal de matriz literária a partir da presença de uma narração em voice-over. Dessa forma, para se deter na filmografia de Petzold buscando uma relação com o melodrama, é preciso ter em mente que o gênero se mostra mais como um rastro a ser seguido do que como uma categoria onde os filmes possam se enquadrar diretamente em todas suas convenções. Como o fantasma de uma forma, o melodrama de Petzold se interessa em mostrar o assombro do passado no corpo de seus personagens, trazendo nova luz a problemas contemporâneos a partir de elementos já tornados familiares pelo cinema de gênero. No entanto, como veremos a seguir, as convenções narrativas no qual o melodrama é estruturado são reconfiguradas de modo a expor a maneira como as pessoas, nos termos do realizador, "se tornam econômicas" diante de um contexto de austeridade39.

1.2 O clichê como sintoma do mal-estar social

Antes de proceder para uma análise mais detida em relação à abordagem de Petzold em relação a alguns elementos narrativos do melodrama, é preciso lembrar qual o contexto histórico em que seus filmes se situam. À exceção de Phoenix, que se passa no pós-Guerra dos anos 40, e Barbara, que se passa na Alemanha Oriental no período da Guerra Fria, toda a filmografia do realizador é situada no período após a Reunificação da Alemanha e a transição para uma economia neoliberal. Esse retrato da Alemanha contemporânea, no entanto, não aponta apenas para o modus operandi dessa nova configuração econômica, mas também para o que o realizador chama de tremores (Nachbeben) do passado no presente, as consequências das

39 "...não se trata de pessoas escondendo algo, e sim de como elas se tornam econômicas". SIEMES, Christof;

NICODEMUS, Katja; PETZOLD, Christian. “‘Arm filmt gut Das gefällt mir nicht’: Ein Gespräch mit Christian Petzold.” Interview. Die Zeit, Jaunary 9, 2009. Disponível em: <https://www.zeit.de/2009/03/Christian-Petzold>

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escolhas políticas no período da Guerra Fria. Após a construção do Muro de Berlim em 1958, fruto dos conflitos entre ocupações norte-americanas e soviéticas, o país viu diversos eventos tensos desde inúmeras tentativas de fuga de uma parte do país para outra e atentados de grupos de extrema-esquerda como a Fração do Exército Vermelho, que se opunham à ordem capitalista do lado ocidental. Esse desenvolvimento econômico em torno do grande capital crescia a cada vez mais, antecipando as políticas de austeridade que se consolidariam na década de 1990, enquanto na Alemanha Oriental um sistema coletivista baseado no trabalho se mantinha sob forte vigilância, em órgãos públicos que atuavam para a comunidade e também em campos de trabalho forçado que puniam opositores do regime. Esses diversos fatores socio-econômicos moldaram a consciência alemã durante décadas e se mantiveram até a contemporaneidade, após a Reunificação. Se, conforme afirmou Benjamin, a história não segue um continuum, mas constrói um presente a partir dos diversos passados40, a ideia do cinema de Petzold é dramatizar o mal-estar desses processos históricos.

Há uma cena em Pilotinnen que mostra de maneira exemplar como no cinema de Petzold o pathos melodramático está diretamente correlacionado com as condições socioeconômicas vividas por seus personagens. A protagonista Karin (Eleonore Weisgerber) é revendedora de cosméticos e adquire um kit de spray de pimenta para garantir sua segurança trabalhando sozinha na estrada. Para garantir que ela realize um número determinado de vendas, seu patrão coloca sua namorada Sophie (Nadeshda Brennicke) como assistente de Karin. Em uma dentre diversas brigas entre ambas, as corretoras discutem no carro e Sophie joga com raiva sua bolsa contra o porta-malas, onde sua colega guardava o spray de pimenta. O impacto da bolsa ativa o spray de pimenta, que joga um gás irritante em ambas. Elas começam a tossir e tiram o carro da pista. Bastante irritadas e às lágrimas, ambas se lavam em uma fonte que encontram (Figura 25).

Figura 25: as “lágrimas provocadas” em Pilotinnen

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Seja no caso de Pilotinnen, onde as lágrimas são uma consequência de uma interação com um produto condicionado à insegurança do trabalho e não dos sentimentos, seja em melodramas como Wolfsburg, onde o choro é resposta à perda do filho e se converte em um elemento dramático que demanda a empatia do espectador, a emoção já não surge apenas como uma crise interna diante das escolhas morais oferecidas pelo mundo, mas também como um sintoma da inadequação ao estado das coisas da sociedade alemã contemporânea e à incomunicabilidade dos sujeitos nesse contexto. Melhor dizendo, em termos melodramáticos, o pathos, que mobiliza as emoções do espectador diante do cenário dramático apresentado é reconfigurado, as pressões internas dos personagens sendo sintomas das problemáticas sociais exteriores a eles, uma vez que a economia de uma sociedade de mercado neoliberal implica o estado de negociação constante de espaços, bens e relações.

Para melhor compreensão dessa reestruturação econômica do pathos melodramático, se faz necessário um olhar mais detido nas chamadas situações-clichê, a partir das quais o melodrama expressa sua força emocional e convida o espectador a uma partilha afetiva com os personagens. Jean-Loup Bourget (1985) em sua análise do melodrama hollywoodiano, enumera as seguintes situações apresentadas como empecilhos à felicidade dos personagens, que são superados aos poucos à medida que as ações do filme progridem: segredo e confissão; enfermidade e cegueira; identidade problemática e bastardia; diferença de idade; catástrofes humanas e naturais; e acidentes41. De uma maneira ou outra, todos esses elementos narrativos estão presentes nos filmes do corpus aqui apresentado. É possível encontrá-los atravessando-se uns aos outros e ainda a outras dimensões do melodrama como as questões de gênero, os temas das classes sociais, da família e da maternidade. No entanto, como veremos a seguir, tais situações-clichê não se constituem como elementos passíveis de superação nos filmes de Petzold, mas como sintomas das crises vividas pelos sujeitos dos tempos retratados.

Em Wolfsburg a dimensão moral que constituiu o gênero em sua forma mais canônica se faz presente de uma forma mais explícita que nos outros filmes de Petzold através do clichê do segredo. O filme narra a história de Phillip (Benno Fürmann) e Laura (Nina Hoss), cujo encontro se dá pela circunstância trágica do filho dela. No começo do filme, Phillip, um vendedor de carros, se encontra em meio a uma briga por celular com Katja (Antje Westermann), sua namorada e, por uma distração, atropela um menino que andava de bicicleta na estrada. Phillip foge do local do acidente logo em seguida. Atormentado pela culpa, ele se

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